Quem é rico mora na praia, mas quem trabalha nem tem onde plantar

Fotografia de um top bud de cannabis com pistilos laranjas e brancos, repleto de tricomas, e um morro do Rio de Janeiro ao fundo, desfocado. Imagem: Dave Coutinho | Smoke Buddies.

O principismo e ingenuidade que permeiam a crítica ao PL 399/2015. Entenda no artigo de opinião de André Feiges e Mariana German, publicado originalmente no portal Direito & Outras Drogas

Tornou-se trivial no ativismo favorável à legalização da maconha a defesa intransigente de posições indicando que, sem previsão de cultivo doméstico, projetos de regulamentação não merecem apoio. Tal afirmação revela desconhecimento da realidade brasileira quanto ao déficit habitacional e outros problemas socioeconômicos.

Projeto de Lei 399/2015 pretende regulamentar o cultivo de maconha para fins medicinais e industriais no Brasil. Em tramitação longa e conturbada, com audiências públicas e numerosas emendas, o PL ganhou contornos bastante diversos da redação original. Após aprovação, em regime terminativo, de substitutivo na Comissão Especial, em vez de seguir para o Senado, foi objeto de recurso por deputados contrários, levando o debate ao plenário da Câmara, ainda sem data para votação.

Seu trâmite tem sido palco de acaloradas discussões e alvo de pânico moral por parte de alguns setores contrários ao uso medicinal da maconha, ou, ao menos, contrários ao cultivo e à produção nacional. Entretanto, o projeto também recebe críticas de setores progressistas e atores que militam pela democratização do acesso à planta e seus produtos.

Entre favoráveis à regulação as críticas são bastante pertinentes e apontam vários problemas do projeto. Os principais pontos criticados são a manutenção da criminalização do cultivo doméstico (forma de acesso possível, viável e segura, conforme mostram as experiências nacional e internacional) e as regras extremamente duras para associações de pacientes, as quais deverão se adequar aos impraticáveis padrões da indústria farmacêutica.

O Brasil é um país muito diverso e atravessado por questões complexas que não admitem soluções simples. Pretensões de resolver ou criticar iniciativas legislativas com frases de efeito e jargões acabam por contribuir mais para o obscurantismo e a estagnação da pauta do que para o aprofundamento das questões.

Há muita paixão em todas as posições e é difícil construir coletivamente, sobretudo com visões tão distintas como costuma ocorrer no campo favorável à regulamentação. A maior parte das pessoas não compreende as complexas relações de poder que permeiam as instâncias políticas, nelas inclusas as necessidades de alianças circunstanciais para ajustar a redação de projetos de lei e construir maiorias conjunturais para aprovação das casas legislativas.

O PL 399/15, longe de ser um cenário ideal para todas as pessoas, ainda é único projeto que conseguiu avançar em comissões no legislativo brasileiro. Sua grande chance de aprovação decorre exatamente da habilidade do relator em reunir interesses distintos e assim promete constituir uma maioria circunstancial, apta a superar o grupo absolutamente proibicionista.

Em nenhuma hipótese viável será criada uma “terra prometida” para maconheiros, mas certamente trará melhoras à vida de muitas famílias que ainda carecem de acesso a produtos medicinais da planta. Dentre os diversos interesses congregados estão a indústria farmacêutica e a produção agrícola, mas também interesses populares através da inclusão no SUS, por meio das farmácias vivas, e comunitários, por meio de associações de pacientes.

Neste cenário, é evidente a fragilidade das associações de pacientes, modelo de acesso comunitário que se consolidou na América do Sul (principalmente no Brasil, Chile e Argentina), pois no modo proposto, tais entidades terão que se equiparar à indústria farmacêutica, sem possuir estrutura ou capital para tanto. Caso aprovada, tal opção manterá irregulares os agentes sociais mais expressivos no acesso à cannabis no Brasil de hoje.

Os interesses que ficam de fora são outros usos (que não medicinais ou industriais, em especial o uso adulto ou social – rotulado como recreativo por aqueles que pretendem infantilizar e desacreditar usuários). Porém, mesmo dentro do uso medicinal, a possibilidade de cultivo doméstico também ficou excluída, gerando críticas contundentes.

No ativismo também há muita ingenuidade e classismo na defesa intransigente do cultivo doméstico como condição para apoiar qualquer avanço legal. Sustenta-se um discurso de que mudanças na legislação só seriam justas se “todos” puderem plantar em casa.

Ponto essencial, que costuma ficar de fora desta defesa, é que a realidade social do Brasil não permite que “todos” plantem em casa, porque grande parte dos brasileiros nem casa tem, os que têm, em sua maioria, são em condições precárias, sem espaço para autocultivo (ao menos 33 milhões de brasileiros não têm onde morar).

Ainda mais grave são as condições precárias de trabalho e de acesso à cidade, fazendo que a esmagadora maioria dos brasileiros passe diversas horas trabalhando e tantas outras se deslocando entre a residência e o trabalho (20% mais pobres gastam mais de 2 horas em deslocamento), tornando absolutamente inviável que adotem práticas de autocultivo.

É curioso ver quem tem moradia segura, espaço, estrutura, conhecimento e tempo para plantar em casa se opondo a outras formas de acesso, simplesmente por que a sua forma privilegiada foi deixada de fora em razão da impossibilidade de constituir uma maioria política em torno desta questão na atual conjuntura.

Alguns atores se portam como crianças mimadas contrariadas, no mais comum exemplo do: “se eu não brinco, ninguém brinca”.

Mas os brincantes Fausto Nilo e Dominguinhos alertavam: “Quem é rico mora na praia, mas quem trabalha nem tem onde morar”.*

Embora o cultivo doméstico seja interessante forma de acesso, por diversas razões, também é evidente que pessoas que trabalham oito horas por dia, habitam locais precários e distantes dos centros urbanos, gastam ao menos duas horas de deslocamento, recebem salário-mínimo e precisam se deslocar mais sabe-se lá quanto para ter acesso a serviços públicos, não terão suas vidas facilitadas pela simples possibilidade de plantar cannabis para fins medicinais.

Pretender crer no cultivo doméstico de cannabis como ampla forma de acesso popular aos benefícios medicinais da planta equivale a crer que o problema da fome no Brasil seria resolvido com a mera possibilidade e disposição das pessoas em cultivarem e produzirem o próprio alimento. Evidentemente as questões são mais complexas.

Duas questões de fundo que sempre atravessam as discussões no campo do ativismo são o purismo principista (“se a proposta não for total e perfeita, sou contra”) e o egoísmo (“se o meu desejo ou interesse pessoal não for satisfeito, sou contra”).

Estes problemas, que tentamos abstrair, não são específicos da causa da maconha ou de seu uso medicinal, aliás, são lugar-comum em muitas frentes de luta. Por isto é sempre importante repetir: nada complexo tem solução simples.

Na forma como vemos a situação brasileira, com sua ampla diversidade e profunda desigualdade, a regulamentação necessária é aquela que preveja todas formas de acesso aos benefícios medicinais da maconha. Neste aspecto, a disponibilização via SUS, com produção própria através das farmácias vivas, promete ser a abordagem de maior impacto social.

Contudo, as associações de pacientes parecem ser os meios mais próximos à possibilidade de retomada e ressignificação do uso tradicional de medicinas naturais, sendo importantes vetores de difusão de conhecimento técnico-científico, bem como produção e transmissão de conhecimento popular.

Por sua vez, as empresas indicam um caminho mais rápido e um forte investimento em pesquisa para desenvolvimento de novos produtos,  suas estratégias de distribuição também costumam ser mais abrangentes, ao menos no curto prazo, do que a iniciativa estatal.

Além disso, o acesso via aquisição direta e imediata nas drogarias é de extrema importância. Não é razoável que pessoas precisem cultivar em casa ou se associarem para ter acesso aos benefícios da planta. A expansão das drogarias pelo Brasil é fato notório, sendo espécie de comércio dos mais comuns, tanto nas grandes, quanto nas pequenas cidades.

Tudo isto não exclui nosso entendimento e defesa da descriminalização e regulamentação do cultivo doméstico de maconha, para fins medicinais ou quaisquer outros. Apenas entendemos pertinente destacar a complexidade do tema para ampliar o apoio aos avanços que se mostram viáveis no cenário atual.

Se há algo para avançar hoje, avancemos. Não se pode ignorar que a ampliação do acesso e a normalização do uso medicinal da maconha são importantes fatores para contribuir na conformação de um novo pensamento científico e popular sobre o tema das drogas de modo geral. Cada passo dado rumo a um novo paradigma é uma fragilidade exposta no discurso obscurantista do proibicionismo.

Continuaremos a disputar e construir coletivamente a demanda por uma regulamentação mais ampla e democrática, sobretudo pela redenção desta planta que de forma artificiosa e farsesca passou a representar riscos e danos, quando em verdade promete equilíbrio e recuperação.

Retomando com Fausto Nilo e Dominguinhos:

“Vamos simbora de repente,
vamos simbora sem demora,
vamos pra frente que pra trás não dá mais.”

André Feiges & Mariana German

*Pedras Que Cantam, 1991. Embora famosa pela voz de Fagner, recomendamos fortemente a versão do saudoso Moraes Moreira.

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#PraTodosVerem: fotografia do top bud de uma planta de maconha com pistilos laranjas e brancos, repleto de tricomas, e um morro do Rio de Janeiro ao fundo, desfocado. Imagem: Dave Coutinho | Smoke Buddies.

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