Pelas telas da internet, projetos ampliam a comunicação canábica brasileira

Imagem mostra os atores Luis Navarro (esq.) e Henrique Santana (dir.) sentados e, entre os dois, o personagem Lombra (um bicho preguiça) no set do canal Sessão, cujo cenário replica um grow indoor. Foto: David Ferreira.

Conheça novas iniciativas de comunicação que se propõem a abordar, apesar de todos os obstáculos, a maconha como inspiração e pauta nas redes sociais

Na linguagem canábica, a palavra sessão tem peso, significado, e até apelido diminutivo — sesh, para o momento (além do cheiroso) compartilhado. É a brisa, é o papo, é a companhia, é o ambiente, é a troca. Neste contexto, a expressão uso social nunca fez tanto sentido. E na pandemia, nunca fez tanta falta.

Por isso, além da tendência das lives, que preencheram parte da nossa vida social prejudicada pelo isolamento, a produção de conteúdo canábico virtual ganhou impulso do ano passado para cá, trazendo novas caras e vozes para as telas de plataformas sociais, como YouTube e Instagram.

“A gente estava comentando que não aguentava mais esperar a ligação de um playboy para seguir nossa vida financeira”, conta o ator Henrique Santana sobre a motivação inicial do canal Sessão, concebido com seu parceiro de cena na série Pico da Neblina, da HBO, Luis Navarro. “Temos outros projetos de roteiros, mas carecia de algo que falasse com o nosso público diretamente”.

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Um cenário de grow desenhado por Marcelo Pasqua, um estúdio com “mais câmera que a Globo”, brinca Henrique, um roteiro fluido, no estilo podcast, uma seleção de convidados relevantes e um bicho preguiça sagaz como personagem, o Lombra. Por trás da estrutura profissional, com várias pessoas e algumas marcas envolvidas, uma proposta simples: “É um lugar onde a gente cultiva ideias. E a gente quer a pessoa à vontade para falar sobre o que ela sente e pensa”, diz.

Embora a maconha esteja presente em referências visuais, algumas sutis e outras nem tanto, não é o tema que pauta a maioria dos episódios da primeira temporada do Sessão. “Desde sempre, a gente conversou sobre levantar várias questões sociais, mas ao mesmo tempo não levantar a bandeira de uma forma militante sobre a maconha. Eu acho mais interessante essa coisa pelo subtexto, porque você atinge mais pessoas”, explica Navarro. Por isso, entre os convidados das áreas da música, dança, humor, poesia e de lutas sociais, a maconha se dissipa em fumaça, quase imperceptível — ainda que permaneça no ambiente, principalmente para quem tem o faro aguçado.

“Na roda, a gente não fica falando de maconha, né?”, pergunta Henrique. “A gente pensa como ela está no nosso cotidiano. Para falar de coisas simples e profundas. Em lembrar casos de amigos, de infância, ou falar sobre racismo, homofobia, opressão social, sobre política”, explica.

Pelo viés oposto, ou seja, da explanação total da maconha, o canal Mobydick Show, comandado pelo também ator Dick Petraglia, surgiu na pandemia quando, aos 70 anos, o aposentado (além de maconheiro desde 1969 e paciente medicinal com HC para cultivo doméstico) decidiu que tinha muito a dizer, sobretudo neste assunto. Depois de criar pílulas diárias em vídeo para o Instagram, chamadas ‘Bek com o Dick’, passou a produzir, em parceria com Marcelo Gibson, da Ghetto Filmes, o irreverente projeto de entrevistas, que são gravadas e veiculadas toda semana no YouTube.

“Eu sempre quero saber algo da vida da pessoa, e depois a posição com relação à legalização da maconha”, conta Dick. “É curioso, porque são pessoas de vários nichos e é importante verem que maconheiro não é só a mesma coisa, não é o estereótipo do doidão, tem muita gente inteligente”.

Com discurso e posicionamento afiados sobre as principais discussões que pairam na comunidade canábica, Dick usa a visibilidade e reputação que construiu ao longo de sua carreira para, espontaneamente, ampliar vozes que considera importantes. “A gente às vezes se defronta com universos realmente heavy metal que não tinha ideia de que existissem”, conta. “Eu como branco, de olho azul, privilegiado, sinto que é importante abrir a minha própria cabeça”.

Nessa busca, o projeto por ora desenvolvido voluntariamente já soma 34 episódios no YouTube, e mais de cem vídeos no Instagram, além de várias lives (uma, inclusive, na banheira) em temas relacionados à maconha, à política de drogas no Brasil e outras brisas. “Quero me conectar com as pessoas que eu acho que devo e falar as coisas que acho que devo”, explica.

 

Falar para quem?

 

Dick já deu a letra de que entusiastas da planta não são iguais — então por que a comunicação voltada ao segmento seria?

“Eu sempre senti muita falta da presença feminina na cena canábica”, conta a paulistana Carol Yuri, à frente do canal Mana que brisa, lançado há pouco mais de um ano e já com mais de 54 mil inscritos no YouTube. “E com muitas representações femininas eu não conseguia me identificar por completo”.

Maconheira há dez anos, a publicitária com diploma da USP passou a falar de maconha nas redes no início da pandemia, quando se viu em lockdown, em Barcelona e, incentivada por amigas, começou usar o privilégio de ter acesso à maconha e derivados para mostrá-los (e muito), mas também informar a respeito.

Num estilo que passeia entre vlog e tutorial, com linguagem e identidade focadas nas manas, ela propõe um repertório de pautas que abordam questões comuns nesta interseção. “Eu me baseio muito nas experiências que tive. Uma das pautas mais famosas é sobre como eu legalizei para a minha mãe”, diz. “E não só isso, eu ouço muito o que as minhas seguidoras me falam. Com base nisso, eu crio o conteúdo”.

Assim, Carol trabalha com estratégias para fortalecer uma audiência que nem sempre é representada. “Antes de criar o canal, via vídeos de criadores de conteúdo e sempre tinha a sensação de que não estavam falando comigo. Por isso que acho que a comunidade LGBT também se identificou com a forma como eu falo”, explica. “Quero falar com aquelas pessoas que não se sentiam dentro. Não se sentiam incluídas”. Hoje, 70% da sua audiência é feminina no Instagram.

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No Sessão, o recorte de público desenha outro perfil. “Eu me sinto como uma arma que pode dar voz à quebrada”, diz Navarro. Além dos fãs, sobretudo da série de tevê que se desenrola em um cenário pós-legalização, a audiência do canal gira em torno das vivências, das pessoas e das linguagens que eles trazem para a roda.

“Eu sou de quebrada, sou periférico, trago uma literatura regional na minha fala”, afirma Henrique. “Eu encontrei na arte uma forma genuína de encontrar as coisas que eu tenho a dizer, e a periferia é a maior beneficiada por isso, porque eu sou ela”.

Enquanto o assunto se desdobra em muitos para compreender o que, de fato, se entende por uma comunidade maconheira, transpor a chamada bolha canábica e abrir a conversa com quem não é da sesh é um desafio, na visão de Dick. “Infelizmente, a maior parte do meu público é de maconheiro. Mas eu tenho alguns que não são, que são fãs do ator da novela, e é muito importante para essas pessoas ouvirem essas informações, porque elas estão subinformadas. A imprensa em geral não explica as coisas como deve explicar, existe muito interesse em uma classe médica elitista em receitar”, conta.

 

Muita treta, vish

 

“Eu falo que nunca trabalhei tanto assim, nem quando estava no lava-rápido”, conta Henrique. “Estamos numa pandemia, a gente tinha que envolver o mínimo de pessoas possível, então fomos para a bala, Luís e eu. A gente montou pacotes de inserção e, para as marcas que fossem doidas o suficiente de entrar no piloto, oferecemos um valor que apenas custeasse nosso trabalho”.

Além de furar a bolha, derrubar estigmas, encontrar uma voz, conectar com o público, lidar com eventuais haters e fazer os corres operacionais, em plena pandemia, para manter o projeto no ar, os comunicadores encontram no caminho outros desafios inerentes ao segmento canábico, como restrições nas plataformas e dificuldade de monetização.

Tive a minha conta no Instagram desativada quatro vezes, foi um estresse. Dias e dias construindo um nicho, confiança com os seguidores e da noite para o dia você perde tudo”, conta Carol, resumindo um drama recorrente entre os perfis 420 nas redes sociais.

A limitação de impulsionamento, a queda na entrega e no alcance dos conteúdos e a instabilidade sobre a qual se constrói uma base são obstáculos impostos pelas plataformas que difundem esses projetos, e deixam duas alternativas: bater de frente e encarar os riscos ou dissimular a mensagem.

“Sobre ser pala, é o que eu mais sinto falta na cena canábica. E eu sei que um monte de criadores de conteúdo se limita, e esse é o maior desafio para a gente, tanto no YouTube quanto no Instagram”, diz Carol. “Mas, é o mostrar que vai fazer diferença na vida das pessoas. Muitas são enganadas nos corres por que nunca viram haxixe”. Mas, a escolha pela explicitude cobra seu preço. “No YouTube, não monetizo”, conta ela, que desenvolve produtos ligados ao universo canábico, como piteiras de vidro e camisetas, como um braço de atuação que dá suporte ao seu projeto de comunicação.

Enquanto isso, o Sessão, que adota as entrelinhas e vislumbra retorno tanto na monetização pelo YouTube quanto nas inserções de marcas, dentro e fora do segmento, também reflete sobre os entraves do setor canábico. “Eu acho que o mercado está embrionário por conta das questões de retrocesso que a gente vive”, explica Navarro, que está à frente de outras iniciativas empreendedoras no segmento. “A gente é o país mais atrasado do mundo, na abolição, na vacina, na legalização. Eu me sinto na época da Tropicália, tendo que medir o que falar”.

 

Megafone da cena

 

Se abordar a maconha em plataformas que dificultam o trabalho parece um ofício de vocação, dedicação e entrega, projetos de comunicação podem, por outro lado, agregar valor, dar voz e ampliar as estratégias para negócios canábicos que já possuem uma audiência nichada, por conta do produto ou serviço que oferecem.

“Nos lançamentos de camisetas da marca, a gente fazia um evento, alguma coisa, para apresentar a ideia, reunir amigos. Mas, uma semana depois que lançamos a última coleção, veio a pandemia”, conta Gabriel Furlan, um dos sócios da Altos Bagulhos, empresa de produtos de lifestyle canábico que desenvolveu e lançou uma temporada de vídeos com influenciadores que abordam temas que conversam com a marca, como arte, música e maconha.

“É uma parada de coletivo mesmo, uma parada que agregue para todo mundo, que nosso público goste, o público dos participantes também. A gente sempre fez collab, e entende que o coletivo é sempre mais importante do que só a marca”, explica.

O Só Bagulho Bom, veiculado em pílulas no Instagram e na íntegra, com trechos exclusivos, no YouTube, não apenas reforça o conceito e a proposta da marca, mas tem potencial de ser um novo produto, segundo Gabriel.

Com expectativa de novas temporadas, o formato é mais um exemplo de como a pauta da maconha pode ser abordada com criatividade para ampliar o debate no ambiente virtual e fortalecer este mercado em desenvolvimento.

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#PraTodosVerem: imagem (em destaque) mostra os atores Luis Navarro (esq.) e Henrique Santana (dir.) sentados e, entre os dois, o personagem Lombra (um bicho preguiça) no set do canal Sessão, cujo cenário replica um grow indoor. Foto: David Ferreira.

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Sobre Thaís Ritli

Thaís Ritli é jornalista especializada em cannabis e editora-chefe na Smoke Buddies, onde também escreve perfis, crônicas e outras brisas.
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