Salvo-conduto para cultivar cannabis medicinal, como obter?

Foto que mostra, em fundo escuro, parte de um pé de cannabis (maconha) em cultivo, com folhas serrilhadas e, no topo, a flor em desenvolvimento. Colorado. Julgamento

Na busca por responder a esta dúvida, realizamos um levantamento com pessoas envolvidas no universo da cannabis terapêutica para traçar um caminho que possa ser seguido por todos

Desde 2014, quando o debate sobre o plantio, a colheita e produção de produtos à base de cannabis começou a ganhar força no Brasil, essa é uma das perguntas mais enviadas às nossas caixas de mensagens. Em virtude disso, e considerando que nada é permanente quando se trata de ter acesso à maconha e/ou seus derivados, realizamos um levantamento com especialistas, juristas e pacientes que utilizam maconha com fins terapêuticos para traçar um caminho que possa, por enquanto, ser seguido por todos.

Os brasileiros possuem uma história relativamente longa com a cannabis. Trazida e utilizada por nossos ancestrais e conhecida, em épocas passadas, como “pito do pango” ou “Cigarros Índios”, proporcionava alívio e tratamento de certas condições há tempos, até ser proibida, por motivos racistas.

Mas, a história começou a mudar no final de 2013, começo de 2014, quando grupos de pais e pacientes, motivados pelas histórias do consumo de maconha para fins terapêuticos em casos de epilepsia refratária nos Estados Unidos, passaram a pressionar os órgãos regulatórios e a Justiça brasileira para o uso e liberação da importação de produtos à base de cannabis.

Em abril de 2014, a família de Anny Fischer obteve laudo médico e conseguiu na Justiça autorização para importar, dos Estados Unidos, um óleo rico em canabidiol (CBD) para tratar a criança, portadora de uma síndrome rara. A partir disso, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa, recebeu mais pedidos de autorizações para importação de extratos e óleos, ricos em CBD.

De 2014 em diante, e após pressão popular, muita coisa mudou — dos conselhos regionais de medicina autorizarem a prescrição por profissional de saúde à ordem judicial determinando a retirada do THC, Tetraidrocanabinol, das listas de substâncias que não poderiam ser prescritas e manipuladas como medicamento no país. E de lá pra cá, vimos surgir critérios para uso de produtos à base de maconha, registro e chegada de medicamentos a um preço inacessível às farmácias, além de muitos debates, onde os mais beneficiados foram as empresas que desejam produzir e vender produtos de cannabis, e menos os pacientes e associações espalhados pelo país.

Com um aumento exponencial de 542%, desde 2015, o número de pacientes solicitando importação, que era de 826 pessoas, saltou — o 3º trimestre de 2019 totalizou 9.540 cadastros de novos pacientes, segundo dados da Anvisa enviados à Smoke Buddies. Hoje, são mais de 30 associações de cannabis medicinal no país, mas apenas a Abrace Esperança, em João Pessoa (PB), é autorizada pela Justiça Federal a cultivar, produzir e fornecer produtos à base de cannabis, atendendo mais de 3.200 pacientes. Ainda segundo a Anvisa, o total de solicitações para importação desde 2015 foi de 13.864 até o terceiro trimestre de 2019.

No cálculo realizado com base em um paciente que possui prescrição médica e autorização de importação de até 11 frascos de 5.000 mg de CBD em 100 ml, quantidade prescrita para um ano para atender a um quadro de ansiedade, o custo da importação gira em USD 275,00 por unidade, mais 75 dólares de frete, totalizando para o tratamento a despesa de USD 3.100 que, diante da variação cambial (R$ 4,52) pode chegar ao valor de R$ 14.000 ao ano.

Desta forma, o tratamento se torna insustentável para a maioria das pessoas que poderiam usar a maconha e seus derivados para fins terapêuticos, levando pacientes a uma via-crúcis de acesso ao medicamento. Algumas pessoas buscam as associações canábicas que, por ora, dependem de uma rede de pacientes que já cultivam com amparo da Justiça ou de cultivadores caseiros que, mesmo sob risco de prisão, cultivam para produzir e fornecer o óleo/extrato aos pacientes. Em ambas as vias, nem sempre é garantido o acesso, devido ao volume de associados e condições adversas, como perda do cultivo por operação policial ou por fatores naturais.

À deriva de uma solução, muitos pais, mães e pacientes optam pelo autocultivo e produção caseira dos extratos e óleos à base de cannabis. Sendo que muitos destes pacientes e associações seguem sob as sombras da lei, tendo em vista que sem autorização, no Brasil, ainda é proibido cultivar maconha e produzir produtos, como os óleos e extratos ricos em canabinoides.

Habeas Corpus

Diante disso, chegamos a umas das questões que mais recebemos na Smoke Buddies: “Como obter um Habeas Corpus para cultivar maconha para fins medicinais?”.

Atualmente, em agosto, somamos mais de 100 decisões judiciais permitem o cultivo caseiro, em diferentes partes do país. E com base nos casos de sucesso, a Rede Reforma, responsável por boa parte dos pedidos, compartilhou um roteiro sobre os principais passos para se obter um Habeas Corpus, do qual extraímos as etapas e processos descritos a seguir.

Como o Dr. Erik Torquato, membro da Rede Reforma, explicou em artigo publicado na sua coluna Pergunte ao Doutor!, “Habeas Corpus é uma ação judicial prevista na Constituição para proteger o cidadão de uma ameaça ao seu direito de locomoção ou contra ato abusivo de uma autoridade. A intenção deste tipo de ação é resguardar o cultivador da ameaça de ser preso”.

Ou seja, uma decisão que resguarda o paciente e seus familiares que já cultivam maconha para tratamentos terapêuticos, sendo que qualquer cidadão pode impetrar um Habeas Corpus. Torquato explica também que não se trata de um pedido de autorização para iniciar o cultivo, mas uma decisão que garante que aquele que já cultiva possa continuar fazendo, sem risco de ser preso.

Paciente

Alguns passos são essenciais para impetrar o Habeas Corpus e pedir o salvo-conduto para cultivar cannabis com finalidades terapêuticas. O primeiro de tudo é possuir um quadro clínico real para ser paciente de cannabis terapêutica.

Atualmente, inúmeras condições podem ser beneficiadas com terapias à base de cannabis. Se você possui um quadro clínico real, o primeiro passo é marcar uma consulta com um(a) profissional de saúde, onde seu caso será analisado e, caso necessário, será emitida uma prescrição médica indicando o uso da cannabis (seja produto importado ou artesanal), informando posologia, com a Classificação Internacional da Doença – CID e CRM do médico, além de laudo médico, bem elaborado, com relatos de todo o histórico clínico (tratamentos já tentados e efeitos colaterais).

O respaldo de um profissional de saúde se faz necessário não só para quem quer pedir o HC ou importar o produto à base de cannabis, mas também, principalmente, pelo acompanhamento do tratamento e saúde do paciente. Atualmente, o número de prescritores especializados em terapias à base de cannabis gira em torno de 1.200 profissionais.

Muitas pessoas que possuem um quadro clínico em que a cannabis pode ajudar recorrem aos profissionais parceiros de associações, como a Abracannabis, no Rio de Janeiro, que registra uma média de 45 a 60 novos acolhimentos por mês, para atendimento e acompanhamento. Após o acolhimento, o paciente passa por uma consulta médica, com médicos especialistas. Esse atendimento é gratuito”, conta a diretoria da organização.

Além dos atendimentos médicos sem custo realizados por redes de apoio como a Abracannabis, pacientes no Rio ainda têm a opção de agendar consulta, paga, em uma clínica médica especializada em tratamentos com produtos à base de cannabis. Em funcionamento desde dezembro passado no bairro de Botafogo, a clínica Gravital atende (no local ou ‘home care’) pacientes de todas as idades mediante agendamento prévio.

Leia mais: Clínica especializada em cannabis inaugura primeira unidade no Rio de Janeiro

Anvisa e autorização de importação

Com a prescrição em mãos, os pacientes devem se cadastrar junto à agência reguladora, por meio do formulário eletrônico disponível no Portal de Serviços do Governo Federal. O cadastramento deve ser feito em nome do paciente ou de seu responsável legal. A aprovação do cadastro dependerá da avaliação da Anvisa e será comunicada ao paciente ou responsável legal por meio de autorização emitida pela Agência.

Em janeiro deste ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) definiu novos critérios que facilitam o procedimento para importação de produtos à base de cannabis por pessoa física e para uso individual. Entre eles, a redução dos documentos a serem apresentados, bastando hoje apenas a prescrição médica, além do aumento no prazo de validade das autorizações de importação, de um ano para dois anos, e da redução significativa do prazo de emissão da autorização, que chegou a levar entre 45 e 75 dias, para 10 dias.

Para o cadastramento, é necessário apresentar a prescrição médica, obrigatoriamente, o nome do paciente e do produto, posologia, data, assinatura e número do registro do profissional prescritor em seu conselho de classe. Diante de nova regra, o cadastro é válido por dois anos.

Orçamento

É muito provável que a prescrição médica já contenha uma quantidade necessária para um ano de tratamento, ou seja, por volta de 12 a 13 frascos. Como mostramos no caso acima, o paciente, que optou por um produto importado, obteve o orçamento para 11 frascos de 5.000 mg de CBD em 100 ml a um custo total de R$ 14.000,00, aproximadamente.

Por mais que a intenção não seja importar medicamentos à base de maconha, os processos acima são importantes para registrar documentação e fortalecer o caso, na ocasião do pedido de salvo-conduto de cultivo doméstico. Tendo o orçamento de importação em mãos, por exemplo, fica fácil provar ao juiz que o custo desta via de acesso impossibilita o tratamento.

Iniciando o Cultivo

Diante de um valor insustentável para importar medicamentos, pacientes buscam cursos de cultivo doméstico de cannabis e de elaboração do extrato artesanal, muitos oferecidos pelas próprias associações, para começar a produzir o próprio medicamento. Nesta etapa, é importante guardar certificados e declarações de aprendizado, cursos e guias sobre as técnicas de cultivo e extração artesanal, podem ser necessários para o Habeas Corpus. Caso não seja fornecido, serve uma autodeclaração de estudo e experiência.

Seja um associado

A importância das associações vai além do acolhimento inicial, como dito acima. Muitas redes de apoio ministram cursos de cultivo e elaboração do extrato artesanal, além de compartilhar experiências e informações que reforçam a percepção da finalidade em prol da saúde e bem-estar do paciente.

Em geral, as associações dependem da contribuição voluntária para garantir a continuidade do trabalho e atendimento às pessoas que possuem dificuldades financeiras. Faça parte e, além de ajudar estas organizações, guarde documentos que mostrem seu engajamento para anexar ao processo.

Reforce a importância

A Rede Reforma aconselha em suas orientações que se reforce a importância do uso da cannabis na melhora do quadro clínico, com laudos de outros profissionais médicos, enfermeiros, terapeutas, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, professores e entre outros que acompanham a evolução do tratamento com cannabis.

É importante também um relato manuscrito do paciente ou familiar contando a história de vida, sobre a doença, o tratamento e a melhora.

Converse com um advogado

Com toda documentação em mãos, busque orientação jurídica com advogados que tenham intimidade com a ação de Habeas Corpus e com o tema da cannabis, para ingressar na Justiça. É importante informar o tempo de cultivo, número de plantas que o paciente precisa, a espécie cultivada e como aprendeu a cultivar, segundo orientações da Reforma.

A Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas luta na frente pela regulamentação dos usos e acessos da cannabis, na defesa de cultivadores, pacientes e usuários. Com atuação nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná, Pernambuco e Ceará, seus advogados podem ser contactados pelo contato@reforma.org.br ou no Instagram @redeforma.

É possível, também, buscar a Defensoria Pública no seu estado para este tipo de ação. Inclusive, os últimos 3 Habeas Corpus concedidos foram impetrados pela Defensoria Pública de Pernambuco. Foi o caso da mãe de um garoto, de 9 anos e portador de crises convulsivas graves, que obteve salvo-conduto para que as autoridades se abstenham de adotar qualquer medida voltada a cercear a sua liberdade de locomoção, na ocasião da importação de sementes ou no recebimento de sementes/mudas de associações com autorização regulamentar ou judicial para tal fornecimento (a exemplo da ABRACE), bem como na produção e cultivo do vegetal Cannabis sativa dentro da sua residência.

Leia mais: Justiça de Pernambuco concede mais um salvo-conduto para cultivo de maconha

Leia também:

Curso Cannabis: Habeas Corpus e outras medidas judiciais tem inscrições abertas

Afinal, o que é um Habeas Corpus para cultivo de maconha? Pergunte ao Doutor!

#PraCegoVer: foto (de capa) que mostra, em fundo escuro, parte de um pé de maconha em cultivo, com folhas serrilhadas e, no topo, a flor em desenvolvimento. Imagem: THCamera Photo.

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Sobre Dave Coutinho

Carioca, Maconheiro, Ativista na Luta pela Legalização da Maconha e outras causas. CEO "faz-tudo" e Co-fundador da Smoke Buddies, um projeto que começou em 2011 e para o qual, desde então, tenho me dedicado exclusivamente.
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