Uso medicinal da cannabis no tratamento de doenças raras ainda é um tabu

Fotografia, tirada de cima pra baixo, mostra uma folha de cannabis e um frasco âmbar com rótulo branco e tampa preta sobre uma superfície em tom claro de salmão. Imagem: Freepik.

Alto custo, demora e burocratização são impasses para famílias que encontraram na maconha efeitos terapêuticos contra patologias. Saiba mais na reportagem da Tribuna de Minas

“Foi a primeira vez que o Kauã deu um sorriso, antes disso a gente nunca tinha visto ele sorrir”, afirma Tairini Nascimento, mãe do menino de 3 anos, portador de uma síndrome rara chamada Aicardi-Goutières, e que há pouco mais de dois anos faz uso da cannabis medicinal. Os sintomas da síndrome já se manifestam nos primeiros dias de vida, e, no caso do Kauã, foi diagnosticada com uma hemorragia cerebral, dois tumores no cérebro, um início de hidrocefalia e diversas calcificações. Conforme conta Tairini, desde o princípio, ela já sabia que seu filho conviveria com muitas sequelas, sendo a principal delas as crises convulsivas.

Os medicamentos contra as convulsões começaram a ser ministrados ainda na UTI neonatal, onde Kauã permaneceu por 73 dias após o nascimento. Segundo Tairini, eram oito medicamentos que não apresentavam o resultado esperado, pelo contrário, pareciam piorar o quadro. Na procura por um tratamento eficaz para seu filho, Tairini começou a pesquisar, por conta própria, os efeitos da cannabis como medicação contra crises convulsivas.

Conhecendo mais sobre o uso, e ouvindo relatos de famílias que haviam tido sucesso, ela decidiu apostar. “Muitos médicos aqui de Juiz de Fora não entendiam o que o meu filho tinha, muito menos sabiam sobre a cannabis. Eu já tinha recebido muitas notícias ruins, e pensei que pior do que estava não podia ficar. Por isso, eu comecei a correr atrás do uso deste medicamento.”

Foi nessa corrida que ela conheceu Thaís Ventura, que, assim como Tairini, remou contra a corrente para garantir o bem-estar de sua filha Annie, de 4 anos, portadora de paralisia cerebral, epilepsia e hidrocefalia. Atualmente, Annie faz apenas o uso da cannabis como medicamento para evitar as crises epilépticas, mas o caminho para conseguir a autorização para o uso desse medicamento foi longo e conturbado. “A Annie usava quatro medicamentos para aliviar as crises, até que a neurologista dela comentou da possibilidade de usar a cannabis, mas disse que não prescrevia, porque era um medicamento ainda muito novo. Eu comecei a pesquisar, estava desesperada procurando algum jeito de ajudar a minha menina.”

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Tanto no caso da Annie, quanto no de Kauã, o uso da cannabis foi determinante para uma melhor qualidade de vida. E assim como eles, diversas outras crianças, e também adultos, têm encontrado no uso medicinal da cannabis a solução para diversos problemas de saúde. De tratamentos para a dor até alívio dos sintomas de depressão e ansiedade, as propriedades medicinais da cannabis têm sido cada vez mais recomendadas devido à sua eficácia. “A Annie convulsionava várias vezes por dia, e hoje ela não faz uso de nenhum medicamento alopático, só o canabidiol, e as crises são totalmente esporádicas e não apresentam nenhum risco para a vida dela. Sem contar os outros aspectos, ela desenvolveu muito nesses quatro anos desde que começou com a medicação”, afirma Thaís.

E o caso do Kauã não foi diferente. Segundo Tairini, os medicamentos que ele usava para evitar as convulsões faziam com que seu filho ficasse dopado. “Ele só dormia, tinha muitas crises, muitos tremores e nunca tinha sorrido. Eu sempre ouvia dizer que ele nunca iria sorrir, mas, com três semanas de uso da cannabis, ele começou a sorrir. No início, foi aquele sentimento de incredulidade, mas, depois, ele começou a melhorar muito, as crises começaram a diminuir e os exames apresentaram uma grande melhora. Depois de um ano que ele estava usando a cannabis, decidimos parar com o uso dos anticonvulsivos, mesmo contra a recomendação dos médicos. A partir disso, a qualidade de vida dele melhorou extraordinariamente.”

Propriedades terapêuticas ainda em descoberta

A Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, já é usada como medicamento há mais de 2.700 anos antes de Cristo. A planta tem em sua composição diversas substâncias, entre elas, o canabidiol (CBD) e o tetraidrocanabinol (THC) — este último responsável pela maior parte dos efeitos psicoativos da cannabis. Segundo o médico Sady Ribeiro, que atua na medicina da dor há mais de 30 anos, a experiência com o uso da cannabis tem demonstrado resultados satisfatórios no tratamento de várias patologias. “É importante dizer que o CBD não tem nenhuma ação psicoativa, essa substância não altera a sua percepção e nem causa dependência. Contra a epilepsia, por exemplo, o CBD tem se mostrado muito eficaz.”

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No entanto, Sady afirma que estudos mais recentes têm demonstrado a importância do THC ser associado ao CBD em alguns tratamentos. O médico, que, além de em Juiz de Fora (MG), mantém consultório também em Nova York, nos Estados Unidos, afirma que lá essa combinação já vem sendo adotada, diferente do Brasil, que instaurou um limite de 0,2% de THC em medicamentos importados — que são, inclusive, vendidos em farmácias no Brasil. “Algumas pesquisas mostram que o THC serve como uma porta aberta para que os efeitos medicinais do CBD sejam mais eficientes. Mas, diferente de outros medicamentos, o uso da cannabis não tem uma regra fixa. É um medicamento que você precisa ir sondando, já que age de forma particular em cada organismo. A gente prescreve uma pequena dose e vai acompanhando os resultados a longo prazo.”

Ele explica que a falta dessa regra padronizada se dá, em grande parte, devido à dificuldade de realizar testes chamados de “duplo-cego”, que têm o intuito de avaliar a resposta do medicamento no organismo dos pacientes. No geral, a indústria farmacêutica recruta dois grupos de voluntários, um que receberá placebo e outro que será efetivamente medicado. Mas para que o teste seja satisfatório, um dos princípios é que o voluntário não saiba o que está recebendo. No entanto, como muitos ao longo da vida tiveram contato com a maconha, seja para uso adulto, terapêutico ou religioso, conhecem os efeitos psicoativos do THC no organismo. Por conta dessa disparidade, existe uma escassez de estudos de grupo, principalmente envolvendo o THC para uso medicinal.

Dificuldade de aquisição devido à legislação e alto custo

Um dos principais problemas envolvendo o uso da cannabis medicinal é o custo. Atualmente a legislação brasileira, apoiada na Lei de Drogas (11.343/2006), proíbe em todo o território nacional o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, com exceção para aquelas plantas de uso exclusivamente ritualístico religioso e no caso de fins medicinais e científicos. Entretanto, no Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não classifica a cannabis como medicamento. O órgão é, desde 2015, responsável por regulamentar a prescrição e a importação com receita médica e, desde 2019, a avaliação da fabricação do composto no país.

Sady Ribeiro explica que existe uma grande diferença entre a cannabis medicinal adquirida no Brasil e a importada dos Estados Unidos. “No Brasil, nós temos o óleo extraído da maconha de maneira artesanal, que, mesmo com todos os procedimentos corretos, vem carregado de todas as substâncias presentes na planta. O quanto tem de CBD e quanto tem de THC, a gente não consegue saber. Nós sabemos que tem mais THC porque ele é mais frequente. Já nos medicamentos importados, eles podem vir também em óleo ou até mesmo em comprimidos, e, como eles são produzidos por empresas estrangeiras que têm uma tecnologia avançada, é possível saber com precisão a porcentagem de CBD que existe naquela fórmula.”

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No entanto, o medicamento importado dos Estados Unidos custa, em média, R$ 2.200 um frasco com 200 mg. E esse é o preço que Thaís Ventura precisa arrecadar todo mês para bancar o tratamento da Annie com o canabidiol. “Eu tenho uma campanha no Instagram (@annie_go_annie) e por lá consigo muita ajuda, através de vaquinha e doações. Por isso, compramos o importado, mas o valor é inacessível para a maioria das famílias. Até mesmo o que a gente consegue comprar nas farmácias daqui, o valor não é muito diferente, fica entre R$ 2.300 e R$ 2.500 o frasco com 30 ml.”

Já a Tairini, consegue o óleo da cannabis para o tratamento do Kauã em uma das únicas ONGs do Brasil que têm a autorização para produzir e distribuir o óleo artesanal de cannabis, a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace Esperança). Sua sede fica em João Pessoa, na Paraíba, e, desde 2017, está autorizada pela Justiça brasileira a cultivar e fornecer derivados da cannabis sativa aos seus associados em forma de óleos e pomadas. “Nós temos um gasto de R$ 400 a cada dois meses, é um preço alto, mas que a gente se esforça para pagar, porque não podemos deixar ele sem o tratamento”, diz Tairini.

Embate judicial

De acordo com dados fornecidos pela Anvisa, o crescimento da importação de produtos à base de cannabis foi de quase 1.800% em cinco anos. Apenas em 2020, foram obtidas 15.862 autorizações por parte de pessoas físicas ou associações. Na Câmara dos Deputados, atualmente tramitam vários projetos de regulamentação da cannabis para fins medicinais. A maior controvérsia envolve o Projeto de Lei (PL) 399/2015, que trata de uma proposta bastante ampla de regulamentação, que vai do cultivo de cannabis, tanto para extração de CBD como de THC e outros canabinoides, à fabricação e comercialização de produtos, com uma série de exigências para garantir qualidade, eficácia e segurança aos processos e aos resultados finais. Atualmente, o PL encontra-se pendente de uma deliberação do recurso na mesa diretora.

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A consultora comercial e representante em Juiz de Fora da empresa americana de exportação 1Pure CBD, Cíntia Munck, explica que a autorização para o uso medicinal da cannabis necessita de uma frente conjunta entre a medicina e a Justiça. “A primeira dificuldade para o paciente é encontrar um médico que esteja aberto para esse tipo de tratamento. A maioria ainda é muito resistente a esses medicamentos derivados do cânhamo.”

Encontrado o médico, ele deverá fazer uma prescrição com o número de frascos, anual e mensal, que aquele paciente irá demandar. No entanto, conforme Cíntia, na maior parte dos casos, não há como prever a quantidade exata, principalmente por ser um tratamento prescrito de acordo com a necessidade terapêutica de cada paciente. “Essa questão é apenas uma das barreiras burocráticas impostas pela Anvisa. Sem contar o tempo necessário para conseguir a autorização, que hoje em dia é de aproximadamente 20 a 30 dias, o que eu acho muito tempo para quem está à espera de um tratamento de saúde.”

Ela ainda afirma que, por mais que o canabidiol tenha recebido a autorização para ser comercializado nas farmácias, até o momento, apenas um laboratório no Brasil conseguiu o parecer da Anvisa para realizar essa venda. “Para o paciente não ficar preso a uma única marca que possui o registro, ele vai ter que importar e, com isso, fazer o formulário da Anvisa, que é muito burocrático e difícil de ser preenchido, ou seja, é um processo muito demorado.”

A partir do momento em que a Anvisa emite a autorização, o paciente pode realizar a compra. Segundo Cíntia, a importação é rápida, em um ou dois dias o medicamento entra no Brasil, porém, ele fica retido na alfândega por dez dias úteis, podendo prorrogar para 20, para que seja realizada a fiscalização da Anvisa. “Não é o trajeto que demora, o problema da importação é a burocratização.”

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Já para conseguir o canabidiol da ONG Abrace Esperança, o paciente ou responsável deve fazer um cadastro, que precisa ser aceito conforme a disponibilidade do medicamento. “Em alguns casos, após o cadastro, o paciente precisa entrar em uma fila. Eu já ouvi casos de pacientes que ficaram esperando até quatro meses para receber a documentação, que é um relatório médico, para assim poder realizar o cadastro, e pagar uma taxa para depois receber o óleo artesanal produzido pela associação.”

Optar entre o óleo artesanal e o produto importado, na maior parte dos casos, não é uma decisão que cabe ao paciente. Cíntia afirma que em Juiz de Fora há diversos casos de pacientes que não reagiram ao tratamento com o óleo artesanal e, por isso, precisam realizar a importação dos Estados Unidos. “Hoje em dia, eu ajudo na importação para cerca de 20 famílias na cidade que precisam do produto.”

O alto custo faz com que muitos recorram à Justiça para conseguir ou o ressarcimento do valor gasto na compra do produto importado ou a autorização para o plantio doméstico, podendo assim extrair o óleo artesanal em casa. Dados fornecidos pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) apontam que em Juiz de Fora existem 21 processos em aberto envolvendo o uso da cannabis medicinal.

Preconceito

A demora nos processos judiciais, assim como no trâmite das leis de autorização na Câmara, de acordo com o professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do Laboratório Social da Cannabis, Paulo Fraga, é reflexo de um estigma que a planta vem sofrendo ao longo dos anos. “Desde de 1930 a maconha é proibida no Brasil, isso refreou uma série de pesquisas que poderiam ter sido desenvolvidas sobre seus aspectos medicinais e psicoativos. É apenas a partir dos anos 1990 que observamos uma movimentação a nível internacional e nacional rumo à legalização. O mais interessante é que foram através de movimentos sociais, como a Marcha da Maconha, por exemplo, que se fez com que nossa legislação avançasse e certa mudança tenha sido observada quanto a isso.”

Paulo ainda afirma que a evolução dessa discussão é muito positiva, até mesmo para que os médicos possam prescrever esse medicamento sem todo o receio que envolve a ilegalidade. “No Brasil nós ainda estamos caminhando, apesar de nossos países vizinhos como Argentina, Uruguai, Chile já estarem com a legislação muito mais avançada nesse quesito.”

Um dos movimentos sociais que reivindicam a legalização da cannabis é a Marcha da Maconha. Ela é um evento que acontece anualmente em diversos lugares do mundo, onde ativistas realizam uma passeata em luta pela descriminalização do uso social e medicinal da cannabis sativa. Em Juiz de Fora, segundo o representante do movimento, Douglas Ribeiro, ela possui o caráter de movimento social que, além da passeata, estende o debate ao longo do ano através de diferentes ações.

Ele afirma que, no município, as pessoas ainda possuem muito receio quanto ao movimento como um todo. “A Marcha da Maconha é um movimento marginalizado, estereotipado, assim como os próprios usuários são. E eu percebo um medo por parte da maioria das pessoas que usam a maconha medicinal de, ao aderir à causa, serem também marginalizadas, estereotipadas e estigmatizadas. Ainda vemos uma pouca adesão desse público mais amplo à Marcha, como o de famílias que estão entrando na Justiça para conquistar o uso, por exemplo.”

Douglas ainda afirma que a pauta do uso medicinal da cannabis escancara as contradições presentes na criminalização da planta. “É uma planta que é criminalizada, mas tem um potencial medicinal vasto para ser usada no tratamento de diversas doenças. A pauta do uso medicinal acaba sendo uma pauta mais fácil de ser tratada com a sociedade, por isso vemos essa segregação, entre a legalização do uso medicinal e a legalização mais abrangente. O discurso é que o CBD é o composto medicinal e o THC é visto como o vilão, sendo que a maconha tem uma série de canabinoides que agem em conjunto para realizar os efeitos terapêuticos que ela tem. E uma série de pesquisas já mostra isso”.

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#PraTodosVerem: fotografia, tirada de cima pra baixo, mostra uma folha de maconha e um frasco âmbar com rótulo branco e tampa preta sobre uma superfície em tom claro de salmão. Imagem: Freepik.

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