Questão de Opinião: O Brasil e a redução de danos na questão das drogas

Fotografia traz o registro feito durante a Marcha da Maconha em São Paulo de uma placa branca com a frase escrita em preto “Legalize a vida” na qual a última letra (a) foi substituída pelo desenho de uma folha de maconha na cor verde, e um fundo desfocado de prédios e árvores. Imagem: Diogo Vieira | Smoke Buddies. PEC

O que é a política de redução de danos e por que ela é uma opção tremendamente viável no que diz respeito ao cenário brasileiro? Entenda a questão no texto de Juliana França David*, publicado originalmente no Canal Ciências Criminais

A política de redução de danos pode ser entendida como um conjunto de medidas adotáveis quanto aos usuários de drogas que não exigem a abstinência do indivíduo como opção principal para lidar com a questão. Há, assim, o intuito de reduzir os danos causados pelo referido uso de entorpecentes e não impedi-lo (Ribeiro, 2013, p. 45).

Conforme Maurides de Melo Ribeiro:

“Vale dizer, enquanto não for possível ou desejada a abstinência, outros agravos à saúde podem ser evitados, como, por exemplo, as doenças infectocontagiosas transmissíveis por via sanguínea, como é o caso do HIV/Aids”.

Neste caso, um exemplo de estratégia de redução de danos é a distribuição de seringas limpas a usuários de drogas injetáveis como meio de evitar a propagação do HIV. Também, levando-se em conta o conceito inicial de redução de danos, é possível citar como exemplo a distribuição de água em eventos como raves e afins onde o consumo de ecstasy é extremamente comum.

Vale ressaltar que o marco inicial para o reconhecimento da redução de danos como alternativa efetiva para lidar com a questão das drogas foi a I Conferência Internacional ocorrida em Liverpool no ano de 1990, muito embora o reconhecimento científico da matéria tenha se dado apenas no contexto da III Conferência Internacional de 1992 (Weigert, 2010, p. 115).

Vale salientar que o proibicionismo até então apenas se mostrou como método ineficaz para acabar com os problemas do tráfico de drogas no que concerne ao usuário, posto que a criminalização do consumo no intuito de promover a abstinência do uso de drogas não se revela uma medida suficiente para tanto. Há um considerável crescimento do consumo de crack no Brasil (Passagli, 2015), o que tem causado sérios problemas de âmbito social, sendo o mais emblemático deles o surgimento das “Cracolândias”.

A título de exemplificar a tendência repressiva do poder público para lidar com a questão das “Cracolândias”, em maio de 2017 foi empreendida, sob o comando do governo da gestão Dória, uma operação policial em uma Cracolândia da cidade de São Paulo, com o intuito específico de prender traficantes e, quanto aos usuários, expulsá-los, assim pretendendo acabar com a “Cracolândia” no centro de São Paulo através única e somente da abordagem estatal violenta, deixando de lado as questões de saúde e sociais.

A operação teve como um de seus desdobramentos a demolição de um edifício onde funcionava uma pensão na qual diversos usuários de crack residiam, inclusive ferindo alguns. O prefeito Dória afirmou que a “Cracolândia” teria enfim acabado após os usuários que se concentravam ali terem sido dispersados e no mesmo dia, o prefeito decretou o fim do programa do antecessor Fernando Haddad (PT), De Braços Abertos, e anunciou seu programa, Redenção.

Ou seja, o Brasil vem adotando predominantemente a política proibicionista, o que por sua vez não desempenha um papel eficaz para a redução do consumo e dificulta a aplicação de outras políticas que se demonstram mais efetivas, mas que são ideologicamente incompatíveis, sendo a principal a política de redução de danos.

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A insuperável incompatibilidade entre redução de danos e proibicionismo

Em primeiro lugar, a redução de danos tem como matriz reduzir os danos causados pelo consumo de drogas sem ter como preceito fundamental a abstinência para lidar com o problema. Ainda que seja possível a aplicação da redução de danos em alguns aspectos dentro de um contexto proibicionista, essa política é essencialmente incompatível a níveis ideológico e prático com o proibicionismo, uma vez que o proibicionismo tutela a questão com um viés primordialmente penal e prega a abstinência como único caminho para lidar com o problema do consumo de drogas (Ribeiro, 2013, p. 69).

Nesse escopo, o proibicionismo tenta de maneira falha conciliar os fracassos práticos decorrentes de sua própria essência ideológica através de medidas que tentam se aproximar de modelos diferentes de políticas de drogas, mas são incapazes de romper com a base de funcionamento proibicionista.

Uma das principais medidas adotadas diante desses fracassos do proibicionismo é a justiça terapêutica (como foi nomeada no Brasil), que encontra suas origens nas Drug Courts estadunidenses, Tribunais específicos para lidar com questões de dependentes químicos.

Estes Tribunais têm por estratégia principal o tratamento médico compulsório dos usuários, impondo-lhes a abstinência como meio principal de tratamento, o que vai de encontro a princípios basilares da redução de danos — a primazia do tratamento voluntário, uma vez que não têm como cerne a abstinência do indivíduo. Além disso, as políticas de redução de danos possuem como diretriz a participação ativa do paciente no processo (Ribeiro, 2013, p. 70).

Deste modo, fica claro que o objetivo do tratamento compulsório é conformar os indivíduos a um ideal de comportamento abstinente e afirmar a concepção de que o uso de drogas é um comportamento negativo com rótulo delituoso a ser modificado de maneira coercitiva. Isso nitidamente é apenas um polimento do proibicionismo tradicional — uma tentativa falha de parecer lidar de maneira mais humana e socialmente preocupada com a questão.

Assim, a Justiça Terapêutica nada mais é que a manutenção do direito penal como instrumento de modificação dos indivíduos usuários de drogas, rotulados como “desviantes”, para sua conformação ao ideal moralizador do proibicionismo, enquanto o objetivo da redução de danos consiste na diminuição da ingerência penal para lidar com os usuários de drogas (Ribeiro, 2013, p. 71).

Referências

PASSAGLI, Marcos. Toxicologia social: verdades e mitos. São Paulo: Millenium Editora, 2015.

RIBEIRO, Maurides de Melo. Drogas e redução de danos: os direitos das pessoas que usam drogas. São Paulo: Saraiva, 2013.

WEIGERT, Mariana de Assis e. Uso de drogas e o Sistema penal: entre o proibicionismo e a redução de danos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Iuris, 2010.

*Juliana França David é advogada criminalista, graduada em Direito pela Faculdade IBMEC-RJ e pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Candido Mendes (UCAM).

Este artigo faz parte do livro ‘Redução de danos e descriminalização das drogas’, à venda na Amazon. 

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#PraCegoVer: em destaque, foto que traz um registro feito durante a Marcha da Maconha em São Paulo de uma placa branca com a frase escrita em preto “Legalize a vida” na qual a última letra (a) foi substituída pelo desenho de uma folha de maconha na cor verde, e um fundo desfocado de prédios e árvores. Foto: Diogo Vieira | Smoke Buddies.

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