Nota de repúdio à chacina na Chapada dos Veadeiros é assinada por mais de 130 entidades

Fotografia mostra várias pessoas na rua segurando faixas pretas com mensagens como “luto e luta” e “São Jorge pede justiça! Por que mataram inocentes?” em branco, em protesto contra a chacina na Chapada dos Veadeiros. Imagem: viladesaojorgechapadaveadeiros.

A comunidade de São Jorge e da Chapada dos Veadeiros, com apoio de diversas entidades de defesa de direitos humanos e movimentos sociais, vem a público denunciar a chacina promovida pelo Estado de Goiás e dizer basta à violência e impunidade

Uma ampla rede de entidades da sociedade civil organizada, de movimentos sociais e de defesa de direitos e da legalidade de Goiás, com a solidariedade de diversos estados brasileiros, manifestou-se por meio de uma nota pública contra a operação policial que provocou a morte de quatro pessoas quando o Grupo de Patrulhamento Tático (GPT) da polícia militar de Goiás invadiu, sem mandado judicial ou investigação prévia, um assentamento localizado na zona rural de Cavalcante, após denúncia anônima da existência de uma plantação de cannabis no local, no dia 20 de janeiro de 2022.

A nota pública em repúdio à chacina promovida na Chapada dos Veadeiros pelo Estado de Goiás foi assinada por 134 organizações de todo o Brasil, que reuniram-se não apenas para denunciar a grave situação de violência policial endêmica existente em Goiás, mas também para apoiar a formação de uma rede de apoio solidário e jurídico às famílias das vítimas. Por meio da Avaaz, 3.656 pessoas de Goiás e outros estados também assinaram o documento.

Além da brutalidade da ação policial, causou perplexidade que o governador Ronaldo Caiado tenha se apressado em elogiar já no dia seguinte uma operação militar com fortes indícios de execução de quatro pessoas sem ao menos aguardar o resultado da perícia criminal ou uma investigação, segundo noticiou o @portalfalameupovo. Moradores e moradoras da Vila de São Jorge, que desde o início contestaram a versão da polícia e organizaram uma manifestação em defesa das vítimas em São Jorge no dia 23 de janeiro, exigem uma apuração justa do caso, bem como que o governador do Estado venha a público se retratar por ter parabenizado os policiais, que acabaram sendo afastados de suas funções e estão sendo investigados.

Inconsistências e ilegalidades

Há, pelo menos, três graves ilegalidades na ação do GPT que disparou os 58 tiros que mataram Salviano, Ozanir, Chico Kalunga e Allan, sendo 40 deles de fuzis: violação de domicílio, ausência de mandado judicial e extrapolação de competência. Essa última configurada pelo fato dos policiais militares terem incinerado os pés de maconha. De acordo com a lei, quem incinera a droga é o delegado e isso foi feito antes de sua chegada. Além disso, nenhum policial foi ferido na alegada troca de tiros relatada pela polícia militar e suspeita-se que os quatro homens teriam sido  mortos sem reação e já rendidos. Segundo a polícia civil, nenhum deles possuía antecedentes criminais.

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Violência endêmica

A nota traz ainda os números alarmantes da violência policial no estado de Goiás. Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2021), a polícia goiana é a segunda mais letal do país e é responsável por 29% das mortes violentas intencionais totais do estado, índice que não deve superar 10% e indica a proporcionalidade do uso da força.

Outro indicador de proporcionalidade é a relação do total de mortos em intervenções policiais e o total de policiais assassinados. Em Goiás, para cada policial vítima, morrem 210 civis. É o maior índice dentre os 27 estados brasileiros. O FBI (EUA) trabalha com a proporção de 12 civis mortos para cada policial morto. Estudiosos sugerem que quando essa proporção é maior do que 15 então a polícia está abusando do uso da força letal.

Diversas medidas já estão sendo tomadas para garantir a apuração do caso e evitar que ele caia no esquecimento ou na impunidade. A equipe jurídica que assessora as famílias pediu o acompanhamento da Comissão de Direitos Humanos da OAB e o Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduino acionou o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

O deputado federal Rubens Otoni (PT-GO) protocolou ofício solicitando que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados apure o caso e ainda solicita que seja expedido ofício ao secretário de Segurança Pública de Goiás, ao procurador-geral de Justiça de Goiás, ao corregedor da polícia militar de Goiás e ao Núcleo de Controle Externo da Atividade Policial (NCAP) do Ministério Público de Goiás com pedidos de providências.

As entidades pedem também o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle social das forças de segurança e a implantação com urgência do aparelhamento da polícia militar de Goiás para possibilitar a gravação audiovisual de suas operações, de preferência com câmeras acopladas aos uniformes ou capacetes dos agentes policiais, medida que tem sido capaz de diminuir os alarmantes números de casos de violência policial em vários estados do país.

Quem eram as vítimas

Salviano Souza da Conceição (63 anos), assentado na chácara invadida pela polícia militar, é trabalhador rural e, como um dos maiores conhecedores do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, tornou-se também guia turístico pioneiro da região.

Ozanir Batista da Silva (47 anos), conhecido como Jacaré, trabalhador rural, é filho de uma família pioneira em São Jorge. Estava no local para ajudar na colheita de uma lavoura de milho, segundo relato do irmão. Desempregado, sobrevivia de trabalhos informais de jardinagem e construção.

Antônio da Cunha Fernandes (35 anos), conhecido como Chico Kalunga, era quilombola Kalunga, natural da Comunidade da Barra de Monte Alegre. Era trabalhador rural e estava desempregado, sobrevivendo também de trabalhos informais de jardinagem e construção. Grande conhecedor de plantas medicinais.

Alan Pereira Soares (27 anos), natural de Colinas do Sul. Após períodos de contratação formal com carteira assinada nas funções de entregador em loja de materiais de construção e auxiliar de máquina industrial, ficou desempregado e passou a sobreviver de trabalhos informais como pintor, servente de pedreiro, pedreiro e diarista para capina de terrenos. Deixou uma filha de seis meses e uma companheira grávida de três meses.

Veja abaixo a íntegra da Nota Pública em repúdio à chacina promovida na Chapada dos Veadeiros pelo Estado de Goiás:

A comunidade de São Jorge e da Chapada dos Veadeiros, com apoio de diversas entidades de defesa de direitos humanos e movimentos sociais de Goiás, vem a público denunciar a ação policial do último dia 20 de janeiro, já conhecida como Chacina da Chapada dos Veadeiros, promovida pelo Estado de Goiás, que assassinou quatro homens, um deles quilombola Kalunga da Comunidade da Barra de Monte Alegre.

Neste dia, o Grupo de Patrulhamento Tático (GPT) da Polícia Militar de Goiás invadiu, sem mandado judicial, um assentamento localizado na zona rural de Cavalcante, onde encontravam-se sete pessoas. Quatro delas foram assassinadas pela PM sem direito à defesa e outras três conseguiram fugir com vida. Os policiais alegam que receberam uma denúncia anônima da existência de uma plantação de cannabis e, ao chegarem no local, teriam sido recebidos a bala. Entretanto, nenhum policial ou viatura foram alvejados ou feridos. As vítimas foram mortas por 58 tiros, sendo que 40 disparos foram feitos por fuzis.

Salviano, Chico Kalunga, Jacaré e Alan eram conhecidos por todos da comunidade e muitos possuem estórias pra contar dos momentos vividos juntos. Não eram pessoas violentas, não andavam armados. Eram pacíficos. Morreram por causa da indiferença com a vida de uma guerra insana, que condena e mata de forma seletiva uma parte da população que é preta e pobre, em verdadeiros tribunais de rua.

Por que matar primeiro e perguntar depois? Por que não optar por uma investigação inteligente, que permita conhecer o perfil dos suspeitos envolvidos e seus antecedentes? Por que a polícia goiana em um sem número de vezes não cumpre sua missão de prender suspeitos e garantir o direito de defesa de todas as pessoas, observando o uso proporcional da força e o respeito à lei? Por que não respeitam o Estado de Direito, onde impera a lei e o devido processo legal? Por que os órgãos de controle mantidos com recursos públicos pouco agem?

Nos últimos anos, diversas entidades da sociedade civil vêm apresentando inúmeras denúncias de casos emblemáticos de violência policial, abuso de autoridade, abordagens ilegais, formação de grupos de extermínio, tortura e desaparecimentos forçados protagonizados pela polícia militar. Uma situação tão grave que, denunciada nos meios políticos, foi nacionalmente e internacionalmente reconhecida a partir da realização de uma audiência temática na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Washington (EUA), em 2011, e teve a federalização de inquéritos que demonstraram graves violações de direitos humanos e a inércia das instituições estaduais.

De lá pra cá, pouco ou nada mudou. Para se ter uma noção da situação atual, segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2021), a polícia goiana é a segunda mais letal do país e é responsável por 29% das mortes violentas intencionais totais do estado, índice que não deve superar 10% e indica a proporcionalidade do uso da força. Outro indicador de proporcionalidade é a relação do total de mortos em intervenções policiais e o total de policiais assassinados. Em Goiás, para cada policial vítima, morrem 210 civis. É o maior índice dentre os 27 estados brasileiros. O FBI (EUA) trabalha com a proporção de 12 civis mortos para cada policial morto. Estudiosos sugerem que quando essa proporção é maior do que 15 então a polícia está abusando do uso da força letal.

Recente análise de dados oficiais da Justiça de Goiás nos mostra que só uma em 200 mortes por intervenção policial em Goiás vira processo na Justiça, nos deixando estarrecidos pela total inoperância dos sistemas policial e judiciário que falham reiteradas vezes em garantir justiça por meio de uma apuração ágil e transparente dos casos de violência nos quais estão envolvidas as forças de segurança. E por permanecerem sem solução e na invisibilidade, condenam centenas de famílias a um sofrimento psíquico sem fim, estimulam a impunidade e geram ainda mais violência.

Estamos mobilizados para dizer “Basta”!
Não queremos aceitar mais violência e impunidade!

Denunciamos que os nossos mais nobres anseios por segurança pública e direito à vida abundante e plena estão sendo sequestrados por um Estado incapaz de controlar a violência e responsabilizar quem descumpre a lei no exercício de sua missão pública. Recusamos a ideia de que nossa segurança depende da quantidade de terror que se espalha pelo mundo.

Exigimos o imediato cumprimento das leis vigentes e uma investigação séria e independente capaz de apurar todas as irregularidades cometidas, assim como fazer justiça à memória das vítimas e à dignidade das famílias.

Exigimos o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle social das forças de segurança e que seja implantado com urgência o aparelhamento da polícia militar para possibilitar a gravação audiovisual das operações policiais, de preferência com câmeras acopladas aos uniformes ou capacetes dos agentes policiais, medida que tem sido capaz de diminuir os alarmantes números de casos de violência policial nos estados que a adotaram.

São Jorge e a Chapada dos Veadeiros, símbolos de resistência e diversidade, não verão a história de seus filhos e filhas serem manchadas pela impunidade e pela violência do Estado.

Estado de Goiás, 21 de janeiro de 2022.

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