viajar não é preciso
nem só de boas viagens se faz um marinheiro, e isso também vale pra você, maconheiro. as bad trips têm seu lugar e sua função, e merecem nosso respeito. Por Laura Maria*
viajar com a mente não é uma ciência exata. podemos tentar acertar o tal do set&setting (como estamos, onde estamos) e isso quase sempre vai funcionar. quase. estamos sempre sujeitos a desvios no percurso. a mente mente, ilude, engana, e se não conhecermos bem nossas marés internas, a chance de afogamento é alta. até mesmo velhos ganjanautas podem perder o tino, o prumo e entrar em desalinho.
muitos efeitos da erva ainda são misteriosos. nossa psique é uma floresta densa, complexa, cheia de cantinhos inexplorados, recônditos selvagens, antiquíssimos. há gatilhos e armadilhas por toda a parte, podendo disparar a qualquer momento. trilhas fechadas, clareiras inesperadas, acidentes geográficos: tudo pode ser quando nos dispomos a essa aventura dentro de nós mesmos. saber navegar, isso sim é necessário.
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eu nunca tinha tido uma bad com ganja, até que tive. estava num pedaço escorregadio da minha caminhada pelo planeta. dirigia inconsequentemente por estradas tortuosas, beirava precipícios. ria na cara do perigo, pique Simba. a maconha era a substância mais leve que eu consumia naquela época, e dar um breque se mostrava cada vez mais algo imprescindível se eu quisesse manter minha saúde mental e física. e eu queria, portanto, brequei.
meu jeito de tentar parar de abusar de substâncias sintéticas foi me jogar de cabeça numa substância natural. confesso que, mais do que tudo, eu buscava uma experiência transcendental natureba, uma viagem maluca porém não desenvolvida num laboratório, quando fui bater na porta do daime, em meados de 2015. como acontece com muita gente, o que era uma brincadeira de criança acabou virando algo muito sério. me vi naquele ritual, me enxerguei como nunca antes, me encontrei ali naquele salão e não queria mais voltar aos meus velhos e nada saudáveis hábitos. frequentei as sessões uma vez por mês, durante seis meses. repensei tudo, reconsiderei antigas decisões, reformulei minha ideia do que era a vida, e decidi que aquilo que eu vivia não era vida. não a vida que eu queria. a vida era algo muito maior, muito mais lindo, e não tinha nada a ver com abuso de substâncias. se qualquer coisa, elas me atrapalhavam, me embotavam, me cegavam.
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mas a maconha… ah, a maconha… ela era e é um amor antigo. uma grande amiga. e como se abandona um grande amor? decidi ir aos poucos, fumando menos, mas sem declarar o fim. um dia fui visitar um casal de amigos, ia rolar um rango e um vinho. declinei o vinho, e isso foi surpreendentemente fácil. não acreditei na tranquilidade com que disse ‘hoje não, valeu’. era provavelmente a primeira vez que eu negava álcool em mais de uma década. lá pelas tantas, me passam um beck. uma trave, na verdade. sem essa conversa de perninha de grilo, já dizia o d2. dei um, dei dois. deu tela azul.
eu não sabia o que estava acontecendo. não conseguia me mexer. sentada num banquinho de plástico, escorada na parede, ali fiquei, vendo a sala derreter e meus amigos falarem um idioma desconhecido. eu não sabia entender, não sabia falar. não conseguia expressar nada, nenhum som compreensível. era claro pra mim que eu ia cair dura ali mesmo, a qualquer instante. algo tinha dado muito errado no meu cérebro. meu amigo percebeu minha expressão lívida, a cara branca, os olhos vidrados. havia anos que fumávamos juntos, e eu nunca fui de ficar sem falar, bem pelo contrário. ele falou palavras que me atravessaram sem fazer nenhum sentido, mas aquela interação foi o gancho que me puxou de volta. voltei pra praia, não estava mais afogando no vácuo.
penso que a maior lição que eu pude tirar dessa experiência foi perceber o limite da loucura. existe loucura boa? existe. mas existe também loucura que te joga no chão, te deixa sem ar, que te faz desejar não ter dado aquele trago. não tem como saber quando vai bater errado. mas dá pra escolher melhor o que se fuma, quando se fuma, com quem se fuma. eu estava entre amigos e num lugar seguro, mas meu cenário interno era conturbado. estava sensível também por conta da experimentação com a ayahuasca. perceber o contexto em que se está é importante, se situar em si mesmo e então escolher viajar ou ficar em terra firme. viajar não é sempre necessário, e não é preciso.
*Laura Maria. escrevo como quem pensa. escrevo como quem viaja nas voltas da mente, no jeito que as palavras são escritas e no peso de cada uma delas. a ganja é uma velha amiga, daquelas que me abraçam forte enquanto me dizem verdades duras na cara.
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#PraCegoVer: Fotografia, em preto e branco, tirada de baixo para cima que mostra a folhagem de uma planta de cannabis contra a luz do sol, que pode ser visto como um ponto irradiante no espaço entre algumas folhas. Imagem: Lollyman | Flickr.
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