O proibicionismo normalizou matar um adolescente e demonizou o uso de drogas

Fotografia de João Pedro, do peito para cima, com um sorriso aberto e fazendo o gesto de vitória. Imagem: arquivo pessoal.

Em tempos de pandemia, quando as populações vulneráveis mais precisam de ajuda, o Estado continua assassinando crianças e adolescentes nas favelas em nome de uma falsa guerra às drogas. Entenda mais no texto do historiador e ativista Henrique Oliveira*

Foi para cumprir dois mandados de prisão de lideranças do tráfico de drogas que as polícias civis e federais entraram no Complexo do Salgueiro, na última terça-feira (19/5), na operação que terminou com o assassinato do adolescente João Pedro, de 14 anos de idade, baleado dentro de casa, no Rio de Janeiro. Segundo as investigações preliminares, a bala que atingiu João Pedro tem o mesmo calibre do fuzil que foi apreendido com os policiais para a perícia.

Estamos em plena pandemia mundial de coronavírus, uma emergência em escala global de saúde pública, que até agora no Brasil matou mais de 20 mil pessoas, deveríamos aproveitar esse momento, em que a ciência e a valorização da saúde pública estão sendo cruciais para enfrentar o vírus, para alterarmos a nossa política de drogas. Só que não, assim como a escravidão foi levada até o final do século XIX, fazendo 132 anos da sua abolição em 2020, a elite brasileira pretende levar também a guerra às drogas até o último o corpo cravado de bala ou trancafiado na cadeia.

O assassinato de João Pedro foi precedido de uma operação policial no Complexo do Alemão, que terminou com 13 pessoas mortas, na sexta feira (15/5), em que moradores tiveram que recolher os corpos que foram deixados espalhados pelos policiais na favela. E não parou por aí, logo após a morte de João Pedro, mais dois jovens foram baleados e mortos em ações policiais, João Vitor, na Cidade de Deus, e Rodrigo Cerqueira, na Providência. Ao todo, um adolescente foi morto por mês em 2020 no Rio de Janeiro, fruto de ações policiais.

A crise do coronavírus não tem promovido impactos apenas do ponto de vista da saúde pública, mas também econômicos, com a decretação da quarentena e fechamento de setores da economia, muita gente perdeu o emprego, teve sua renda reduzida ou está impossibilitada de procurar empregos, portanto, está vendo o seu sustento ficar cada vez mais difícil. Como se tudo isso não bastasse, essas ações policiais violentas ocorrem em momentos nos quais voluntários estão entregando cestas básicas nas favelas. Ainda mais, que as favelas são ambientes vulneráveis, porque há uma maior dificuldade e às vezes é até impossível fazer o distanciamento social, no entanto, o governo opta por enviar policiais do que auxílio médico.

Proibicionismo, Hidroxicloroquina e a defesa da saúde pública?

Segundo a nossa atual Lei Antidrogas 11.343/06, as condutas tipificadas no artigo 33 do código penal, que na verdade são um conjunto de verbos como: importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, preservar, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

São condutas que violam a saúde pública, isso quer dizer que quem produz e vende drogas não comete um crime contra a vida de quem está comprando, a exemplo do homicídio. Portanto, estamos falando de um crime sem vítima, já que existe uma relação consensual e voluntária, entre pessoas que vendem e pessoas que querem comprar drogas, que não atinge e causa danos a terceiros. Trata se de uma autolesão, assim como ocorre com usuários de drogas legais.

Porém, a propaganda proibicionista conseguiu convencer toda a sociedade que vale a pena trocarmos vidas para tentar impedir que as pessoas façam mal a elas mesmas usando as drogas que hoje estão proibidas. É surreal. Se alguém quer falar sobre distopia, para mim não tem distopia maior do que a política de guerra às drogas. Segundo essa política, se a polícia mata 1, 5, 10 pessoas ou mais, tudo se justifica se ela conseguir apreender drogas e armas, como se as vidas fossem sacrificáveis em nome de algo muito maior. A guerra às drogas mata mais do que qualquer uma dessas substâncias!

A política antidrogas normalizou e naturalizou que crianças e adolescentes, principalmente negras e pobres, sejam assassinadas por “bala perdida”, por que o objetivo do Estado é impedir o consumo de drogas. Em troca de uma autolesão individual, como aquela causada pelo cigarro ou o álcool, estamos oferecendo a vida de parcela da sociedade numa política que não tem nenhum benefício social efetivo. Qual o retorno positivo a sociedade teve nesses mais de 50 anos de “war on drugs”, declarada pelo governo dos EUA e que influenciou todo o mundo?

Enquanto isso, o governo Bolsonaro faz de tudo para empurrar goela abaixo dos brasileiros a hidroxicloroquina, quando está comprovado por diversas pesquisas científicas que esse remédio não tem nenhum tipo de efeito positivo para debelar o coronavírus, muito pelo contrário, o remédio aumenta o risco de arritmia cardíaca e infartos. Quando as pesquisas feitas com maconha têm apontado uma capacidade de aumentar em 70% a imunidade e impedir a infecção por coronavírus. Se for para testar um remédio contra o coronavírus, por que não testar maconha, já que o risco de efeito colateral é zero? Maconha é bem mais segura que hidroxicloroquina.

Só que em nome da hipocrisia, e de uma política que é lucrativa justamente pela violência que proporciona, vamos continuar comemorando apreensão de maconha, nas incansáveis operações enxugamento de gelo, receitando hidroxicloroquina e matando pessoas à bala, para supostamente defender a saúde pública.

*Henrique Oliveira é historiador e militante antirracista contra a proibição das drogas.

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#PraCegoVer: fotografia (de capa) de João Pedro, do peito para cima, com um sorriso aberto e fazendo o gesto de vitória. Imagem: arquivo pessoal.

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