Você já fez um teste genético de sensibilidade à cannabis?

Ilustração, em tons de azul, de sequências de DNA em meio a linhas interligadas por pontos. Imagem: Gerd Altmann / Pixabay.

O intuito do teste seria proporcionar segurança ao paciente e para o médico, em uma prescrição de canabinoides mais assertiva. Entenda mais no texto da educadora canábica Luna Vargas, a seguir

A pesquisa sobre genética se materializou em produto — um teste rápido em que basta friccionar um cotonete no interior da boca e enviar essa amostra pelos correios. Esse teste aparece no mercado como uma forma de garantir a segurança no uso dos componentes da cannabis, o que evitaria reações adversas que vêm sendo propagadas massivamente, gerando receio e medo em relação ao uso da planta.

Muito provavelmente você já ouviu falar que a cannabis pode induzir efeitos adversos como esquizofrenia, falta de memória e outras intolerâncias. Segundo as empresas que oferecem esses testes, a análise do DNA mostraria a propensão da pessoa a ter efeitos indesejados ao fazer uso da cannabis e, ao mesmo tempo, ajudaria os médicos a prescrever a cannabis como medicina e indicar produtos à base da planta.

Se você já usa cannabis, provavelmente tem alguma ideia de como seu corpo reage às diferentes formas de consumo. Em um outro possível cenário, imagine quem nunca usou cannabis, e ainda recebeu durante anos informações negativas sobre a planta. Essa pessoa enxerga num teste genético a viabilidade do uso de cannabis, ou a possibilidade de, pelo menos, diminuição de chances de sofrer com efeitos adversos. Foi pensando nessa ideia que resolvi fazer um teste de DNA.

Tive a oportunidade de conhecer a Lobo Genetics numa feira de cannabis no Canadá em 2019. Toda essa ideia me pareceu futurista, pois nunca havia pensado em fazer um teste genético. Ao mesmo tempo, me gerou uma grande curiosidade como pesquisadora do mercado e também como consumidora de cannabis, porque queria comparar o resultado do meu teste com minha experiência de 20 anos em contato com os canabinoides, mais precisamente com o uso do THC.

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O teste

A Lobo Genetics é uma empresa de tecnologia na área da saúde com sede em Toronto. Foi fundada em 2018 com o objetivo de ajudar as pessoas a fazerem escolhas baseadas em dados e informações sobre a cannabis.

O objetivo da empresa é ajudar as pessoas a entender suas reações em relação à cannabis, usando genética de uma forma simples e rápida. Atualmente, a Lobo Genetics oferece duas opções de teste: THC e CBD.

O teste é patenteado e feito em quatro etapas:

1 – Compra do teste no site: o preço no mercado varia entre 50 e 300 dólares.

2 – Recebimento do teste por correio: quatro cotonetes, um envelope de retorno e instruções.

3 – Retorno do envelope para a empresa: pode demorar até duas semanas para obter o resultado.

4 – Recebimento do resultado por e-mail.

O resultado do perfil genético do THC entrega relatórios sobre:

  • Metabolismo: entender a sensibilidade ao THC;
  • Saúde mental: explorar os riscos dos fatores de curto e médio prazo associados ao uso do THC;
  • Memória: descobrir como o THC afeta sua memória;
  • Recomendação de produtos baseados no seu perfil genético;
  • Atualizações futuras: últimas pesquisas e estudos, recomendações e ofertas.
How Using a LIMS Helps Cannabis Labs Delight Growers and Customers

#PraTodosVerem: foto mostra pessoa de máscara e touca azuis e segurando um conta-gotas e um frasco transparente contendo óleo. Imagem: Adobe Stock.

Ciência por trás do teste

O DNA é uma longa molécula que contém as instruções para construir cada uma das partes do nosso organismo. É nele que estão todas as nossas informações.

Gene é uma determinada seção do DNA que carrega códigos para fazer e organizar moléculas específicas que vão servir como blocos de construção de diferentes partes e funções do organismo.

Analisando a espécie humana, temos 99,5% dos nossos genes iguais. O 0,5% de genes diferentes é que nos torna diferentes uns dos outros. Essa diferença é chamada de variantes.

Através de pesquisas, essas empresas conseguiram localizar os genes responsáveis por metabolizar canabinoides específicos como é o caso do CYP2C9, AKT1, COMP e dentre outros.

Relatório do metabolismo

A sensibilidade ao THC é determinada pela maneira como o corpo metaboliza esse canabinoide. O THC, um dos principais componentes psicoativos da cannabis, é influenciado pelo gene CYP2C9. Esse gene codifica uma enzima do fígado que ajuda a metabolizar o THC na corrente sanguínea.

Lembrando que os canabinoides e os terpenos da cannabis são lipossolúveis e por isso são metabolizados no fígado.

Entre 15% e 20% das pessoas carregam o gene CYP2C9*3, uma variação que faz o metabolismo ficar de 2 a 3 vezes mais lento que o normal.

As pessoas com o metabolismo mais lento devem ter mais cuidado ao consumir THC porque podem experienciar o aumento de duração e intensidade do inebriamento ou euforia, especialmente quando consumido por via oral.

Leia mais: Como calcular a dosagem dos comestíveis cannábicos?

O relatório inclui:

  • Informações sobre intensidade e duração dos efeitos (uso fumado, comestíveis e óleos);
  • Genética pelo tipo de população e etnicidade;
  • Como o metabolismo pode influenciar o teste de drogas.

Meu resultado mostra que eu metabolizo normalmente o THC, assim como a grande maioria das pessoas, e isso significa que:

  • O nível de THC no meu sangue é normal quando uso cannabis;
  • Consumindo cápsulas e comestíveis, eu sentirei os efeitos com intensidade e duração normais, assim como nos usos fumado, vaporizado e sublingual;
  • O teste adverte que minha reação aos comestíveis, cápsulas e óleos vai ser mais intensa e durar mais, e que demanda mais precisão nas doses.

A análise por etnicidade mostra as diferenças de metabolização do THC por etnias. Os caucasianos têm mais propensão a carregar o gene CYP2C91/3 ou 3/3, variantes que indicam o metabolismo lento do THC.

Diferença nos métodos de consumo

Inalação: quando fumamos ou vaporizamos a cannabis, o THC chega no cérebro direto pelo sangue via pulmão. Uma vez que o THC não vai passar pelo fígado, o gene CYP2C9 tem um impacto menor na intensidade dos efeitos. Mesmo assim, o resultado adverte que quem tem o metabolismo mais lento vai sentir a duração mais longa que o normal.

Ingestão: quando consumimos comestíveis ou cápsulas, o delta-9-THC é convertido em uma molécula muito mais potente chamada 11-hidroxi-THC. Essa molécula é metabolizada no fígado por enzimas compostas por células, que por sua vez foram codificadas pelo gene CYP2C9. Transformando assim o THC na sua forma ativa em THC na forma inativa — THC-COOH (11-nor-delta9-carboxy-THC). A forma inativa do THC é a molécula procurada nos testes de urina exigidos em muitos esportes e empresas.

Como resultado, os comestíveis causam efeitos mais prolongados e intensos. Para os indivíduos que metabolizam de forma mais lenta, esses efeitos podem ser ainda mais fortes e durar um longo período de tempo, pois o THC irá demorar mais tempo para ser eliminado do organismo.

É importante lembrar que a empresa testa apenas quatro variantes genéticas que podem afetar a resposta à cannabis. Essa é uma escolha da empresa para baratear os custos e facilitar a forma de coleta do material genético. Existem outros fatores importantes a serem levados em conta como: tipo de dieta, estilo de vida, ambiente, etnicidade, histórico familiar, sexo, idade etc.

eua 1 Estudo com empresas e profissionais mapeia o setor canábico no Brasil

#PraTodosVerem: foto mostra buds de cannabis secos dispostos sobre uma superfície lisa de cor salmão. Imagem: THCamera Cannabis Art.

Saúde mental

O efeito inebriante, ou a “chapação”, é causado pela liberação de dopamina no cérebro. Dopamina em excesso pode disparar e aumentar o risco de efeitos adversos como ansiedade e paranoia.

O gene AKT1 tem um importante papel no caminho da transmissão de dopamina no cérebro. Cerca de 25% da população carrega o genótipo AKT1 C/C que pode causar o aumento do risco, a curto ou longo prazo, de efeitos psicóticos devido ao uso do THC. Enquanto todos os usuários de THC estão sujeitos a um risco baixo de psicose, os usuários que carregam o gene AKT1 C/C devem ficar atentos ao seu potencial de risco mais elevado.

O resultado da análise dos riscos inclui:

  • Curto prazo do risco adverso dos efeitos do THC;
  • Longo prazo do risco de psicose e esquizofrenia;
  • Genética por população e etnicidade;
  • THC e química no cérebro.

Meu resultado mostrou que estou entre os 25% da população que carrega o genótipo AKT1 C/C: “Você tem alto risco para os efeitos negativos do THC na sua saúde mental”.

Segundo o teste, eu tenho um risco maior de ter reações adversas no curto e longo prazo consumindo THC. Essas reações incluem ansiedade, paranoia, alucinação e psicose. Portanto eu teria uma indicação para não consumir produtos de alto THC e priorizar produtos com alto CBD.

Na minha experiência com o uso do THC, sinto que sou mais sensível que a média das pessoas, principalmente para comestíveis. Como já tinha essa percepção, uso microdose como metodologia de consumo. Essa é uma forma de dosagem muito eficaz e segura que consiste em usar a menor dose possível para atingir o efeito desejado sem efeitos colaterais indesejados. Muitas pessoas consomem um chocolate de 5 mg de cannabis e não sentem nenhum efeito, ou não ficam chapadas. No meu caso, eu começo a sentir os efeitos com 2,5 mg, e muitas vezes é o bastante para diminuir ou acabar com minha insônia.

Na minha opinião, o grande risco nesse resultado se revela para:

  • Pessoas que não têm experiência com o uso de cannabis, tendo um resultado indicando alto risco de problemas mentais, incluindo psicose, ao fazer uso do THC, tendem a não conseguir avaliar de forma mais holística esse resultado, deixando de aproveitar os inúmeros benefícios que o THC pode proporcionar.
  • Médicos que não têm experiência com a cannabis e que provavelmente não aprenderam sobre o sistema endocanabinoide em suas formações, ao receber o resultado do teste de DNA e pesquisas científicas — como as citadas nesse texto —, podem presumir que há um grande risco para o paciente em usar THC e, consequentemente, ter medo de prescrever ou administrar a substância.

Memória

A dopamina tem um importante papel na formação da memória e do aprendizado. O gene COMT influencia a rapidez pela qual a dopamina é limpada do cérebro. Um terço da população carrega o genótipo COMT Val/Val, responsável por limpar a dopamina mais rapidamente do cérebro. Como resultado, esses indivíduos geralmente têm níveis de dopamina mais baixos. Alguns estudos mostram que pessoas que carregam COMT Val/Val sofrem mais de efeitos adversos neurocognitivos quando usam THC, podendo reduzir até em 40% a memória a curto prazo.

Meu resultado mostra que carrego o genótipo COMT Val/Val, que significa que tenho maior risco de ter deficiência cognitiva e perda de memória, implicando em:

  • Ter mais dificuldade para lembrar eventos a curto prazo e executar tarefas complexas;
  • Dificuldade para prestar atenção e reações lentas.

O teste dá como alternativa o uso de CBD para neuroproteção e para diminuir esses possíveis riscos. Essa parte do teste me surpreendeu porque realmente não sinto esses efeitos mesmo usando cannabis diariamente.

É importante ter em mente que esse teste é feito analisando genes isolados e a relação com um único canabinoide, nesse caso o THC. Acho importante entendermos que o gene tem uma relação com os efeitos do THC, mas essa equação fica mais complexa quando acrescentamos o restante da nossa combinação genética e utilizamos produtos que possuem todo o espectro dos mais de 500 componentes químicos da cannabis.

A sinergia entres esses componentes, o chamado efeito “entourage” ou comitiva, é parte fundamental para equilibrar e amenizar potenciais efeitos indesejados do THC. Um bom exemplo são as flores de cannabis que tem no seu perfil de terpeno uma quantidade relevante de pineno, reconhecido por, justamente, apagar o potencial efeito de perda de memória a curto prazo.

Leia também: Terpenos da cannabis contribuem para o “efeito entourage”

Outra boa opção é o uso de produtos que tenham uma porcentagem relevante de CBD, que diminui o efeito inebriante do THC. Acrescentaria ainda nessa equação a forma de consumo, pois o uso tópico do THC não promove o efeito inebriante, o “high”, e nenhum outro efeito adverso.

Um estudo sobre etnicidade e o gene COMT mostra que africanos e asiáticos têm maior possibilidade de carregar a variante COMT Val/Val implicando em maior perda de memória.

O gene COMT é um dos marcadores genéticos mais estudados em relação a inteligência, personalidade e resposta ao estresse. Tudo isso está relacionado aos níveis de dopamina no cérebro (mais precisamente no córtex pré-frontal) e a rapidez com que o cérebro limpa essa dopamina.

Durante tempos de estresse, o cérebro é inundado por dopamina, resultando em redução da performance mental e aumentando a ansiedade. Quem possui o gene COMT Val/Val tem uma melhor performance sob estresse porque limpa a dopamina do cérebro até quatro vezes mais rápido do que as outras variações do gene COMT.

Outros pontos relevantes para refletir

O teste genético tem a função de tentar garantir uma certa segurança no uso da cannabis. Para as empresas existem também outras finalidades como criar um banco de dados genéticos e desenvolver estudos a partir disso e esse banco se tornar uma mercadoria muito valiosa assim como qualquer outra empresa que vende dados como a Google.

Outra parte do business é fazer propaganda de empresas e venda de produtos para um determinado tipo de usuário diagnosticado pela empresa. A segmentação dos usuários através do teste genético possibilita criar fórmulas e pacotes de ofertas bem mais precisas.

A Lobo Genetics entrega seu resultado oferecendo uma gama de produtos de cannabis do mercado legal, baseada no resultado do seu teste. Por conhecer muito bem os produtos do mercado legal, posso dizer que as indicações me pareceram bem aleatórias e com muito CBD. Acredito que um modelo de negócio que faz um aviso legal de que o resultado do teste não é um conselho médico não deveria sugerir produtos porque tendo o respaldo e credibilidade da ciência pode influenciar altamente o consumidor.

Testes genéticos são sempre um assunto delicado porque envolve uma empresa privada ter acesso a toda sua informação genética. A Lobo Genetics garante que os dados não sairão do Canadá porque a empresa tem sede em Toronto. Mas nada garante que eles não serão comprados por uma outra empresa, nem que esses dados não poderiam ser usados de outra forma. Um exemplo recente foi a venda da Ancestry, uma empresa que faz testes genéticos para saber a região de origem dos seus ancestrais cuja dona é esposa do dono da Google. A empresa foi vendida por quase 5 bilhões de dólares. Ao contrário da maioria das empresas que vendem dados em troca de serviços gratuitos como o Gmail ou Facebook, as empresas de testes genéticos ganham muito dinheiro para criar um banco de dados. Cerca de 3 milhões de pessoas têm agora suas informações genéticas nas mãos de uma empresa diferente da contratada para o serviço de testagem.

Essas informações são vendidas para outras empresas como as de seguro de saúde. No caso de uma pessoa ter um gene que mostra propensão a ter câncer de mama, por exemplo, a empresa pode fazer o seguro e excluir uma doença para a qual a pessoa tem predisposição.

Os testes genéticos disponíveis hoje no mercado são pouco precisos em relação ao uso de canabinoides. Mais importante do que saber se uma pessoa tem uma certa variante de um gene é ter educação tanto do médico quanto do paciente.

O motivo de se fazer um teste seria garantir a segurança do paciente ao mesmo tempo em que visa dar segurança para o médico prescrever. Diminuindo a insegurança do profissional e fazendo com que o paciente se sinta mais seguro para usar uma substância tão marginalizada pela sociedade.

A questão é que o teste genético não pode ser lido como um veredicto.

Ele analisa três genes, no caso da empresa Lobo Genetics, com um canabinoide isolado.

A relação com os fitocanabinoides é muito mais complexa do que isso, ainda mais quando não estamos considerando dose.

O teste serve como um parâmetro e não como um veredicto.

O teste de DNA e THC não substitui a experiência do paciente e do médico. Nem mesmo a de um budtender ao oferecer um produto mais adequado para o cliente.

Os testes de DNA fazem parte de um desenvolvimento de pesquisa importante para o conhecimento do nosso organismo e do seu funcionamento. Dentre inúmeras implicações, esse texto mostra a relação do DNA com a cannabis. Na minha experiência com o teste, ficou bem evidente o problema que pode acarretar o fato de seguir as análises do teste, sem conhecer a cannabis e sem ter experiência com a planta.

Se por um lado, como no meu resultado, uma pessoa poderia se assustar e nunca experimentar o THC. Por outro, uma pessoa que se encaixa nos padrões “normais” genéticos poderia usar muito THC e ter inúmeros problemas não analisados nos marcadores genéticos listados pela empresa. Não acredito que um teste como esse possa ser parâmetro para médicos receitarem ou não a cannabis. Em muitos pontos relatados aqui, consigo perceber que talvez o teste reforce ainda mais informações incompletas e colocadas de forma isolada sobre a cannabis. É sempre importante lembrar que a cannabis é uma substância extremamente segura. Muito mais segura inclusive que Tylenol, álcool, açúcar ou fast-food.

A diminuição do estigma em torno dessa planta acontece com esforços políticos, aumento do acesso às pesquisas já existentes e futuras e, claro, com muita educação. Passa também pela questão da autonomia e do autoconhecimento, que são primordiais para se entender a cannabis no corpo. Cada um tem seu sistema endocanabinoide, cada um é uma complexa bricolagem de DNA, mais milhares de outras variáveis, incluindo sociais e culturais, que somadas nos fazem seres complexos o bastante para não termos nossas reações determinadas por apenas três genes.

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#PraTodosVerem: ilustração, em tons de azul, de sequências de DNA em meio a linhas interligadas por pontos. Imagem: Gerd Altmann / Pixabay.

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