Qual a regulação dos alimentos de cânhamo no Brasil?

Fotografia mostra a cola de uma planta de cânhamo bem desenvolvida repleta de folhas serrilhadas e com um top bud de pistilos cor creme. Crédito: Dominique Stueben | Unsplash.

O que ocorre é uma extrapolação dos limites das regras destinadas ao controle de drogas e medicamentos ou que a Anvisa não sabe interpretar as próprias normas. Entenda no artigo publicado originalmente no JOTA

O mercado internacional vem se alinhando na regulação da Cannabis. As principais economias do mundo, como EUA, Europa e China, já regularizaram a variedade industrial da planta e fazem parte de um mercado bilionário no qual os alimentos têm uma grande fatia do bolo. Só o mercado do leite de cânhamo pode chegar a R$ 2 bilhões por ano.

O Paraguai, por exemplo, não só já produz como está exportando para a Europa e desenvolvendo cada vez mais sua indústria. Mas por que não encontramos esses alimentos no Brasil?

A resposta, contudo, não é tão simples como: esses alimentos são proibidos aqui. Em um país que passa fome, proibir comida deveria ser um ato extremo, utilizado apenas como última medida e em prol de um bem ainda maior do que o direito de se alimentar.

Na realidade, as normas nacionais não proíbem os alimentos de cânhamo. Inclusive, a Convenção Única sobre Entorpecentes dá, às sementes que geram os alimentos de cânhamo, isenção às proibições impostas à “cannabis entorpecente”. O que ocorre no Brasil é uma extrapolação dos limites das regras destinadas ao controle de drogas e medicamentos.

De forma simples, o cânhamo é uma variedade de Cannabis sativa que não tem potencial psicotrópico porque praticamente não contém THC. Os alimentos de cânhamo, contudo, não contêm canabinoides como o THC ou o CBD, já que eles são feitos a partir das sementes, e não das inflorescências (os buds).

O que gera maior estranheza é precisamente não encontrarmos alimentos de cânhamo sem canabinoides sendo vendidos no Brasil, ainda que importados. A proibição do plantio da cannabis em território nacional não impede a importação de produtos de cânhamo, como as roupas que encontramos nos shoppings em todo o país. Lojas como Osklen, Reserva e Levi’s vendem roupas de cânhamo normalmente.

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Para tentar melhor compreender as razões da ausência desses alimentos no país, foram feitas consultas à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O objetivo era entender por que o registro ou importação de alimentos sem canabinoides não ocorre aqui.

Segundo as respostas da ANVISA, os alimentos de cânhamo estão proibidos por força da Portaria nº 344/98, que trata sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Especificamente, para a ANVISA, um alimento de cânhamo, ainda que sem canabinoides, estaria sujeito às proibições da “Lista E” da Portaria nº 344/98. A “Lista E”, por sua vez, torna proscritas as plantas lá elencadas — que é o caso da Cannabis sativa — assim como as substâncias derivadas dessas plantas.

Contudo, uma farinha ou azeite não são plantas. E dizer que esses alimentos são “substâncias” exige uma definição mais precisa do termo.

Por isso, se questionou o significado que a ANVISA atribuiu ao conceito de “substância”. Na resposta, a agência afirmou que a definição seria: “Matéria de composição constante melhor caracterizada pelas entidades (moléculas, fórmulas unitárias, átomos) de que é composta”[1].

Com essa definição, chegamos ao ponto crucial: se o têxtil é permitido, não existe proibição dos alimentos de cânhamo.

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O raciocínio é simples. Um alimento de cânhamo é composto de substâncias derivadas da cannabis, como as suas proteínas e gorduras. Por conter essas substâncias, a ANVISA afirma que eles são proibidos ainda que não contenham canabinoides. Por outro lado, um tecido de cânhamo também é composto de substâncias derivadas da cannabis, como a celulose e muitas outras. Porém, paradoxalmente, esses tecidos são permitidos no país e de alguma forma escapam da proibição dos alimentos (ainda que ambos sejam formados por substâncias derivadas da cannabis).

A ANVISA acabou gerando uma incompatibilidade na aplicação da regra, na qual a proibição das substâncias da cannabis se aplicam a um produto e não a outro, na mesma condição jurídica.

Essa incompatibilidade, contudo, poderia ser resolvida se a Convenção Única sobre Entorpecentes, internalizada pelo Decreto nº 54.216, de 1964, fosse respeitada. O artigo 28 da convenção afirma que as proibições impostas à cannabis entorpecente não se aplicam ao cultivo das fibras e sementes destinados exclusivamente a fins industriais. Essa Convenção, inclusive, é o primeiro ato normativo citado na introdução da Portaria nº 344/98 como fonte de legalidade da norma da ANVISA.

Ou seja, parece existir uma coerência entre o posicionamento da ANVISA sobre o têxtil e as exceções da Convenção Única, mas não em relação aos alimentos.

De um ponto de vista argumentativo, a proibição dos alimentos de cânhamo no Brasil sai pela porta, mas volta pela janela, com a permissão do comércio dos produtos têxteis.

É importante enfrentar essa discussão de um ponto de vista técnico para que a tomada de decisão do ente regulatório seja respaldada por todos os elementos de legalidade, mas ainda assim possa alterar um estado de coisas que vem sendo reproduzido sem um lastro jurídico correto.

[1] BRASIL. Agência Nacional De Vigilância Sanitária. Resposta ao protocolo 2021161201. Brasília, DF: ANVISA, 16 de junho de 2021.

Daniel Amin — Advogado, mestre em Direito Empresarial pela Universidade de Coimbra, Portugal; doutor em Direito Empresarial Internacional pela Universitat de València, Espanha; pesquisador convidado na OMC (2004), Genebra, Suíça; professor do mestrado/doutorado do Centro Universitário de Brasília (UniCeub); sócio titular da Amin Ferraz, Coelho e Thompson Flores Advogados.

Flávia Alessandra Mota Alves — Engenheira de Bioprocessos e Biotecnologia e mestre em Química pela Universidade Federal do Tocantins. Desenvolveu pesquisa nas áreas de química dos produtos naturais com ênfase no estudo do perfil químico e biológico de fungos endofíticos isolados de Cannabis sativa L. Atualmente é diretora executiva da startup Kaneh Bosm Genes e presidente do Comitê de Química da ANC.

Rafael Arcuri — Advogado, diretor executivo da Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC), especialista em Direito Regulatório, mestre em Direito e Políticas Públicas e membro da comissão de Assuntos Regulatórios da OAB-DF.

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#PraTodosVerem: em destaque, fotografia mostra a cola de uma planta de cannabis bem desenvolvida repleta de folhas serrilhadas e com um top bud de pistilos cor creme. Crédito: Dominique Stueben | Unsplash.

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