Sem a descriminalização da maconha, continuaremos como traficantes

#PraCegoVer: ilustração de várias pessoas de costas, com as mãos algemadas para trás, enfileiradas lado a lado. Crédito da ilustração: Brian Stauffer para Human Rights Watch. maconha

Supremo Tribunal Federal vai julgar ‘só Deus sabe quando’ processo que pode descriminalizar porte de drogas para consumo pessoal. Tema que começou a ser julgado em 2015 segue estagnado desde então, e consumidores continuam sendo presos e condenados como traficantes

Entre promessas de entrega de voto, retorno de julgamento e adiamentos, mais de duas dezenas de matérias, nos últimos 4 anos, colocaram o Recurso Extraordinário (RE) 635.659 em pauta, trazendo esperança a uma nova abordagem em relação ao porte de maconha e outras drogas na sociedade brasileira.

O julgamento, que estava com retorno previsto para 6 de novembro, foi retirado mais uma vez da pauta, sem previsão de retorno. Enquanto isso, sem uma definição de quantidade, consumidores seguem sendo acusados e condenados por tráfico de drogas, correndo riscos de morte e de serem enquadrados em outros crimes.

Leia mais: No ritmo que segue, decisão sobre descriminalização das drogas tem longo caminho no STF

Afinal, o que é o RE 635.659?

Tudo começou em 2011, quando Francisco Benedito de Souza foi pego com 3 gramas de maconha dentro de uma cela de uma penitenciária em Diadema (SP). A Defensoria-Pública de São Paulo foi responsável por entrar com o Recurso Extraordinário (RE) 635.659, que pede a inconstitucionalidade do artigo 28 com a justificativa que o mesmo ofende as garantias da inviolabilidade da intimidade e da vida privada.

Após 4 anos, no segundo semestre de 2015, o RE entrou na pauta do STF, que ficou responsável por julgá-lo – e cuja decisão seria replicada para todos os casos semelhantes em todo o território nacional. Em outras palavras: se decidissem por julgar o art. 28 como inconstitucional, já que o tema foi considerado de grande repercussão, relevância social e jurídica, grande parte dos consumidores e acusados por tráfico seriam tratados de forma diferente.

Após diversas sessões – as quais a Smoke Buddies acompanhou do começo ao fim, sem tirar os olhos da tela, e que levaram milhares de brasileiros a sintonizarem na TV Justiça –, os ministros Gilmar MendesEdson Fachin e Luís Roberto Barroso declaram seus votos a favor da descriminalização do porte de maconha, para a alegria de todos. 3×0: tem como não ficar feliz, viajando nas mudanças que estavam a alguns passos de ocorrer?

Porém, quando a esmola é muita, o santo desconfia. No dia 9 de setembro de 2015, quando o RE 635.659 chegou nas mãos do ministro Teori Zavascki, o processo foi freado. Teori pediu vista, requisitando mais tempo para analisar o assunto. Na época, tentamos contato com o gabinete, mas não tivemos resposta. Tudo indicava que não havia previsão de retomada do julgamento, o que, por fim, se confirmou: mais de um ano depois do pedido de vista, morre tragicamente o ministro Teori Zavascki, em janeiro de 2017, sem efetuar a entrega do seu voto.

Herdando a cadeira e processos de Teori, Alexandre de Moraes, indicado pelo ex-presidente Michel Temer, liberou seu voto em 23 de novembro de 2018, depois de um hiato de quase dois anos. Por fim, com o processo liberado, aguardamos meses na expectativa de entrada da matéria na pauta de julgamentos do Supremo, o que até ocorreu, por duas vezes, mas foi, por duas vezes também, adiada pelo presidente da Casa, o ministro Dias Toffoli: uma, em junho, por conta do julgamento pela criminalização da homofobia e outra, em novembro, por conta da prisão em segunda instância.

Negligência Suprema

A negligência do Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal vai além do que muitos imaginam que é a restrição da liberdade individual da pessoa que escolheu consumir maconha, por exemplo.

Em um breve resumo histórico, que pode ser verificado com uma rápida consulta no Google, que lista quase 600 mil resultados, é perceptível que no Brasil a proibição da maconha e de outras drogas é de cunho racista.

Atualmente, o uso de drogas não é crime, mas, se não for para uso pessoal, o porte de entorpecentes é. E a distinção entre uso e tráfico fica a cargo do juiz, que determina caso a caso se o usuário pego com drogas pode ser liberado sem punição, ou depois de uma advertência, ou se cabe uma pena mais grave, como a prestação de serviços, ou mesmo penas por tráfico de drogas. Entretanto, a condenação pelo porte de drogas para uso pessoal “ofende o princípio da intimidade e vida privada”, garantido pelo artigo 5º da Constituição Federal.

Já é mais do que sabido que o porte de drogas para uso próprio não afronta a chamada “saúde pública”, mas apenas, e quando muito, a saúde pessoal do próprio usuário. A Lei de drogas e suas aplicações no Brasil continuarão obscuras e dúbias enquanto não houver uma definição clara sobre o tema, e jovens, sobretudo os negros e pobres, pegos com pequenas quantidades de maconha continuarão sendo encarcerados em massa, tratados como traficantes, assim como as mulheres em condições mais vulneráveis, que superlotam as penitenciárias – segundo o INFOPEN (2018), “crimes relacionados ao tráfico de drogas correspondem a 62% das incidências penais pelas quais as mulheres privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento em 2016”.

Assim continuamos todos, ou quase todos, traficantes

Deixemos a hipocrisia de lado e falemos da realidade que, por algumas vezes, já fora explanada até pelo Dr. Drauzio Varella: TODO USUÁRIO DE DROGAS ILÍCITAS – graças a atual lei – É UM POTENCIAL TRAFICANTE. Assim é a realidade de uma parcela de quem consome substâncias ilícitas no Brasil que, para minimizar danos e riscos, como abordagem policial, fazem ou pedem a amigos para “fazer o corre”, ou seja, comprar a droga.

Se chocou? Que bom, esse é o objetivo. Afinal, essa é a real de quem consome e é assim que uma parcela dos consumidores são vistos pelos agentes da lei e pelos juízes, que definem a vida de uma pessoa com base em achismos, provas fracas, testemunhos de policiais e, muitas vezes, cor da pele e classe social.

Hoje, quando uma pessoa é flagrada portando drogas, nos deparamos com dois cenários: se for branco e morador de área nobre, flagrado com algumas trouxinhas de maconha, possivelmente será conduzido a uma delegacia e assinará como um usuário, mas quando a cor da pele é diferente a realidade é outra.

Negro e pobre, próximo de alguma periferia, possivelmente será detido como acusado de tráfico de drogas e aguardará, com risco de morte, por tempo indeterminado (apesar do sistema judiciário determinar diferente, essa é a realidade) um julgamento que poderá condená-lo como traficante, além de outros crimes.

Mas, você deve estar se perguntando: como assim, a pessoa foi pega com 5 trouxinhas de maconha e pode acabar condenada por outros crimes, e ainda corre risco de morte?

Sim, infelizmente essa é a realidade. A pessoa acusada, diante da superlotação das celas das cadeias e da demora do julgamento, é transferida para uma penitenciária super lotada, com seus pátios e celas comandadas por facções e pessoas que cometeram crimes violentos. Advinha só, tal como vemos nos seriados e com um cenário infinitamente pior, muitas vezes, para se manter vivo lá dentro é necessário cometer crimes. Logo, um mero consumidor de maconha pego com 5 trouxinhas pode ter dois finais: adicionar mais um crime a sua lista de condenações ou terminar de forma pior: morto. Como foi o caso de um dos mortos no massacre de 55 presos, que ocorreu em um presídio em Manaus, em maio deste ano: um usuário acusado de tráfico que não teve tempo de ser julgado, como relatou o magistrado Luís Carlos Valois.

#PraCegoVer: ilustração de várias pessoas de costas, com as mãos algemadas para trás, enfileiradas lado a lado. Crédito da ilustração: Brian Stauffer para Human Rights Watch.

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Sobre Dave Coutinho

Carioca, Maconheiro, Ativista na Luta pela Legalização da Maconha e outras causas. CEO "faz-tudo" e Co-fundador da Smoke Buddies, um projeto que começou em 2011 e para o qual, desde então, tenho me dedicado exclusivamente.
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