Uma médica contra a DEA: a batalha para estudar maconha nos EUA

Foto que mostra, em fundo escuro, parte de um pé de cannabis (maconha) em cultivo, com folhas serrilhadas e, no topo, a flor em desenvolvimento. agora

Milhões de pessoas nos EUA podem comprar maconha legalmente em dispensários — mas os cientistas não têm permissão para estudá-la. Saiba mais sobre o assunto na reportagem de Tyler Kingkade para a NBC News, traduzida pela Smoke Buddies

No início da carreira médica da Dra. Sue Sisley, veteranos militares com transtorno de estresse pós-traumático disseram a ela que fumar maconha evitava pesadelos e os ajudava a dormir. Sisley, médica de cuidados primários e psiquiatra em Scottsdale, Arizona, que trata veteranos há duas décadas, disse que inicialmente era cética em relação às alegações de seus pacientes, mas suas famílias confirmaram que a maconha estava ajudando com seus sintomas.

“Apesar de eu ter dúvidas, eles nunca desistiram”, disse Sisley sobre os pacientes. “Eles eram muito implacáveis”.

Cerca de uma década atrás, Sisley decidiu estudar os efeitos psiquiátricos de maconha para ver se ela podia provar o que seus pacientes estavam experienciando. Mas, devido ao status federal da maconha como droga ilegal, isso acabou longe de ser uma tarefa simples.

Desde então, Sisley foi demitida de seu emprego na Universidade do Arizona; perdeu um parceiro de estudo em outra universidade; e teve bloqueadas pelo Departamento de Assuntos dos Veteranos dos EUA suas tentativas de recrutar pacientes para pesquisa. Em 2016, seu estudo científico estava em andamento no Scottsdale Research Institute, e ela finalmente teve cannabis aprovada federalmente em mãos para fornecer a 76 veteranos militares.

Mas ela não estava feliz com a erva que recebeu.

A maconha era uma “bagunça poeirenta de talos, gravetos e folhas”, disse Sisley. O nível de tetraidrocanabinol — ou THC, a substância química que deixa as pessoas ‘altas’ — foi de cerca de 8%, muito mais baixo do que os produtos fumáveis em dispensários de maconha que geralmente ultrapassam 20%. A erva de pesquisa também deu positivo para levedura e mofo, disse ela.

“Eu fiquei atônita com isso”, disse Sisley. “Como médica, como entregaria erva mofada para indivíduos de um estudo?”.

Sisley não podia comprar por aí, todavia, porque, desde 1968, a Drug Enforcement Administration exige que os cientistas que desejam estudar os efeitos da cannabis usem apenas maconha de uma fazenda de 12 acres na Universidade do Mississippi. Enquanto o diretor da fazenda contesta a caracterização de Sisley da cannabis fornecida, Sisley e outros cientistas argumentam que as regras do governo que os forçam a usar apenas a erva do Mississippi sufocaram a pesquisa porque ela não corresponde ao que as pessoas estão realmente usando.

“Não fizemos nenhuma pesquisa sobre as coisas que as pessoas estão comprando e consumindo hoje — esse é o problema”, disse Cindy Kiel, vice-chanceler executiva associada de administração de pesquisas da Universidade da Califórnia, em Davis.

A DEA prometeu há alguns anos que permitiria que mais pessoas cultivassem maconha para fins de pesquisa, mas não foi até o final do mês de março — quando o país se encolheu sob ordens quarentena para combater a pandemia de coronavírus — que a agência revelou um plano de como isso seria feito. De acordo com as novas regras propostas pela DEA, a agência permitiria que mais cientistas e empresas cultivassem maconha para pesquisa, mas teriam que entregá-la à DEA, que a distribuiria aos cientistas.

Sisley viu isso como outra maneira de diminuir a velocidade da pesquisa sobre a maconha. Então, ela processou o governo, exigindo que ele revelasse sua justificativa legal. Na quarta-feira, o Departamento de Justiça divulgou um memorando secreto de 2018 que impede a DEA de aprovar cultivadores adicionais como Sisley, na ausência de regras mais rígidas. O memorando também levantou questões sobre o acordo existente com a Universidade do Mississippi e se ele deve mudar para cumprir um tratado internacional.

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Sisley nunca imaginou que sua tentativa de estudar os benefícios potenciais da maconha se tornaria uma busca de uma década envolvendo brigas com universidades e o governo federal, e a revelação de um documento legal confidencial. No entanto, este é o labirinto complicado que os cientistas que estudam cannabis navegam há anos.

Agora, Sisley e outros esperam que a DEA finalmente expanda o tipo de maconha disponível para pesquisa — mesmo que o governo adicione requisitos onerosos para quem deseja cultivá-la —, o que pode, por fim, determinar seus benefícios e possíveis danos, e se algum dia será legalizada federalmente.

“Estamos tentando garantir que o público esteja ciente do que acreditamos ser uma injustiça, uma supressão da liberdade científica”, disse Sisley, “e entender a miríade de maneiras pelas quais o governo garantiu que a pesquisa sobre o desenvolvimento de drogas de cannabis nunca prosseguisse”.

Jeff Sessions pisa no freio

A maconha legal já é uma indústria maior do que a produção orgânica nos Estados Unidos, e a demanda por produtos com canabidiol — um componente não psicoativo frequentemente chamado de CBD que tem propriedades terapêuticas — é projetada para atingir US$ 23 bilhões em três anos. A maior parte do país agora tem programas sobre maconha medicinal e 11 estados legalizaram a erva para uso adulto recreativo.

No entanto, a DEA ainda classifica a maconha como uma droga do Anexo I — uma categoria restritiva reservada para substâncias que se acredita não possuírem valor médico e serem suscetíveis a abuso. A DEA disse repetidamente que não apoiará a reclassificação da maconha pela razão de não existirem estudos bem controlados ou evidências científicas aprovadas pela Food and Drug Administration que provem benefícios médicos. No entanto, os cientistas dizem que, para a evidência desses benefícios existir, eles precisam colocar maconha do mundo real — e não o que é disponibilizado pela Universidade do Mississippi — nesses estudos.

Isso cria um paradoxo, no qual praticamente ninguém pode demonstrar, por meio de um ensaio clínico aprovado pela FDA, que os produtos de cannabis no mercado são seguros ou benéficos porque os pesquisadores não podem estudá-los legalmente.

“Efetivamente, 200 milhões de estadunidenses podem acessar cannabis agora, mas um médico ou cientista não”, disse George Hodgin, fundador da Biopharmaceutical Research Company, uma empresa de análise de maconha. “É, na melhor das hipóteses, irresponsável e, na pior, é perigoso”.

A pesquisa sobre a cannabis é tão rigorosamente controlada que a DEA negou um pedido da faculdade de UC Davis há dois anos para comprar produtos de CBD para animais de estimação de um dispensário próximo para estudar seus efeitos sobre os animais, disse Kiel, o administrador de pesquisa da universidade. A DEA interrompeu o estudo por que os cientistas não usariam cannabis cultivada pela operação da Universidade do Mississippi, disse Kiel.

Em 2016, seguindo pedidos de cientistas, a DEA anunciou que permitiria que mais instalações cultivassem cannabis para pesquisa. Sisley, Hodgin e UC Davis estavam entre os, pelo menos, 33 candidatos que solicitaram uma licença, esperançosos de que este fosse o começo de um renascimento na pesquisa sobre a maconha.

Então Jeff Sessions se tornou procurador-geral.

Um ex-alto funcionário da DEA, que falou sob a condição de anonimato para compartilhar deliberações internas da agência, disse à NBC News que Sessions era “totalmente oposto” a expandir as opções para o estudo sobre maconha e, em 2017, ele suspendeu os planos do governo de permitir mais cultivadores. Mais tarde, quando os membros do Congresso pressionaram Sessions sobre os pedidos pendentes, ele sugeriu que permitir mais de um produtor pudesse colocar o país em risco de violar a Convenção Única sobre Estupefacientes da ONU, um tratado internacional de 1961.

Frustrada, Sisley disse que essencialmente fez “uma turnê nacional para falar com todos os postos de Bob’s Burger Barn ou American Legion, qualquer um que me recebesse”, para falar sobre o impedimento do governo de pesquisas sobre cannabis. Foi assim que conheceu os advogados Matt Zorn e Shane Pennington, que assumiram o caso de Sisley no ano passado.

Juntos, eles entraram com uma ação judicial contra a DEA por não processar o pedido de Sisley e, em julho de 2019, um tribunal ordenou que a agência se explicasse. Pouco antes do prazo do tribunal em agosto passado, a DEA disse que planejava emitir novos regulamentos sobre como permitiria novos cultivadores.

Cientistas processam DEA por atrasar ilegalmente a expansão da pesquisa sobre maconha

As novas regras propostas pela DEA no mês passado foram o resultado de uma opinião escrita por advogados no Gabinete de Assessoria Jurídica do DOJ (Departamento de Justiça) em junho de 2018, enquanto Sessions ainda era procurador-geral. O parecer concluiu que o tratado da Convenção Única exigia que a DEA “monopolizasse” o intercâmbio de toda a maconha legal para pesquisa. A configuração existente — deixar a Universidade do Mississippi produzir e enviar maconha — não satisfazia o tratado da Convenção Única, concluiu o memorando, e a DEA precisaria de uma nova estrutura na qual a agência assumisse o controle da cannabis antes de distribuí-la aos cientistas.

Essa opinião foi mantida em segredo até que Sisley e sua equipe jurídica entraram com uma ação judicial em março contra o departamento, o que foi estabelecido nesta semana com o lançamento do documento.

Pennington disse que o memorando revela que as limitações do tratado não se baseavam em quem está produzindo a maconha. “É sobre quem a possui, adquire e faz comércio atacadista, então tem sido um mito que nós tivemos que ter essa erva da Universidade do Mississippi esse tempo todo”, disse ele.

Um porta-voz da DEA defendeu o manuseio pela agência da maconha para pesquisa.

“A DEA deve operar dentro dos limites da lei, regulamentos e tratados internacionais”, disse o porta-voz em um e-mail. “A DEA deve garantir que a substância do Anexo I seja adquirida de uma fonte legal e, portanto, exige que o pesquisador identifique a substância, a fonte e a quantidade envolvida. Como muitos dispensários estaduais se comportam apenas com a lei estadual e não com a lei federal, uma substância do Anexo I de um dispensário estadual não pode ser usada para pesquisa”.

Os regulamentos propostos, acrescentou o porta-voz, “poderiam permitir uma gama maior de produtos disponíveis para pesquisa científica”.

A fazenda de Mississippi defende sua erva

A operação de cultivo no campus de Oxford da Universidade do Mississippi possui segurança pesada, com dezenas de câmeras, guardas de plantão, sensores ativados por movimento e vários portões de segurança equipados com detectores de vibração. É muito diferente de 40 anos atrás, quando os estudantes de graduação tentaram lançar varas de pesca por cima de uma cerca para pegar uma planta de maconha. A fazenda está estabelecida por meio de um contrato com o Instituto Nacional sobre o Abuso de Drogas, que decide que tipo de maconha deve ser produzido e está envolvida no longo processo de aprovação de pesquisadores que desejam estudá-la.

Mahmoud ElSohly, diretor de longa data do Marijuana Project da Ole Miss, se irrita com as críticas a seus produtos, incluindo o teste positivo de mofo e os níveis mais baixos de THC do que o anunciado. Ele diz que essas queixas são falsas e fazem parte da “propaganda para impulsionar uma agenda que está indo principalmente para a legalização”.

“Congratulo-me com a oportunidade de outros produtores se envolverem”, disse ElSohly, “para que as pessoas não possam mais reclamar disso”. Ele observa que os estudos que mostram os benefícios da cannabis “são provenientes do material que produzimos. Então não é tão ruim assim”.

ElSohly, um professor que também pesquisa cannabis, disse que, além de garantir que seu material não contenha salmonela e E. coli, o projeto agora testa leveduras e fungos.

O Instituto Nacional sobre o Abuso de Drogas disse que toda a maconha fornecida aos cientistas para estudos é segura e nunca houve “nenhuma consequência de saúde conhecida por contaminantes”.

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Uma estação de crescimento típica na Universidade do Mississippi rende mais de 1.100 libras de material vegetal, que é seco e preparado para os pedidos dos pesquisadores, como seria com o que é enrolado em baseados. ElSohly reconheceu que ele não pode corresponder aos muitos produtos de maconha no mercado, mas disse que oferece uma gama de níveis de potência, que é o que ele acredita que deveria importar mais para os cientistas.

“Se nós correspondermos a um, e quanto a todos os outros?”, ele disse. “Devemos corresponder a todos os produtores que um dispensário possui? Isso não faz sentido”.

Mas Staci Gruber, diretora do programa Marijuana Investigations for Neuroscientific Discovery no Hospital McLean, em Massachusetts, disse que o menu da fazenda da Ole Miss — que é amplamente confinado a flores fumáveis e extrato de THC — exclui produtos de alta potência, como comestíveis, shatter ou wax.

“Não é como se pudéssemos comprar gomas com uma quantidade padronizada”, disse Gruber. “Isso é inerentemente limitado”.

Sisley disse que este é o resultado de se ter apenas um fornecedor de maconha para pesquisa.

“Sou republicana ao longo da vida e, como conservadora, acho que os monopólios são inerentemente problemáticos porque promovem a apatia”, disse Sisley. “A Universidade do Mississippi desfruta de um monopólio imposto pelo governo há mais de 50 anos. Eles não tiveram concorrência, necessidade ou desejo de responder ao público, às necessidades dos cientistas”.

ElSohly zombou da ideia de um monopólio, observando que a Universidade do Mississippi submete-se a uma licitação para o contrato do governo a cada poucos anos, e “qualquer um que possua as capacidades da infraestrutura” é bem-vindo para competir.

Como os professores são criativos para estudar maconha

É difícil encontrar alguém que se oponha publicamente à expansão da pesquisa sobre maconha. Os membros do Congresso que se opõem à legalização da maconha pediram mais pesquisas. Os principais grupos científicos querem isso. Até o Instituto Nacional sobre o Abuso de Drogas gostaria de ter mais concorrência, porque apenas uma operação de cultivo na Ole Miss “retarda o desenvolvimento de medicamentos à base de cannabis”, testemunhou a diretora da agência, Nora Volkow, ao Congresso este ano.

Dr. Kevin Sabet, ex-consultor de políticas de drogas do governo Obama, disse que são necessárias mais pesquisas para que os legisladores possam entender os efeitos da maconha de alta potência.

“Para a vasta maioria dos produtos, não temos pesquisa de longo prazo para estabelecer sua segurança”, disse Sabet, presidente da Smart Approaches to Marijuana, uma organização sem fins lucrativos que se opõe à legalização de maconha recreativa.

Sob as restrições atuais, os cientistas tiveram que ser criativos para estudar a erva.

Pesquisadores da Universidade Estadual de Washington estão realizando um estudo no qual pedem aos participantes que comprem cannabis em um dispensário legal, vão para casa e a fumem, e então peguem um Uber ou Lyft para o laboratório para dar uma amostra de sangue. Michael McDonell, professor de psicologia da universidade, reconhece que o sistema não é perfeito, mas contorna as proibições sobre o quadro da universidade de possuir maconha.

“Eu gostaria de poder comprar uma cepa de cannabis, enviá-la para um laboratório para saber o que está nela, saber qual é exatamente a dose que está nela, e depois estudá-la”, disse McDonell.

Os cientistas estão cautelosamente otimistas sobre a direção que as coisas estão seguindo para a pesquisa sobre a maconha. O procurador-geral William Barr prometeu expandir o número de produtores de maconha aprovados pela DEA.

Porém, embora o período de comentários públicos sobre os regulamentos propostos termine em 22 de maio, não há prazo final para os próximos passos da DEA. E alguns estão preocupados que a expansão dos produtores não seja suficiente. Kiel, da UC Davis, disse que a DEA não esclareceu se os produtores recém-aprovados terão que usar sementes de maconha da única fonte aprovada — a fazenda da Universidade do Mississippi.

“O que não vai resolver o problema de pesquisa”, disse Kiel. “Simplesmente não vai”.

O estudo de Sisley com veteranos do Arizona terminou no ano passado e ela espera que seja publicado nas próximas semanas. Ela disse que levou algum um pouco para abalar o treinamento que teve na escola de medicina sobre a maconha ser perigosa e viciante, mas ela veio a acreditar que “é muito mais benigna do que as prescrições que escrevo para os pacientes todos os dias”.

“As pessoas reconhecem que esta planta tem propriedades médicas significativas”, disse Sisley. “Nós simplesmente não sabemos como aproveitá-las especificamente para tratar várias doenças. É por isso que as pessoas ainda são céticas. Nós ainda não sabemos quais variedades usar para tratar diferentes doenças, por que a pesquisa foi sistematicamente impedida por nosso governo federal”.

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#PraCegoVer: foto (em destaque) que mostra, em fundo escuro, parte de um pé de maconha em cultivo, com folhas serrilhadas e, no topo, a flor em desenvolvimento. Imagem: THCamera Photography.

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