Proposta de regulação da cannabis medicinal pela Anvisa é para poucos, entenda

Fotografia em close de uma vistosa flor de maconha em tons de verde com pistilos brancos e partes das folhas de outra planta (na lateral direita da foto), com um fundo desfocado. Cannabis, Anvisa

Se aprovada como está, a regulação da Anvisa sobre o plantio de cannabis medicinal, assim como seu acesso, não será para as associações e pacientes, tampouco para quem deseja cultivar – pessoas que, desde o começo, moveram a roda e levaram agência a pautar em consulta pública as propostas, mas que, no fim, podem continuar sem acesso à cannabis medicinal

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou por unanimidade colocar em consulta, no dia 11 de junho, as propostas de regulação dos requisitos técnicos e administrativos para o cultivo de cannabis para fins medicinais e científicos, e dos termos parar produção, distribuição e comercialização de medicamentos à base de maconha, ambas para Pessoa Jurídica – ou seja, empresas.

A decisão, que foi acompanhada por milhares de brasileiros durante transmissão ao vivo nos canais da agência, no Youtube, foi publicada no Diário Oficial na última sexta-feira (14). A partir da próxima sexta (21), a sociedade civil terá dois meses para dar suas contribuições à proposta e, posteriormente, debatê-las em duas audiências públicas, que devem definir os termos das linhas da ação propostas pela Anvisa.

Disponíveis no site da Anvisa, porém aguardando abertura da participação pública, prevista para o dia 21 de junho, as propostas vem na contrapartida do crescente número de pedidos de importações de medicamentos à base de cannabis, como mostra o gráfico da agência reguladora.

#PraCegoVer: Gráfico mostra a demanda por importação de medicamentos à base de cannabis. Em 2015 e 2016 foram 901 pedidos ambos anos, já 2017 recebeu 2179 e 2018 3330 pedidos. Fonte: Proposta de Consulta Pública / Anvisa

 

“Mais de 6 mil pessoas pediram importação desses produtos, e a leitura da Anvisa, que ao meu ver é acertada, é que esse produtos importados são caros e de baixa confiabilidade. Então, há interesse da agência em liberar uma produção nacional a partir das empresas que têm interesse”

– avalia Renato Filev, doutor em neurologia e neurociências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), segundo mostra artigo no portal Mídia Ninja.

Essa demanda popular, de famílias e instituições que precisam da maconha para seu uso medicinal, foi o grande propulsor dessa pauta, adiada desde 2017 pela Anvisa, que prometeu naquele ano o início do processo de legalização da erva para uso terapêutico.

Conforme a agência salienta na proposta, “a manutenção da situação atual poderá levar ao agravamento das consequências apresentadas, tais como: judicialização, o aumento de pedidos para autorização excepcional de importação de produtos e a dificuldade de aceso a produtos registrados”. Diante disso, ambas propostas vêm exclusivamente para o mercado farmacêutico.

Mercado que atualmente é ofertado, com aprovação da agência, unicamente através da importação da cannabis, o que ocorre desde 2015, e/ou aquisição do Mevatyl, o primeiro remédio registrado no país, em 2017.

Entretanto, são meios inacessíveis a maioria dos brasileiros, devido aos custos, que ultrapassam os R$ 2 mil ao mês, restando às associações e pacientes buscarem a Justiça para obterem Habeas Corpus Preventivo para seus cultivos.

O QUE NÃO FICOU ENTENDIDO: a proposta e resultado não são para a maioria dos brasileiros

Segundo a argumentativa da agência é que, “uma produção nacional irá colocar mais produtos no mercado e consequentemente a tendência dos preços é cair, tornando-o mais acessível para a população e gerando uma indústria capaz de atender a crescente exigência, em sua maior parte de portadores de epilepsia, autismo, dores crônicas, mal de Parkinson e alguns tipos de câncer”.

Logo, diante de toda expectativa pela reunião da diretoria colegiada da agência e das duas propostas o que muita gente não entendeu é que ambas propostas chamadas Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC), (1) regulamentação dos requisitos técnicos e administrativos do cultivo para uso medicinal e científico; (2) registro, procedimentos e monitoramento de medicamentos, são especificamente para empresas, com foco em desenvolvimento clínico no estilo das farmacêuticas.

Desde 2017, a Anvisa estuda esse tema e formou um grupo técnico para analisar qual seria o modelo de regulamentação da erva para o Brasil. Os especialista viajaram para 4 países em que há mercado legal de cannabis medicinal: EUA, Canadá, Israel e Portugal.

“No Canadá, eu mesmo tive a honra de visitar algumas facilities de produção, com cultivos indoor e em greenhouse, e ver com meus próprios olhos as reações dos técnicos aos locais e processos. (…) Por tudo que vivenciei na época, apostava que teríamos algo na linha do Canadá, dado a ótima impressão que os sítios de produção das empresas que visitamos deixaram nos técnicos da Anvisa”.

– narra em artigo o neurocientista e empreendedor, Fabrício Pamplona, em artigo essencial sobre essa história toda.

Em texto publicado na Medium, Pamplona deixa explícita a eventual cara da regulamentação brasileira, iluminando os detalhes, inclusive o tamanho deste mercado.

#PraCegoVer: Gráfico mostra a expectativa do tamanho de mercado dos países da América Latina. É uma briga pra cachorro grande. Fonte: New Frontier Data

Segundo ele, “o nosso país tem uma responsabilidade imensa, porque embora não tenha sido pioneiro, e perdido a dianteira do processo para outros países como Uruguai, Argentina, Colômbia, Chile e México (ou seja, quase todos os outros relevantes), o Brasil ainda é considerado o melhor mercado, dado seu tamanho continental. Então, a regulação aqui pode influenciar amplamente o cenário da Cannabis na América Latina. E ao que tudo indica, vai ser briga de cachorro grande”.

SÓ PARA AS GRANDES

Com potencial para alcançar quase  US$ 5 bilhões no país, esse mercado já vem fazendo bilionários em todo o mundo e agora vê por aqui uma nova oportunidade de fabricar mais dinheiro.

Um dia após a decisão da agência, a empresa canadense Canopy Growth anunciou que fará um investimento de R$ 60 milhões em terras tupiniquins, com promessa de expansão para R$ 150 milhões no futuro, através do seu braço farmacêutico, a Spectrum Therapeutics. Questionados durante coletiva de imprensa, porta-vozes da empresa negaram, porém, a relação entre o anúncio da expansão e a reunião da agência reguladora nacional. A organização já tem investimentos na Colômbia, vizinho que está à nossa frente na regulamentação da cannabis medicinal.

E é isso mesmo que você entendeu: com o modelo regulatório proposto pela Anvisa, o Brasil segue o Canadá em seus primeiros anos de legalização medicinal (2001), e dá prioridade para grandes empresas fazerem o cultivo, através da determinação de um conjunto de regras complexas, caras e rígidas para a produção da cannabis, segundo explica Fabrício Pamplona na Medium.

O QUE SOBRA PARA A SOCIEDADE?

Diante de todas as exigências da agência, o que provavelmente sobrará para a sociedade brasileira são produtos para fins medicinais a um alto custo, desmontando o argumento do órgão regulador de que “mais oferta, menor preço”.  Por base dos investimentos necessários para se adequarem aos padrões exigidos pela agência, já é possível vislumbrar um mercado com produtos na casa dos 4 dígitos.

Pequenas empresas e empreendedores que vislumbravam a possibilidade de possuir cultivo para a produção de um produto de uso tópico ou voltado a outra terapias, que poderia ser comercializado em farmácias de manipulação, por exemplo, também já estão fora da jogada diante dos requisitos. É que a proposta só fala em produtos registrados, havendo inclusive menção direta à exclusão deste tipo de estabelecimento. É algo a se refletir, tendo em vista a necessidade de individualização de dose e de tratamentos mais personalizados.

Necessidades como cultivo caseiro ou associativo ficam excluídas da proposta do órgão, até pelo motivo de não ser competência da agência em regulá-los, embora talvez associações consigam atender certos requisitos de qualidade se forem apoiadas por laboratórios, havendo necessidade de investimento e capacitação profissional.

SEGUIR PELO JUDICIÁRIO

Desde 2015, a importação de óleos e extratos à base dos derivados da cannabis é permitida pela Anvisa, mediante apresentação de laudos e prescrição médica.

Diante dos altos custos envolvidos no processo, porém, nos últimos anos ao menos 40 famílias e uma associação já ganharam Salvo Conduto para o cultivo da planta, e a ideia agora é ingressar com novas ações que possam ampliar o número de pacientes atendidos, por meio de uma autorização coletiva a essas entidades.

Leia mais: Grupos de pacientes buscam aval para cultivo de maconha

Aos consumidores de cannabis para fins adultos, a atual e única esperança é a continuidade do julgamento no STF, que pode descriminalizar o porte, consumo e até o cultivo caseiro, caso outros ministros sigam o voto do ministro Luís Roberto Barroso.

Outros oito ministros ainda vão votar. Quando votou, Barroso sugeriu que o tribunal fixe 25 gramas do produto como quantia limítrofe para distinguir usuários de traficantes. Ele também afirmou que o usuário poderia cultivar, no máximo, seis plantas fêmeas de maconha. As quantidades foram inspiradas na legislação de Portugal e do Uruguai.

O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, marcou para o dia 06 de novembro deste ano a retomada do julgamento que trata da descriminalização do porte de maconha para uso pessoa . A retomada do julgamento estava prevista para o dia 5 de junho, mas Toffoli adiou a discussão devido ao congestionamento da pauta da Suprema Corte.

APESAR DE TUDO, É UM MARCO

A possibilidade de autorizar o cultivo da maconha e como fiscalizar esse cultivo, assim como a possibilidade de produzir remédios à base da planta, estão sinalizadas na Convenção de Drogas da Organização das Nações Unidas de 1961. Em 1964, durante a ditadura militar, essa convenção foi promulgada no Brasil, por meio de um decreto do presidente Humberto de Alencar Castello Branco.

No último ano de seu primeiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a Lei n.º 11.343/2006, a Lei de Drogas, que deu à União a prerrogativa de autorizar o plantio, a cultura e a colheita de plantas como a maconha ou a cocaína.

Para serem permitidas, essas atividades devem ser dedicadas a fins exclusivamente medicinais ou científicos.

Também em 2006, Lula assinou um decreto regulamentando essa lei, que atribui ao Ministério da Saúde, ao qual a Anvisa está vinculada, a autorização do plantio e do registro de medicamentos feito à base de vegetais como a Cannabis. Até 2015, no entanto, a agência não se manifestou sobre nenhum dos dois temas.

Treze anos depois do decreto assinado por Lula e quatro após os mais de 6 mil pedidos de importação de produtos à base de derivados da cannabis, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária se debruçar neste tema é algo a se considerar um marco, mesmo não agradando a muita gente da sociedade civil e empresarial, principalmente durante o governo Bolsonaro.

Uma gestão que, como sabemos, é marcada pelo endurecimento da lei de drogas, através de nosso velho conhecido, Ministro Osmar Terra, ator das proposições que, entre outras coisas, passam a facilitar internações compulsórias de usuários de drogas e aumentam a pena para crime de tráfico.

Terra já não deixou barato, chamando a Anvisa de irresponsável e que está indo “contra a lei, contra as evidências científicas e contra o Congresso e o Governo Brasileiro”. Sua opinião foi seguida pelo Conselho Nacional de Medicina (CNM) e pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em nota publicada recentemente e respondida pela agência em publicação intitulada “Cannabis: nota de esclarecimento”.

Por fim, acredito que os mais necessitados – pacientes e portadores de epilepsia, autismo, dores crônicas, mal e Parkinson e alguns tipos de câncer -, sem contar a infinidade de pessoas que sofrem de depressão, ansiedade, insônia e entre outras doenças comuns continuarão na dependência de um produto a alto custo e sem uma opção “genérica”, como poderia ser o cultivo caseiro e associativo, como é feito no Uruguai, por exemplo – mas, essa já não é uma competência da agência, e sim legislativa ou jurídica.

Fontes –

Brasil deu primeiro passo para regulamentar maconha medicinal; e agora? – Laio Rocha | Mídia Ninja

Um mercado regulado para os grandes – Fabricio Pamplona | Medium

O Plano da Anvisa para o plantio de maconha e seu uso medicinal – André Cabette Fábio | NEXO

#PraCegoVer:  Em destaque, fotografia em close de uma vistosa flor de maconha em tons de verde com pistilos brancos e partes das folhas de outra planta (na lateral direita da foto), com um fundo desfocado. Foto: Phill Whizzman | Smoke Buddies

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Sobre Dave Coutinho

Carioca, Maconheiro, Ativista na Luta pela Legalização da Maconha e outras causas. CEO "faz-tudo" e Co-fundador da Smoke Buddies, um projeto que começou em 2011 e para o qual, desde então, tenho me dedicado exclusivamente.
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