Qual a situação do uso religioso da maconha no Brasil?

A lei de drogas brasileira proíbe o cultivo de vegetais dos quais possam ser extraídas drogas, contudo faz reserva ao seu uso religioso. Na prática, o preconceito ainda fala mais alto e líderes de religiões que usam a maconha em seus rituais são presos pelo crime de tráfico de drogas. Saiba mais com as informações do jornal Nexo.

Em 2012, a Guarda Municipal de Americana, no interior de São Paulo, prendeu Geraldo Antonio Baptista, depois de encontrar 37 pés de maconha em seu sítio. Fundador da Igreja Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil, a primeira igreja rastafári do Brasil, Ras Geraldinho, como é conhecido, alegou manter a plantação para uso religioso. O argumento, usado pela defesa de Geraldinho, não convenceu o juiz responsável pelo caso.

“Se ele [Ras Geraldinho] quisesse seguir a religião, deveria ir morar na Jamaica”, escreveu o juiz Eugênio Augusto Clementi Júnior na sentença. Em maio de 2013, o líder rastafári foi condenado a 14 anos, dois meses e 20 dias de prisão por tráfico de drogas e multa de R$ 51,1 mil. A decisão também determinou a perda do imóvel de Geraldinho, que foi transferido à União.

Para o juiz, nenhuma prática pode entrar em conflito com a lei penal. “Se alguém quiser sacrificar virgens, como faziam os astecas, a lei brasileira não irá permitir. É o mesmo caso”, disse. Além da acusação de tráfico acarretada pela quantidade de maconha encontrada no sítio, o magistrado afirmou que Ras Geraldinho fornecia maconha para terceiros, incluindo menores de idade.

Em 2014, a prisão foi mantida pelo desembargador Ruy Leme Cavalheiro, da 3ª Câmara do Direito Criminal. Em junho de 2017, o Superior Tribunal de Justiça manteve a condenação, mas reduziu a pena para 10 anos e 3 meses.

Em fevereiro de 2018, cinco anos depois de começar a cumprir sua sentença, uma nova condenação foi expedida pela Justiça de Americana, dessa vez sob outra acusação: 12 anos e 3 meses por tráfico de drogas e associação para o tráfico. O advogado de Geraldinho, Alexandre Khuri Miguel, espera reverter as sentenças levando o caso ao STF (Supremo Tribunal Federal).

“14 anos de cadeia pelo uso sacramental dessa planta que tanta gente consome recreativa e medicinalmente todos os dias e que tanta gente lucra com sua venda. Esfumaçar uma oração é mais crime do que um assassinato”, escreveu em artigo Fernando Silva, conhecido como Profeta Verde, advogado, ativista e cofundador da ACuCa-SP (Associação Cultural Cannábica de São Paulo).

A mulher de Geraldinho, Marlene Martim, também foi condenada em dois processos, em 2015 e 2018, por ter participado de “atividades da igreja”. Para a defesa, há insuficiência de provas para essas condenações.

Assista: Em entrevista Ras Geraldinho fala sobre sua condenação, sistema, maconha e vida na prisão

Drogas em rituais

A Lei de Drogas de 2006 proíbe o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos ”dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas” no Brasil mas faz uma ressalva àquelas de “uso estritamente ritualístico-religioso”.

Cerca de dois anos antes da aprovação dessa legislação, o Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas), subordinado ao Ministério da Justiça, passou uma resolução liberando o uso religioso da ayahuasca, parte dos rituais do Santo Daime.

Em 2006, ela foi retirada da categoria “drogas psicodélicas” da lista do Conad e, em 2010, o órgão publicou as diretrizes para sua regulamentação. Segundo as regras, a ayahuasca pode ser utilizada no Brasil com fins religiosos, mas seu uso comercial, associado a outras substâncias ilícitas ou a rituais de curandeirismo, é proibido.

Um grupo de trabalho foi criado em 2015 para estudar a permissão do uso do cacto peyote em cerimônias religiosas, planta de onde vem a substância alucinógena mescalina. A petição que solicitou essa avaliação foi encaminhada pela Igreja Nativa Americana do Fogo Sagrado de Itzachilatlan do Brasil para uso “estritamente ritualístico-religioso”. Até agora, a liberação não saiu. Vale lembrar que o Conad ficou praticamente inativo durante o ano de 2017.

“Para qualquer substância ser legalizada especificamente para uso em ritual religioso, o procedimento é o mesmo”, explicou ao Nexo o advogado Augusto de Arruda Botelho. Entretanto, Botelho não acredita que Geraldinho conseguiria qualquer autorização para usar a maconha no Conad.

Silva concorda. “Acho que por conta do estigma ligado à maconha, esse caminho mais burocrático acaba sendo menos viável”, afirmou ao Nexo. Segundo ele, as poucas igrejas e grupos adeptos do rastafarianismo no país preferem manter uma atuação discreta a se engajar em campanhas pela permissão do uso da maconha.

#PraCegoVer: fotografia de membros da Igreja Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil transportando uma planta de cannabis durante a Marcha da Maconha de São Paulo, em 2017. Créditos: Lucas Tavares.

Nos últimos tempos, o Conad tem defendido abordagens consideradas mais conservadoras em questões de drogas, como defender abstinência em vez de redução de danos.

Em 2011, o ministro do STF Celso de Mello fez um aceno ao debate do uso da maconha no contexto religioso. Relator da ação que permitiu a realização das Marchas da Maconha, o magistrado declarou que a Constituição assegura a liberdade religiosa, “considerada em suas múltiplas projeções, como aquela que compreende a proteção constitucional das manifestações litúrgicas”. Permitir uma droga nesse contexto estaria ligado à “liberdade de crença, de culto, de organização religiosa e a liberdade contra a interferência do Estado”. O debate, entretanto, ainda não aconteceu.

A religião rastafári

Em 2008, foi aberta no Instituto Smithsonian, em Washington, a exibição “Discovering Rastafari!”, com arte e objetos da subcultura jamaicana. De acordo com o texto da exibição, “rastafári” não é apenas uma religião, mas um modo de vida e um movimento político.

Com estimados um milhão de praticantes no mundo, a religião surgiu na Jamaica na década de 1930 e traz elementos do cristianismo e do judaísmo. Defende uma reconexão com tradições africanas. Uma das passagens da Bíblia consideradas fundamentais pelo movimento diz que “A Etiópia irá em breve estender suas mãos até Deus” (Salmos 68:31).

“Ela conecta com uma raiz extremamente profunda  – um senso de anseio por um lugar no mundo por pessoas de descendência africana”, explicou o curador da exposição do Smithsonian, em entrevista da época.

O imperador da Etiópia entre 1930 e 1974, Haile Selassie, foi visto como a encarnação de Jah (abreviação de Jeová, ou Deus). Seu nome pré-imperial, Ras (título equivalente a príncipe) Tafari Makonen (seu nome próprio) deu origem à denominação “rastafári”.

O rastafarianimo é contra o uso de drogas, incluindo álcool e cigarro. A maconha, chamada “ganja” (de gaja, palavra hindu para “cânhamo”) só deve ser usada no contexto ritualístico e nunca recreativo. Seu propósito é facilitar a meditação, elevar a consciência e aproximar o crente de Deus.

Nos Estados Unidos e Reino Unido, com expressivas comunidades jamaicanas, casos de rastafáris presos com maconha resultaram em condenações, mesmo com os acusados alegando motivação religiosa para o uso ou posse da droga. No fim de 2017, a Suprema Corte italiana absolveu um homem rastafári preso com maconha, depois que a defesa alegou que sua crença utilizava a erva para “meditação”.

#PraCegoVer: Fotografia registra a passagem dos membros da Igreja Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil, no bloco “Pelo uso religioso da maconha”, durante a Marcha da Maconha de 2017 em São Paulo. Crédito Lucas Tavares

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