SÚMULA 70 DO TJRJ

Manifestante desfazendo um pedaço de maconha prensada. Destaque na camiseta que tem impressa a hashtag “#SoltaOPreso!”.

Como podemos ter justiça no julgamento de usuários de drogas, quando a palavra do policial é decisória na hora de diferenciá-lo de um traficante? É isso que a temida Súmula 70, editada recentemente pelo TJRJ, torna legítimo, prejudicando ainda mais um cenário já caótico por leis que estão longe de serem claras. Entenda mais sobre a questão na coluna semanal do advogado e ativista André Barros.

Quando um tribunal decide causas análogas repetidas vezes da mesma forma, elabora-se um pequeno verbete que registra uma interpretação pacífica ou majoritária sobre um tema específico. A finalidade é tornar pública a jurisprudência e uniformizar as decisões.

No Rio de Janeiro, em razão de reiteradas decisões condenatórias apenas com a palavra dos policiais, o TJRJ editou a terrível Súmula 70. A partir de sua publicação, qualquer pessoa, que estiver portando pequena quantidade de maconha ou de qualquer outra substância ilícita, pode ser condenada por tráfico de drogas apenas com a palavra do policial, que pode dizer que viu a venda da droga ilícita a partir de denúncia anônima, fato inclusive corriqueiro.

Assim é o verbete da súmula 70: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação.”

Trata-se de crime de consenso, pois tanto o vendedor quanto o comprador não querem a presença da polícia. Ao contrário do homicídio, roubo, estelionato, quando a vítima deseja a presença da polícia, a fim de prender o autor do crime. No tráfico de drogas, isto não existe. Assim, as decisões judiciais são tomadas apenas pela droga ilícita apreendida e pelos depoimentos dos policiais. A polícia civil pouco investiga, virou apenas um cartório de lavratura de flagrantes realizados pela polícia militar. Por isso, ninguém tem ideia de como essas armas poderosas chegam em número impressionante nas mãos de adolescentes e jovens negros e pobres.

Vivemos uma verdadeira farsa, pois o verdadeiro mercado em disputa é o da venda de armas e munições. Os traficantes e vendedores de armas e munições são milionários, que lavam seus bilhões em bancos e no mercado imobiliário. Assim, interessa a esse mercado elitizado uma polícia e um tráfico militarizado. Querem mais violência contra jovens, negros e pobres, todos trocando muitos tiros, onde vivem negros e pobres, para que mais armas e munições sejam comercializadas.

Assim, a justiça vai prendendo pessoas com pequenas quantidades apenas com a palavra dos policiais. Em quase todas as condenações por crime de tráfico de drogas, a súmula 70 é citada para penalizar jovens, negros e pobres a 10 anos de reclusão em regime inicialmente fechado. A história é quase sempre a mesma: o policial recebe pelo 190 uma denúncia anônima de que uma pessoa está vendendo drogas em determinada rua. Chegando ao local, visualiza a pessoa com as características descritas. Rapidamente, vê alguém se aproximar e comprar a droga. O comprador sempre consegue fugir e, como normalmente são dois policiais, alegam que a prisão teve de ser direcionada apenas vendedor. Após breve abordagem, com o mesmo é encontrada pequena quantidade e assim é preso em flagrante. Quase sempre jovem, negro, pobre, sozinho, desarmado e com pequena quantidade, a pessoa é flagrada e condenada a penas altíssimas em regime inicialmente fechado.

Essa súmula 70 é uma aberração e deve ser criticada. Cabe esclarecer, pode ser criticada, já que todas as decisões judiciais, como as súmulas, são públicas, pois a sociedade tem o direito de julgar se a justiça está ou não fazendo justiça.

Fotografia de Capa: Dave Coutinho | Smoke Buddies

Sobre André Barros

ANDRÉ BARROS é advogado da Marcha da Maconha, mestre em Ciências Penais, vice-presidente da Comissão de Direitos Sociais e Interlocução Sociopopular da Ordem dos Advogados do Brasil e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros
Deixe seu comentário
Assine a nossa newsletter e receba as melhores matérias diretamente no seu email!