“Sair do armário é fundamental para reivindicar direitos”, diz o advogado Ítalo Coelho

Fotografia que mostra o advogado Italo Coelho de Alencar, na parte direita do quadro, olhando para a câmera. À sua direita, se vê parte de uma pequena pilha de livros, e no fundo uma parede clara e neutra. Foto: acervo pessoal.

O advogado de 34 anos que participou de onze Habeas Corpus deferidos, em liminar ou sentença, para o plantio de cannabis com fins terapêuticos no Ceará fala sobre a importância de “sair do armário”, a criminalização do uso próprio e a perspectiva sobre o julgamento no STF

Ativista antes de se tornar advogado, o cearense Ítalo Coelho de Alencar é considerado um jovem profissional — pelo menos, sob os olhos da OAB, que classifica desta forma quem obteve o registro profissional há menos de cinco anos. Porém, o adjetivo parece destoar, de certa forma, do número de vitórias na Justiça em que ele participou, direta ou indiretamente: em três anos, foram onze concessões de salvo-conduto em seu estado natal e mais quatro em outros estados, que garantiram o direito de brasileiros ao cultivo doméstico de maconha para tratamentos de condições como ansiedade, depressão e dor.

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Membro da diretoria da Rede Reforma e consultor jurídico de algumas associações de cannabis medicinal no Nordeste, Ítalo teve seu primeiro contato com este segmento quando ainda era estagiário, em uma ação de Habeas Corpus que concedeu ao primeiro paciente adulto do Brasil o direito ao cultivo doméstico de maconha terapêutica, em 2017 — de lá para cá, o advogado nascido em Barbalha (CE) acumula estudo, experiência e algumas opiniões sobre a judicialização do acesso à cannabis com fins terapêuticos. Mas não só. Na entrevista a seguir, Ítalo Coelho fala sobre ativismo e Direito, consumo pessoal e o STF e sobre propósito e crescimento profissional em um nicho da área.

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Como você vê a intersecção entre ativismo e Direito?

Ítalo Coelho – O Direito é produzido nas relações sociais, o que significa que as normas são expressão dos fatos que ocorrem na sociedade, nos conflitos de interesse social, de grupos e classes sociais, em busca da hegemonia. No tema da cannabis, como a própria proibição foi algo que respondeu aos interesses de uma determinada parte da sociedade sem discussão com toda a outra parte, hoje, modificar a legislação significa que a sociedade está fazendo esse debate, e os exemplos são vários: as Marchas da Maconha, há mais de dez anos, os movimentos de legalização da cannabis terapêutica, os próprios usuários sociais se mostrando na luta contra o preconceito.

Isso tem gerado repercussões no Direito, tanto do ponto de vista do Judiciário, na expressão direta de julgamentos, como a legalidade das Marchas da Maconha, como os próprios avanços no âmbito do Executivo, na Anvisa, e tudo isso é fruto do ativismo dos usuários, dos pacientes.

Então, é desta forma que eu acho que a gente pode ter uma perspectiva, tanto do ponto de vista Legislativo, que é quem faz as leis, mas também pressionando o Judiciário a se posicionar de forma coerente com os princípios da autonomia, da dignidade da pessoa humana, que estão na Constituição Federal, e que a própria Lei de Drogas diz que tem de ser respeitada.

Em mais de uma ocasião, vi você se colocar publicamente como usuário de cannabis. Qual a importância deste gesto?

Ítalo Coelho – Eu me posiciono como usuário de cannabis assim como usuário de tantas outras drogas: café, cerveja, tabaco. Sempre achei importante me posicionar como usuário de cannabis para fins sociais por entender que é uma conduta que diz respeito à minha intimidade, não fere direito alheio. A modificação e alteração da minha consciência só diz respeito a mim, na esfera privada, e não cabe ao Estado intervir.

E a própria lei que proíbe a maconha é cheia de problemas: diz que proíbe a cannabis por questões de saúde pública, quando está mais do que provado que a cannabis promove a saúde pública. Então, os usuários para fins sociais também são sujeitos de direito, e por isso que é importante a gente reivindicar, ir às ruas.

Da mesma forma que se toma um uísque, como o ministro Barroso falou em seu voto no julgamento do RE 635.659, se eu trabalho, estudo, tenho responsabilidade, família, pago minhas contas e contribuo ativamente para a construção de uma sociedade mais digna, não há problema em alterar a minha consciência com uma planta, né?

A percepção da proibição é que está errada, não os ativistas que saem do armário. Sair do armário é fundamental para reivindicar direitos.

Como você percebe a imagem da maconha pelos magistrados, em geral, e por seus colegas advogados que atuam em áreas não relacionadas?

A imagem da cannabis na sociedade brasileira como um todo passou por um processo de ressignificação, visto que ela era usada até o início do século XX de maneira não criminalizada, exceto em alguns episódios, como o Pito do Pango, no Rio de Janeiro, em 1830. Mas, a proibição na legislação nacional sobre a cannabis se deu a partir dos anos 1930, com um discurso demagógico que fazia um terror sobre os efeitos da planta, e anticientífico.

Então, isso reverberou, e reverbera, até hoje na sociedade, não apenas nos magistrados e colegas advogados, que veem a cannabis através dos noticiários policiais, ou através dos próprios processos judiciais, mas não abrem a perspectiva de ver as potencialidades desta planta.

Felizmente, os movimentos sociais, de mães, de pacientes, têm feito o Judiciário enxergar diferente os usuários de cannabis, principalmente para fins medicinais, mas reflete em uma visão como um todo: como, por exemplo, o julgamento do STJ em relação às importações de sementes, e os próprios Habeas Corpus para cultivo de cannabis, que são mais de 150, demonstram que a percepção está mudando do ponto de vista do Judiciário.

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De que forma a pauta da cannabis te faz unir propósito, satisfação e potencial de crescimento profissional?

Eu me sinto privilegiado por trabalhar, de fato, com o que eu amo. Sou usuário de cannabis há dezoito anos, ela me faz muito bem, me ajuda em várias coisas, como a me concentrar, a me relacionar melhor, me fez parar de beber, me fez parar de usar cigarro, e hoje eu tenho oportunidade de trabalhar com esta planta, de uma forma que faça o bem para outras pessoas.

O estudo e trabalho com isso é uma satisfação muito grande e, por minha sorte, uma forma de vida, de pagar as contas, de realização profissional. Então, eu tenho o privilégio de ser um dos primeiros a trabalhar com isso de forma legal e tenho certeza que, em breve, várias pessoas vão estar com essa mesma satisfação.

Já existem cursos profissionalizantes relacionados à cannabis, para que a gente possa trabalhar neste ramo. E, mais do que a satisfação pessoal, são as possibilidades sociais que a cannabis tem, de fazer com que a gente supere alguns problemas, como desemprego, a própria violência social. Ela pode ser inclusive propulsora do avanço científico.

Do ponto de vista da construção coletiva de uma nova realidade da maconha com fins terapêuticos, como você vê a importância dos usuários de cannabis abrirem a conversa nos consultórios médicos?

É possível dizer sem sombra de dúvida que o que nós temos de avanço em relação à cannabis para fins terapêuticos se deu pela via dos pacientes, que buscaram saber os benefícios terapêuticos da cannabis. Este reencontro da cannabis com os tratamentos terapêuticos no Brasil se deu por conta da pesquisa, da insistência, da luta desses pacientes, e que nessa busca levaram os médicos a ter essa curiosidade.

O Prof. Carlini é um ponto fora da curva em relação à ciência da cannabis nos últimos anos. A medicina ignorou por muito tempo o sistema endocanabinoide, que é um dos principais sistemas do organismo humano, por diversos interesses. Hoje, a questão do uso medicinal de maconha é uma realidade no mundo. Nos países onde estão avançadas as pesquisas científicas, a medicina, como Israel, os Estados Unidos e outros países, a cannabis é uma realidade.

Então, os médicos brasileiros têm o direito e, ao meu ver, a obrigação, de se atualizar nessa nova terapêutica, que é uma revolução para o século XXI. Os pacientes têm o direito de escolher o tratamento, e os médicos também têm o direito de escolher o melhor tratamento, que julgarem, com embasamento científico, para os seus pacientes.

E isso está embasado no próprio código de ética médica, então é fundamental esse diálogo, que os médicos também possam fazer cursos, se integrar junto às associações de pacientes que promovem esses cursos, para possibilitar essa prática terapêutica de uma maneira integrada, em que paciente e terapeuta sejam uníssonos, e evitar situações em que o paciente que usa maconha, sabe, quer o tratamento, mas ouve do médico que ‘isso queima neurônios’.

Você acredita que o caminho da judicialização pelo acesso é o caminho para a verdadeira transformação do cenário da maconha medicinal no Brasil?

A judicialização do tratamento com cannabis terapêutica é uma via não prioritária. Essa transformação deveria se dar através da legislação, o próprio Legislativo fazer este debate. Mas, enquanto não é feito, o Judiciário tem o papel de reparar e de fazer valer, no caso concreto, os direitos dos pacientes.

O direito à saúde é um direito inalienável, uma garantia fundamental do cidadão, que o Estado não promove a contento. Então, a judicialização é uma forma efetiva de suprir a falha legislativa, mas do ponto de vista da transformação, o Judiciário nunca vai ser transformador, sempre vai ser conservador. Mas, ele está aí para garantir os direitos que estão positivados na Constituição.

Em relação ao uso adulto, social, como você vê a perspectiva do debate sobre a Lei de Drogas no STF?

Em relação à mudança da Lei de Drogas no STF, o que está sendo julgado no Recurso Extraordinário 635.659 é se o artigo 28, que trata do porte de drogas para uso pessoal, é constitucional ou não. Já tem três votos pela inconstitucionalidade deste artigo, por entender que a autolesão não deve ser punida, e de fato é o que diz o Direito. O princípio da lesividade diz que só deve ser punido pelo Direito, inclusive o Penal, ação que fira direito de terceiros. E, no caso do artigo 28, porte de drogas para uso próprio só diz respeito à esfera do indivíduo.

Existem boas perspectivas, são mais três votos para formar os seis favoráveis, que é a maioria dos membros do Supremo. Acontece que esse julgamento vem sendo jogado para debaixo do tapete, engavetado, há mais de um ano. Entrou na pauta do Supremo duas vezes em 2019, mas, por questões políticas, foi retirado. E me parece que esses acordos políticos permanecem, e a tendência é que esse processo fique engavetado por um tempo. E aí é o papel dos movimentos sociais, da população como um todo, fazer pressão para que o Supremo julgue pelo menos isso.

Não vai legalizar a cannabis no Brasil, mas vai pelo menos descriminalizar o porte de drogas para uso pessoal, o que já diminui os danos sociais desta criminalização do usuário. Vamos lembrar que hoje o usuário ainda é criminalizado, por mais que não exista pena de prisão. Mas as penas de prestação de serviços à comunidade, comparecimento em cursos, previstas no artigo 28, são penas, restritivas de direitos, que acaba por ser uma incoerência com a própria Lei de Drogas e com a autonomia do indivíduo.

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#PraCegoVer: a imagem de capa mostra o advogado Ítalo Coelho de Alencar, na parte direita do quadro, olhando para a câmera. À sua direita, se vê parte de uma pequena pilha de livros, e no fundo uma parede clara e neutra. Foto: acervo pessoal.

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Sobre Thaís Ritli

Thaís Ritli é jornalista especializada em cannabis e editora-chefe na Smoke Buddies, onde também escreve perfis, crônicas e outras brisas.
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