Tecnologias da Felicidade: descriminalizar as drogas ajuda a ser feliz?

Fotografia em plano fechado que mostra um baseado aceso com a ponta voltada para a câmera, os dedos que o seguram e parte do rosto da pessoa, ao fundo desfocado; detalhe para o esmalte preto que aparece no dedo polegar. Maconha.

Em “Mal Estar na Civilização”, Freud distingue três classes de antídotos para as tarefas insolúveis de nossa existência: poderosas distrações, satisfações substitutivas e substâncias embriagadoras. Em uma minissérie publicada no Tilt/UOL, Christian Dunker* examinou as duas primeiras categorias e agora, no último texto da série, explana sobre as drogas embriagadoras. Confira, a seguir

Consideramos que tais substâncias modulam a paisagem, ou seja, o fundo sobre o qual operam nossas conflitos e contrariedades com o mundo e com nós mesmos. Elas agiriam como um colchão reduzindo a intensidade dos afetos que nos perturbam, retardando nossa velocidade de resposta emocional e recuando nossa participação na partilha social destes afetos.

Até meados dos anos 1980 um conjunto de estudos impactantes sugeriam que a ação de drogas psicoativas como a heroína e a cocaína sobre o cérebro era a fonte principal da dependência química. Várias demonstrações experimentais chegavam a mostrar que ratos preferiam cocaína a alimento e água. Diante da alternativa de escolher uma ou outra pressionando uma barra, com uma cânula implantada em seus cérebros os pequenos animais escolhiam o prazer em vez da vida da subsistência [1].

Essa teoria subsidiou anos de investimento pesado no controle do cultivo e produção de substâncias entorpecentes pois a única maneira de evitar a dependência era impedir que a pessoa entrasse em contato com o ingrediente ativo. Uma vez em contato com ele a pessoa quer repetir indefinidamente aquela experiência, requerendo para isso doses cada vez mais altas, rumando assim para a overdose letal. A pessoa se torna cada vez mais egoísta até perder o senso do cuidado de si e deixar de controlar o uso da droga e passar a ser controlado por ela. Criam-se assim verdadeiros zumbis desprovidos de consciência e condenados a repetir o mesmo ciclo comportamental.

Aquilo que no começo era uma fonte de prazer vai lentamente tornando-se apenas fuga do desprazer provocado pela fissura, pela síndrome de abstinência e pela miséria moral e psíquica a que o processo conduz. O tratamento é difícil e repleto de recaídas porque a força da droga é muito grande. A melhor tática é afastar o sujeito de todo e qualquer consumo, ainda que seja por internações forçadas ou espontâneas, porque senão ela volta para o uso, suas más companhias e os riscos que ele comporta. Para contrabalançar a força da droga é preciso uma crença muito forte, que justifique e se oponha ao uso dos prazeres.

No fundo esta teoria compactua da mesma base científica daqueles que afirmam que a felicidade pode ser medida pela relação entre um certo conjunto de estados cerebrais associados, de modo consistente e regular, com paisagens mentais específicas. Os problemas com esta teoria começaram quando se observou que a fronteira entre drogas psicoativas legais, como o café, a nicotina, os anorexígenos e o álcool e as drogas ilegais não tinha nenhuma justificativa química, além da sua tolerância cultural [2].

O problema desta teoria é que ela desqualifica a existência de um sujeito moral, como alguém capaz de medir, de desenvolver e até mesmo perder e recuperar o controle sobre si. Na verdade, esta teoria pretende universalizar um único tipo de sujeito moral, que é aquele que perde sua autonomia diante do prazer. Assim colocada ela se aproxima das mais antigas crenças na possessão mágica do sujeito por entidades, agora transformadas em substâncias transcendentais. Por isso não parece um acaso que nos anos de florescimento desta concepção, tenham sido também os anos de apogeu da reflexão da felicidade como prazer.

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Mas observemos uma generalização imprecisa na observação de Freud. Ele diz que tais substâncias são embriagadoras e nos tornam insensíveis. Embriaguez é sinônimo aqui de torpor, ou saída de si, que associamos com a evasão das dificuldades e desprazeres da vida. Mas nem todas as drogas psicoativas são insensibilizantes, para as quais se aplicaria com precisão a ideia de narcótico. Entre as drogas lícitas há antidepressivos, antipsicóticos, estabilizadores de humor, depressores, hipnóticos e analgésicos. Há drogas alucinógenas e estimulantes que aumentam em vez de diminuir nossa sensibilidade. Há drogas que criam estados próximos da transcendência e do ultrapassamento de si mesmo, como os enteógenos. Diria-se assim que a criminalização da modulação de paisagens mentais é um erro porque ela não pune o comportamento (por exemplo dirigir alcoolizado, diminuindo reflexos e colocando a vida de outros em risco), mas estados mentais individualizados de prazer. Por que o Estado deveria poder se meter com o que acontece no mais íntimo de cada um de nós? Aqui a vertente neoliberal da felicidade parece entrar em contradição com suas premissas.

Mas a teoria de que a dependência é um efeito cerebral causado pela força que o prazer tem na determinação de nosso comportamento começou a ser abalada pelas pesquisas do psicólogo canadense Bruce Alexander a longo dos anos 1980 [3]. Ele observou que as pesquisas clássicas com animais sempre envolviam um ambiente muito pobre de estímulos, como pode ser uma caixa de Skinner, com ratos solitários com apenas duas barras, uma com água e comida outra com a droga como opção.

Em contraste com isso Alexander desenvolveu uma série de experimentos em torno da “ratolândia” (Rat Park). Neles, em vez da miséria engaiolada os ratos eram expostos a um ambiente amplo, com muitos brinquedos, situações exploratórias, outros ratos e ratas, enfim, tudo o que o melhor da bioengenharia humana para criar um paraíso terreno para ratos. Os resultados foram aterradores. O consumo de heroína ficou muito baixo e nenhum caso de opção preferencial pelas drogas. Mesmo forçando os ratos a experimentarem os prazeres da embriaguez, nenhum permanecia no “fluxo”.

A série de pesquisas ficou imediatamente conhecida, recebendo até mesmo uma versão em quadrinhos, o que ajudou o Canadá a ser um dos países pioneiros na liberação do uso de drogas, particularmente em Vancouver, onde Bruce Alexander trabalhava. No entanto foi aqui que coisas estranhas começaram a acontecer com Alexander. Apesar do reconhecimento internacional, sua linha de financiamento não foi renovada. Em 1995 a Organização Mundial de Saúde patrocinou um estudo mundial para generalizar os resultados de Alexander, mas inexplicavelmente não os publicou. Eles só se tornaram disponíveis pelo WikiLeaks [4] em 2009.

Podemos agora fazer uma generalização dos achados de Alexander. De fato, se a paisagem dos ratos engaiolados faz diferença no desenvolvimento da dependência química, não teríamos equivalentes deste processo em pessoas que vivem em “gaiolas” psíquicas ou materiais? Ou seja, uma vida orientada para obtenção de doses de prazer em gramática genérica (tipo trabalho ou fim de semana), de baixa qualidade (tipo bebida ou tédio) e individualizado (tipo solidão ou diluição grupal), associada com uma interpretação paranoide do prazer dos outros (como fonte de minha infelicidade) e um trabalho organizado ao modo de indução calculada de sofrimento, tudo isso cria uma civilização de infelizes dependentes. Por isso o último livro de Alexander é sobre a globalização da miséria do espírito e pelo fim da guerra contra as drogas [5]. Uma felicidade menos infantil pode advir da descriminalização das drogas. Deixemos o cérebro fazer apenas a parte que lhe cabe.

[1] Perry AN, Westenbroek C, Becker JB. The development of a preference for cocaine over food identifies individual rats with addiction-like behaviors. PLoS One. 2013;8(11):e79465. Published 2013 Nov 18. doi:10.1371/journal.pone.0079465

[2] Carneiro, Henrique (2010) Bebida, Abstinência e Temperança. São Paulo: Senac.

[3] Alexander, Bruce K; Schweighofer, Anton R. F (1988). “Defining ‘addiction'”. Canadian Psychology29 (2): 151–62.

[4] Goldacre, B. (2009, 13 June). “The cocaine study that got up the nose of the US” . The Guardian.

[5] Alexander, B.K. (2008). The Globalization of Addiction: A study in poverty of the spirit. Oxford, UK: Oxford University Press.

*Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo).

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#PraCegoVer: em destaque, fotografia em plano fechado que mostra um baseado aceso com a ponta voltada para a câmera, os dedos que o seguram e parte do rosto da pessoa, ao fundo desfocado; detalhe para o esmalte preto que aparece no dedo polegar. Foto: Luiz Michelini.

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