Saúde mental e políticas de atenção a usuários de drogas

Fotografia que mostra uma porção de cápsulas translúcidas sob um feixe de luz que vem do fundo, em uma superfície cinza-escuro, onde também se vê algumas pílulas amarelas centralizadas na parte superior do quadro, fora do foco. Imagem: Anshu A | Unsplash.

Proposta de cuidado a pessoas que fazem uso problemático de psicoativos é complexa. Modelo substitui a abstinência pela busca de inserção do usuário em políticas sociais como meta principal. As informações são do jornal Nexo

Políticas de cuidado a pessoas que fazem uso problemático de drogas respondem não só ao direito à saúde, mas ao dever do Estado de combater a marginalização de pessoas vulnerabilizadas. Dadas as evidências de que o uso descontrolado de psicoativos não é causa, mas efeito da exclusão social, o Ministério da Saúde instituiu, no início dos anos 2000, a Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas no âmbito de sua área de saúde mental. A política é ancorada nos mesmos pilares da reforma psiquiátrica, implementada no país desde a década de 1980, e prescreve a atenção psicossocial para usuários de psicoativos, por meio do cuidado em liberdade, segundo a lógica da redução de danos — estratégia que desloca o primado da abstinência no tratamento das adicções, em favor da promoção da saúde integral dos sujeitos tratados. Por essas inovações, a política representa uma mudança paradigmática na abordagem dos consumos problemáticos de drogas.

Considerando que algumas políticas, ainda que concebidas pelo governo federal, são implementadas pelos governos subnacionais, e que, por isso, elas costumam sofrer adaptações e alterações quando chegam aos seus destinatários, realizamos pesquisas, no âmbito do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a fim de saber como a referida política tem sido posta em ação em diferentes locais. Adotando metodologia qualitativa, a pesquisa focalizou os serviços criados por essa política — os Caps AD (Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas) e as Unidades de Acolhimento — no Distrito Federal e na cidade do Rio de Janeiro.

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Entre nossos achados, há que se destacar, primeiramente, a grande complexidade do modelo de cuidado proposto. Ao abandonar a abstinência como meta principal e privilegiar a atenção sobre a existência de seus pacientes — sua inserção laboral, seu acesso à saúde, à cultura, à educação etc. — buscando inseri-los nos fluxos assistenciais das diversas políticas sociais, os Caps AD enfrentam a já reconhecida multidimensionalidade do problema das drogas. Assim, tomam para si a responsabilidade de produzir e sustentar articulações entre dezenas de instituições dos setores público, privado e da sociedade civil nos seus territórios. Trata-se de tarefa desafiadora em um contexto de crescente escassez de recursos financeiros e humanos, além de déficits de infraestrutura básica (como a ausência de linhas de telefone, computadores e veículos).

Chama atenção também a mobilização da redução de danos como lógica do cuidado nestes serviços. Muitas vezes atravessado por incompreensões de pacientes, de seus familiares e dos próprios profissionais, o uso desta lógica acaba motivando reflexão, criatividade e experimentação na construção de planos terapêuticos singulares, continuamente adaptados para melhor adequação às situações vividas pelos atendidos. Há considerável consenso, entre todos esses atores, de que a autonomia dos pacientes para decidirem sobre seu tratamento é pressuposto inegociável do modelo. Nesse sentido, cabe mencionar o incontestável comprometimento dos profissionais com o público atendido e com os pilares da política (redução de danos, autonomia do usuário, cuidado em liberdade, atenção psicossocial, cuidado em rede e equipe multiprofissional), fato nem sempre ressaltado nas avaliações de serviços públicos.

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Outro achado importante diz respeito às Unidades de Acolhimento, dispositivos de caráter residencial, articulados com os Caps AD, e também pautados na redução de danos. Os resultados da pesquisa indicam que essas unidades cumprem papel crítico em viabilizar acesso ao tratamento por parte de pessoas em situação de rua ou sob ameaças de violência. Conforme verificado no estudo, a ausência desses dispositivos implica em menor alcance dos serviços junto aos segmentos mais vulnerabilizados do seu público-alvo. A Unidade de Acolhimento é um serviço em constante debate, entre os próprios implementadores da política, e ainda em processo de assimilação e reconhecimento pela rede de atenção psicossocial para álcool e outras drogas. Desafios relativos ao financiamento desses serviços repercutem na oferta de vagas, bem inferior à demanda por abrigamento de usuários em situação de vulnerabilidade. Apesar dessas dificuldades, é evidente o caráter inovador desse dispositivo, que agrega produção de cuidado, promoção de saúde e residencialidade, afastando-se das práticas hospitalares.

Apesar dos avanços, a política de atenção a usuários de drogas tem sido objeto de questionamento desde 2016, e diversas medidas vêm sendo tomadas com vistas ao seu desmonte, envolvendo a retomada de internações (inclusive forçadas) de usuários de drogas em clínicas e comunidades terapêuticas, com apoio de recursos públicos. Neste cenário de mudanças, o debate público sobre o tema e a tomada de decisões baseadas em evidências tornam-se indispensáveis. Além disso, os governos subnacionais assumem papel decisivo, uma vez que dispõem de relativa autonomia frente ao governo federal para sustentarem a oferta de serviços assistenciais a pessoas afetadas por usos problemáticos de drogas que resguardem seus direitos fundamentais.

Maria Paula Santos é doutora em ciência política pelo Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e técnica de planejamento de pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Roberto Pires é doutor em políticas públicas pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e técnico de planejamento de pesquisa do Ipea.

Beatriz Brandão é doutora em ciências sociais pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e pesquisadora associada do Ipea.

Luiza Rosa é graduada em gestão pública pela UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora associada do Ipea.

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#PraCegoVer: fotografia que mostra uma porção de cápsulas translúcidas sob um feixe de luz que vem do fundo, em uma superfície cinza-escuro, onde também se vê algumas pílulas amarelas centralizadas na parte superior do quadro, fora do foco. Imagem: Anshu A | Unsplash.

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