Sopro de vidro: arte como expressão da cultura canábica no Brasil

Neste contexto que molda o vidro entre produto de consumo e arte, entre peças colecionáveis e comerciais, os jovens vidreiros brasileiros experimentam e se descobrem como artesãos, empresários e influenciadores de mais um dos incríveis nichos de mercado da maconha

Da mistura entre a sílica da areia fina com o carbonato de sódio, o cálcio e outros componentes químicos, em proporção exata e temperatura extremamente elevada, nasce o vidro: um material de uso universal cuja característica molecular desafia, há milênios, a ciência. A singularidade do vidro, que possui um estado físico próprio, chamado vítreo, e foi classificado por cientistas como um “sólido amórfico”, ou seja, sem formas, é uma brisa em si.

Derretido, vira um mel brilhante, viscoso, da cor e intensidade do sol, que se transforma sob a influência do calor, da gravidade e da pressão. Através das lentes de didímio, que protegem os olhos da radiação e do brilho intenso, é possível enxergar um universo, quase psicodélico, dentro deste mel hipnotizante – e vê-lo se metamorfosear em belas peças nas mãos de habilidosos artistas pode ser bem poético e inspirador.

“Eu sempre quis ser artesão”, confessa o vidreiro Caio Torres, de Belo Horizonte, ao lembrar o começo da KPipes, uma das primeiras marcas de peças artesanais feitas com a técnica de sopro em vidro exclusivamente para consumidores de maconha no país.

De origem incerta, a arte com vidro foi revolucionada pelos babilônios que, no século II a.C., inventaram um instrumento que permite moldar o material no formato desejado: o ferro de assoprar possibilitou ao vidro assumir as formas da criatividade humana, e, com a influência de outras técnicas e escolas, como a veneziana e a islâmica, ganhou status de arte, com direito a espaço em museus, hotéis de luxo e galerias – e, claro, nos acervos privados de apreciadores desta e de outras finas artes, como, por exemplo, a das extrações de cannabis.

“Quem experimenta haxixe em piteira de vidro entende a diferença da experiência”, comenta o soprador paulistano Bruno Carana, de 26 anos, sobre a função não apenas estética, mas funcional, do vidro para entusiastas canábicos.

Mas, afinal, o que define a linha entre objeto e arte, entre design e dom?

“Não tenho ideia de quanto eu gastei na minha coleção, porque eu não contei. Mas, em média, uns 10 mil reais”, conta o mineiro João*, assistente financeiro de 20 anos que possui cerca de 35 exemplares de piteiras de vidro exclusivas, sopradas por artistas brasileiros – além das “normais, simples”, como ele define, usadas no dia a dia. “Curto muito essa cultura da redução de danos e fico feliz com ela se expandindo de tal forma artística”.

A tendência que conquista as rodas e mentes esfumaçadas no Brasil pode até ter raiz na política de redução de danos, como sugere João, mas também está fortemente vinculada à cultura do consumo (de maconha e de acessórios canábicos), que ganha força por aqui com o apelo visual das redes sociais e, principalmente, com o surgimento de uma geração de sopradores que estão mudando a cena e, quem diria, fazendo grana com essa arte.

Quando tudo era mato…

“A gente tem 10 pessoas trabalhando aqui hoje, mas inicialmente, foi eu e o Ian (Vaz) que começamos com a ideia, em 2013”, conta Arthur Trevizam, mais conhecido como Jow, enquanto encosta em um pilar junto à recém-instalada churrasqueira de seu ateliê, em São Paulo, que conta com showroom e também oferece cursos particulares a pessoas interessadas na arte. “Eu só sabia o nome: Hippie Bong. A gente ficava pirando, imaginando que ia ter uma pista de skate, isso, aquilo. Na época, a gente fazia bong de caixinha de suco, caneta Bic. Minha mãe achava e jogava fora. E, de tanto fazer, a gente foi ficando bom nisso”, brinca.

O sopro de vidro artesanal no Brasil, ofício antes restrito aos produtores de utensílios laboratoriais, quase se extinguiu pela abertura da concorrência à vidraria da China. Mas, como grandes ideias cíclicas, ressurgiu para um novo propósito, a partir de uma brisa compartilhada e realizada por – e para – maconheiros.

Enquanto, em São Paulo, a Hippie Bong tomava forma na imaginação de Jow que, aos 16 anos e incentivado pela mãe, começou a estudar a arte em vidro; em Belo Horizonte, dois amigos descobriam a paixão pelo material em um curso de hialotécnica da UFMG. “Foi um curso de seis meses, super técnico, voltado para laboratório, mas onde a gente viu que podia fazer disso uma arte”, conta o soprador Pedro Muller, sócio fundador da KPipes. “Mas, como vidro demanda investimento, ficamos dois anos parados”, completa seu sócio, Caio.

Nesse meio tempo, Jow desembarcou na Califórnia para um curso especializado em sopro de vidro canábico. “Eu não conhecia o sopro de vidro como conheço hoje, essas peças artesanais, artísticas. Eu cheguei na porta da escola, vi uma abelha gigante de vidro. Quando o professor falou que era um pipe, aí que eu pirei”, conta ele.

Com conhecimento na bagagem e o investimento inicial para iniciar a produção no Brasil, Jow abriu, em 2015, seu primeiro ateliê, um espaço que dividia com Ian, na época tatuador – e, nas palavras do sócio, artista desde sempre.  “O vidro sempre foi o que mais me encantou, porém, de início, eu não tive apoio da minha mãe com nada relacionado ao vidro, por estar relacionado à maconha”, conta Ian.

No mesmo ano, em Beagá, com uma grana emprestada para comprar o primeiro cilindro de oxigênio, o estúdio KPipes também começou a funcionar. “Eu tinha estudado design de interiores e vivia fazendo uns bicos, e posso dizer que o sopro de vidro me tirou da clandestinidade”, conta Caio, que começou vendendo suas peças na praça do Papa, um pico legalize da capital mineira – peças que, hoje, ele distribui para vários estados, incluindo São Paulo, seu maior mercado, e a região Nordeste. “Mas a ideia não era abrir uma empresa, era soprar vidro”.

Hippies de negócios

“Há 4 anos, 99% das pessoas não conheciam a piteira de vidro e tinham certa resistência até com o valor da mais básica. Hoje, existem colecionadores que estão dispostos a gastar centenas de reais em peças produzidas por nós”, conta Ian.

Não é preciso muito para confirmar essa teoria. Basta passar os olhos no perfil da Hippie Bong no Instagram para perceber que os leilões, que rolam com frequência, não apenas geram interesse, mas altos lances. “Minha peça mais cara é a piteira do Snoop Dogg, que eu adquiri no leilão da Hippie Bong no valor de R$ 900”, conta o colecionador, que diz ter um cuidado especial com as peças arrematadas. “Eu mantenho elas sempre dentro da caixinha, guardadas, e uso a maioria da coleção só em ocasiões especiais. Lavo todas na hora com acetona pura em um recipiente, e não reutilizo nunca a acetona”.

O crescente interesse pelas piteiras de vidro, cujos valores e modelos variam drasticamente, atendendo a públicos diversos, acompanha também o aumento, ainda que tímido, do número de sopradores no Brasil – um grupo de WhatsApp que reúne os sopradores canábicos brasileiros soma cerca de vinte profissionais, espalhados pelo país, que ensinam, trocam, aprendem e, incrivelmente, regulam este nicho de mercado em ascensão.  A vinda de novos profissionais é “importantíssima”, nas palavras do mineiro Pedro. “Ainda somos poucos sopradores”, ele explica.

“Acho que alguns caras vão evoluir, alguns grupos de sopradores, para fazer peças exclusivas, mais pela arte. Para baixo disso, vai ter gente que só vai vender atacado, vai no preço mesmo, o que eu também acho justo, viável”, explica Rafael Bonhomme, vidreiro e fundador da BHO Glass, de Foz do Iguaçu. “O Brasil é muito grande, tem lugar para todo mundo”.

Rafael conta que, no curso presencial que ele oferece em seu ateliê, inaugurado ano passado, há quem se interesse nas aulas apenas pelo retorno financeiro. Porém, parece um engano pensar no sopro de vidro como uma fonte de riqueza, já que o investimento para esta arte não é, nem de perto, acessível. Para começar, os principais equipamentos, como o maçarico e o forno, têm custos proibitivos no Brasil, o que, ironicamente, torna a importação uma alternativa mais econômica – isso sem considerar as taxas e o câmbio do dólar.

“O forno eu consegui comprar aqui. É para cerâmica, não para vidro, só que vai até 1000ºC, então ele serve para mim. Por enquanto, ‘tá’ bom pra caramba”, explica o soprador Ryan Crispim, de 22 anos, enquanto cria um pipe de vidro com vapor de prata em seu ateliê, Gecko Glass, em Osasco, na Grande São Paulo. “Essa daqui é uma chave de fenda, eu tirei o Phillips dela e afiei. Eu uso ela para fazer praticamente piteira. Então, sem ela eu não sou ninguém. Porque o que mais vende é piteira, né? A faca eu uso para modelar às vezes, fazer umas marcas no vidro”.

Além dos equipamentos, há os bastões de vidro borosilicato, matéria-prima das peças, que são caros ou difíceis de encontrar – coloridos, então, esquece! Ferramentas de grafite, próprias para a manipulação do material, e outros requisitos para o trabalho com vidro, como um sistema de ventilação e uma instalação profissional dos botijões de gás (oxigênio e de cozinha) no ateliê, encarecem ainda mais a produção.

“A gente estava tendo uma discussão no grupo de sopradores sobre como estava o preço da galera, de tentar fazer uns preços mais ou menos igual, para não prostituir o negócio. Tem uns caras que fazem piteiras super bonitas, trabalhadas, e vendem a R$ 15. Tem que tomar cuidado com isso”, conta Gecko.

Fuck China Glass

É unânime entre os sopradores entrevistados o papel da vidraria chinesa, ou “china glass”, termo dado aos produtos importados e/ou fabricados com vidro de menor qualidade, para o fortalecimento de uma cultura de vidro no Brasil.

“Hoje o brasileiro vai na head shop e quer ter a experiência de comprar um bong. Ele não sabe que vidro é, o trabalho que foi feito, a técnica. Então, tem bongs em todas as tabacarias do Brasil a partir de R$ 150, bongs legais. Não é vidro colorido, é pintado, enfim, mas isso o cliente não sabe”, explica Rafael. “Eu acho sinceramente que a ‘vidraçaria china’ ajuda, porque consegue espalhar o vidro. Tem o brasileiro que não quer jamais gastar R$ 600 em um bong. Quer gastar R$ 150 e ter uma experiência. Mas se ele curtir e usar muito, vai procurar saber que tem gente soprando por aqui”.

Lá fora, onde uma peça assinada por um soprador famoso, como o Banjo, pode chegar a US$ 1 milhão, por exemplo, existe uma cultura forte – e bem mais longa – de extrações e subprodutos de cannabis, que permite o desenvolvimento dos acessórios que acompanham tal consumo.

Por outro lado, enquanto os artesãos brasileiros, ainda que poucos, batalham por espaço no atacado em praticamente apenas um produto, relativamente barato e simples de fazer, como a piteira, a concorrência considerada desleal pode esquentar um pouco as coisas por aqui.

“O mercado está crescendo tanto que já estão até copiando os nossos produtos. Nossos e de alguns outros vidreiros parceiros. Seja roubando um design e mandando para uma fábrica chinesa fabricar centenas de réplicas de uma peça artística, ou até mesmo alguns vidreiros brasileiros antiéticos que aceitam reproduzir peças criadas por outros artistas”, explica Ian, que lamenta ainda a burocracia do sistema de patentes no Brasil. “Dependemos do bom senso dos clientes e colecionadores que felizmente acabam recusando essas cópias e informando a gente”.

De mestre a aprendiz

Certa vez, enquanto aguardava por uma aula particular que acompanharia na Hippie Bong, ouvi a conversa de três caras que olhavam as vitrines da loja. “Eu preciso comprar uma case para guardar minha coleção”, dizia um. “Eu já tenho Hippie Bong, KPipes e BHO”, ostentava o outro. Foi aí que me dei conta da força do sopro de vidro como forma de expressão de uma cultura que, infelizmente, ainda não pode manifestar livremente o amor pela erva, extravasado em outras manifestações artísticas, como na música, na moda e na fotografia.

Naquela tarde, fui apresentada a Éric Sato, de 19 anos, por mera (e feliz) coincidência – ele era o aluno cuja aula eu assistiria. O jovem vidreiro à frente da recém-lançada marca Sato tem uma história curiosa, porque foge do óbvio. Ele descobriu o sopro de vidro canábico aos 15, mas não através da maconha: “já provei, mas não fumo”, diz. Agilizado desde sempre, queria trabalhar e conseguiu uma vaga como assistente em uma empresa que fazia piteiras, bongs e outros apetrechos para tabacarias. Como viu que o mercado está aquecendo, estrategicamente procurou se especializar.

“Eu queria me atualizar no mercado de sopro, conhecer técnicas novas, fazer peças mais elaboradas e aperfeiçoar o que eu já sabia fazer”, conta ele. “Não sabia que existia sopradores tão bons no ramo no Brasil, conheci através do Instagram”.

É na esfera virtual que o movimento ganha força e se espalha, gerando curiosidade e interesse e conectando pares. Mas quando o assunto é o aprendizado sobre a arte, o contato real entre mestres e aprendizes é essencial. “Como você mais aprende é vendo uma pessoa, depois você vai pra casa e treina, mas ver é o mais importante”, explica Jow, que começou a oferecer workshops na Hippie Bong a partir do interesse de amigos pelo ofício.

O curso, presencial e individual, é feito sob medida de acordo com o nível de conhecimento, a intenção e o tempo disponível de cada aluno, que recebe aulas de vidreiros especializados em técnicas diferentes, como minimalismo ou Wig Wag.

No estúdio da BHO Glass, em Foz do Iguaçu, o curso passa por questões relevantes não apenas à arte, mas ao ofício: a escolha dos equipamentos importados, segurança e instalações do ateliê, por exemplo, são pontos esclarecidos pelo professor que, autodidata, aprendeu na raça as dores e delícias desta profissão. “Então, eu preparei uma apostila com tudo que tem na minha cabeça que eu acho que um soprador precisaria saber”, diz Rafael.

Elevação à arte

Enquanto o conhecimento sobre o sopro de vidro canábico se fortalece com iniciativas como estas, o fato é que o vidro como arte está além da forma e da técnica, do design e da função. Tem a ver com identidade. “Eu acho que todos nós estamos, de alguma forma, em busca de uma identidade artística”, confessa Pedro.

A busca por um estilo, uma assinatura, uma marca intrínseca ao artista move os vidreiros brasileiros a desafiarem a física deste material e criarem peças não apenas funcionais, mas realmente artísticas – como as reproduções minimalistas de Ian, as caveiras do Caio e os tubos torcidos do Gecko – ou até mesmo os pingentes psicodélicos do Bruno, que começou sua trajetória no vidro como aluno e assistente e hoje é um dos artistas da Hippie Bong.

“Como sempre gostei de lego e miniaturas, foi inconsciente o processo de ir diminuindo as peças até um dia querer brincar para ver o quão pequeno eu conseguia fazer uma abelhinha. Foi aí que surgiu o start para desenvolver todo o repertório de mais de 30 piteiras com miniaturas diferentes”, conta Ian, que se recusa, porém, a ser definido. “As pessoas de fora dizem que eu sou especialista em miniaturas, mas sinto essa definição limitadora”, reflete.

De fato, a palavra “limitadora” não cabe neste contexto, que molda o vidro entre produto de consumo e arte, entre peças colecionáveis e comerciais, e onde jovens vidreiros experimentam e se descobrem como artesãos, empresários e influenciadores de mais um dos incríveis nichos de mercado da maconha.

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#PraCegoVer: a fotografia de capa mostra, em perfil, o vidreiro Caio Torres, da KPipes, à direita, usando óculos e expelindo fumaça na direção da chama de um maçarico acesso, cuja luz clara gera um efeito de nuvem no trago, em contraste com um fundo escuro. Foto: Pedro Muller | KPipes.

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Sobre Thaís Ritli

Thaís Ritli é jornalista especializada em cannabis e editora-chefe na Smoke Buddies, onde também escreve perfis, crônicas e outras brisas.
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