Portugal: “A lei da cannabis medicinal foi para boi ver”

Fotografia que mostra um cultivo de cannabis em período vegetativo de crescimento, com foco em uma das plantas no primeiro plano e um fundo escuro. Imagem: THCameraphoto.

Dois anos após aprovação da lei que legaliza o uso terapêutico da maconha em Portugal, tudo está como antes: não há nas farmácias qualquer preparação derivada da planta. Mas surgiram negócios que vendem produtos de cannabis como “suplemento alimentar” que são usados para fins medicinais. Saiba mais na reportagem do Diário de Notícias

Foi em pleno estado de emergência que John, um inglês a residir em Lisboa há vários anos, fez uma busca no Google por “CBD shop Lisboa”. “Apareceram imensos sites”, explica ao DN, alguns com lojas físicas. “Estive a examiná-los e decidi por um que me pareceu melhor. Comprei online e no mesmo dia tinha um estafeta à porta com a erva. Tudo muito simples, rápido e eficaz”.

John fuma habitualmente maconha, e não por motivos terapêuticos: é o chamado consumidor recreativo. Com as restrições impostas pela pandemia, os preços do produto vendido ilegalmente subiram muito — houve quem afirmasse ao DN que para o dobro — ao mesmo tempo em que o produto escasseava. Foi o que o levou à busca citada. “Aquilo que comprei não tem THC [tetraidrocanabinol, o componente ‘psicotrópico’ ou estupefaciente da maconha], é suposto só ter CBD, canabidiol. Portanto não dá ‘moca’. É como beber café descafeinado. O sabor é bom, porém, e foi barato, atendendo a que custou mais ou menos o mesmo que costumava pagar pela erva a sério, cujo preço subiu astronomicamente”.

Até falar com o DN, John estava seguro de que a transação tinha sido legal. Não só por ter sido tão fácil encontrar o site e fazer a compra como por que sabe que a cannabis medicinal foi legalizada em Portugal.

Fica, pois, muito surpreendido quando o DN lhe diz que não é assim tão simples: nos termos da lei que passou na Assembleia da República em junho de 2018 e que “Regula a utilização de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis, para fins medicinais” e da regulamentação respectiva, datada de janeiro de 2019, para comprar produtos de cannabis medicinal é preciso prescrição médica, e essa prescrição, só admitida para uma lista muito limitada de doenças e afecções, apenas pode ser “aviada” numa farmácia; além disso, para que qualquer produto derivado de cannabis seja colocado à venda nas farmácias para uso terapêutico terá de existir uma licença especial do regulador do medicamento, o Infarmed. Aquilo que comprou não é, pois, cannabis medicinal. Será o quê, então?

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“É uma área muito ambígua, arriscada”

Vejamos o que diz o site em causa, que alardeia ter até agora efetuado mais de 15 mil vendas, à razão de 230 por dia. Na entrada, lê-se “laboratório testado” — que será que quer dizer? — e na zona onde apresenta as “flores de CBD” garante: “certificado legalmente”. No local do site com informação sobre leis, porém, à pergunta “o CBD é legal em Portugal?” responde-se: “Basicamente, sim, sim, é. Enquanto as drogas são descriminalizadas, a maconha medicinal é legal aqui, e o CBD faz parte da indústria de cannabis medicinal. Comprar CBD sem receita médica pode ou não ser um pouco arriscado, as farmácias usarão apenas medicamentos baseados em CBD com receita médica, por exemplo, mas, além disso, as regras são bastante frouxas e podem estar mudando ainda mais“. Traduzindo: o site aposta nas “regras frouxas” e na confusão, já que não pode apelidar o CBD que vende de “cannabis medicinal”, não é uma farmácia e quem nele compra não possui receita médica.

Apesar de este site não indicar endereço físico, número de telefone ou identificação de responsáveis, o DN conseguiu chegar à fala com um dos seus gestores/donos, um inglês de 26 anos que afirmou ao jornal viver em Portugal. Assegurando que nem ele nem os dois sócios, ambos franceses, querem “atrair atenção, por se tratar de uma área muito ambígua e arriscada”, pelo que preferem não dar entrevistas nem ser identificados, James (chamemos-lhe assim), que se apresenta como um gestor de tecnologia e “fundador de startups” (o DN identificou outras empresas, sediadas no estrangeiro, das quais é indicado como dono/gestor, mas que não parecem dedicar-se ao mesmo ramo), assegura que os três viviam já em Portugal quando abriram a empresa que administra o site. “Começamos este negócio por que esta vai ser nova área, muito importante. Vai ser um grande momento na nossa história. Queremos contribuir para que o mundo seja melhor”.

“Sabemos que tem havido detenções, sim”

Registrada em fevereiro de 2020, com o capital social de três euros — questionado sobre o porquê de um montante tão irrisório, James não esclarece — a empresa só foi registrada após, assegura este gerente, se ter concluído que iria funcionar dentro da lei: “Não procuramos aconselhamento jurídico para saber como ‘furar a lei’. Informamo-nos e disseram que podíamos avançar. Os nossos advogados estão a usar as leis da UE. A nossa intenção não é infringir”.

Para não o fazer, têm, explica James, de tornar claro que os seus produtos, que sublinha serem produzidos a partir do cânhamo industrial, uma variante da planta cannabis que difere da variedade cannabis sativa (esta a constante nas tabelas da ONU e na legislação portuguesa delas decorrente como “controlada”, ou seja, “proibida”), não são vendidos como medicamento ou para efeitos terapêuticos, e de certificar que não contêm um nível de THC superior ao máximo admitido — 0,2%.

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Fato é que, como vimos, o site de que James é corresponsável aposta na confusão quanto ao estatuto dos produtos que vende. E os seus gerentes sabem que outros operadores do mesmo mercado, que vendem o mesmo tipo de produtos, estão a ser detidos. “Sabemos que tem havido detenções, sim. Daí dizer que não temos interesse em chamar a atenção sobre nós”.

Precisamente no mesmo momento em que o DN falou com James houve pelo menos duas detenções em Lisboa relacionadas com um dos produtos — flores de CBD — que a empresa dele comercializa. Trata-se dos gerentes de duas empresas que ao contrário da de James têm lojas de rua. Num dos casos o gerente recusou falar ao DN, alegando não ter ainda tido acesso ao processo, mas Maria (também não se trata do nome verdadeiro), responsável da outra loja atingida, concorda em conversar com o jornal.

A minha sócia foi detida na loja, em pleno estado de emergência, quando estávamos a funcionar somente online. Foi à loja receber uma encomenda e quando chegou tinha a polícia à porta. Disseram que tinham recebido uma denúncia e que andavam há mais de um mês a monitorizar os nossos movimentos à espera de que chegasse mercadoria.”

“E aqui estamos com um processo por narcotráfico”

A encomenda em causa era de flor de CBD, obtida, garante Maria, a partir de cânhamo industrial, trazendo, como todas as encomendas deste tipo, apensos os resultados de testes laboratoriais atestando um valor de THC abaixo de 0,2%. “Mas a polícia fez os testes e dava presença de THC — aquilo tem sempre vestígios. Agora temos de esperar pela análise laboratorial, que vai avaliar a percentagem real e determinar se ultrapassa ou não o valor permitido”.

A espera pela análise pode durar mais de um ano; até lá não verão o valor investido nas flores de CBD, cerca de seis mil euros. E não é seguro que, mesmo vindo-se a concluir que o nível de THC está abaixo de 0,2%, a mercadoria seja devolvida.

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Maria ri como quem encolhe os ombros. “Tenho conhecimento de que numa loja em Évora, há três semanas, até cremes à base de cânhamo apreenderam. É ridículo. Este tipo de derivados de cânhamo está num limbo legal aqui, apesar de os comprarmos de países europeus — Alemanha, França, Espanha, Holanda. E aqui estamos com um processo por narcotráfico. Se alguma vez eu e a minha sócia imaginamos uma coisa destas quando decidimos abrir a loja. Não tínhamos ideia das dificuldades que íamos ter. Em pleno século XXI, com uma lei a permitir o uso terapêutico da cannabis, sermos acusadas disto, enquanto me aparecem pais de crianças com epilepsia e pessoas com neoplasias à procura de produtos de CBD e não os posso ajudar“.

E assegura que ela e a sócia só queriam poder trabalhar em paz e de forma legal: “Fomos bater à porta da Direção Geral de Alimentação e Veterinária, que tem a tutela dos suplementos alimentares — o óleo de CBD que compramos é vendido como suplemento alimentar —, mas disseram-nos que por via da lei da cannabis medicinal agora tudo o que tem a ver com cannabis, mesmo na variedade cânhamo, é com o Infarmed. Se eu tivesse, para poder funcionar em paz, de pagar uma licença de importação ao Infarmed de 2.000 euros e notificar a PJ de cada vez que vem uma encomenda tudo bem. Mas não me dão essa hipótese“.

“A lei não serviu para nada. Não saiu do papel”

Para Carla Dias, presidente do Observatório Português da Canábis Medicinal, criado em 2019, não há dúvidas: “É proibido vender produtos com percentagem de CBD para consumo humano porque está estabelecido que só podem ser vendidos em farmácia e mediante prescrição médica. Os sites e lojas que os vendem estão a fazê-lo ilegalmente, mas como o senso comum é de que a cannabis medicinal está legalizada muita gente nem se dá conta disso”.

Carla tem conhecimento do site referido, do qual James é gestor, através do circuito de informações de pacientes e familiares de pacientes que usam produtos de cannabis. “Trocamos informação sobre o que existe no mercado”. Foi assim, através desse circuito informal e também pela mídia, que soube, em 2018, que o óleo de CBD poderia ajudar a sua filha, então com dois anos, e que sofre de convulsões epiléticas por ter sido vítima de Fires aos 10 meses (acrônimo de Febrile infection-related epilepsy syndrome, uma encefalopatia epilética que pode surgir em crianças e adolescentes após uma febre aparentemente normal). Começou a ministrar-lhe a partir de junho de 2018 (o mês em que a lei foi aprovada) e viu grandes melhoras. Daí até ao ativismo e à criação do Observatório decorreu cerca de um ano — no qual esperou ver resolvida a situação dos que como ela queriam ter acesso a produtos de CBD certificados e vendidos em farmácias.

Mas esta mãe, como outros pais de crianças com epilepsias refratárias que o DN foi entrevistando ao longo de 2018 e 2019 e que contavam ter uma resposta legal para as suas necessidades, declara o balanço, dois anos após a legislação aprovada, como nulo. “No que nos diz respeito à lei não serviu para nada. Não saiu do papel. Não há qualquer produto de cannabis medicinal no mercado. E continua a existir um enorme preconceito por parte dos médicos“. Pior, certifica: “A lei veio favorecer ilegalidades como as dos sites e lojas que vendem produtos de cannabis e empurrou os pacientes para essa ilegalidade e para situações em que não sabem o que estão a comprar e a tomar”.

“Há um grande preconceito na classe médica em relação à cannabis medicinal”

185 mil prescrições de cannabis na Alemanha em 2018

O óleo que compra para dar à filha, através da internet, é vendido através de um site europeu como suplemento alimentar. Não tem acesso a óleo de CBD vendido como produto terapêutico porque apesar de esse produto existir na Europa só pode ser comprado em farmácia e com receita médica.

É o caso da Alemanha, que legalizou a cannabis terapêutica em março de 2017 e assistiu a um aumento inesperado no número de prescrições de preparados e substâncias da planta, levando o país à posição de líder no mercado europeu quanto ao número de prescrições e à necessidade de importação — inclusive de Portugal — de mais do dobro da quantidade de flor em 2019 (6.500 quilos) em face de 2018 (3.000).

De acordo com uma análise, publicada em janeiro deste ano, dos regimes regulatórios da cannabis medicinal em vários países que a legalizaram (o caso português, curiosamente, não é abordado), antes da legalização existiam na Alemanha cerca de mil pacientes com autorização especial para usar produtos de cannabis. Desde a aprovação da lei, porém, “a procura aumentou rapidamente, surpreendendo os responsáveis governamentais e levando a frequentes faltas de estoque nas farmácias, uma vez que a produção doméstica se iniciou recentemente. Os autores da lei estimavam que só 700 pacientes por ano recorreriam a esse tipo de prescrição, mas em setembro de 2017 mais de 12 mil já tinham requerido reembolso do tratamento com cannabis medicinal. Em 2018, houve mais de 185 mil prescrições de cannabis medicinal no país, com entre 60 mil a 80 mil pacientes a usar produtos de cannabis medicinal“.

A análise, de autoria da clínica Anne Katrin Schlag, chefe investigadora da ONG Drug Science, inclui os casos da Itália, Israel, Países Baixos, Canadá e Austrália. E releva o da antiga Holanda, onde existe a possibilidade de prescrição de cannabis medicinal desde 2003 para uma série de doenças e sintomas — espasticidade em combinação com dor (para lesões na coluna etc.) e outros tipos de dor crônica, assim como para controlar a náusea e os vômitos na quimioterapia ou radioterapia e na medicação para HIV e hepatite, e na sida — e foi criado, em 2000, o Gabinete da Cannabis Medicinal, com a responsabilidade da produção de cannabis para fins médicos e científicos. Só este organismo pode importar e exportar cannabis e seus derivados e fornecê-los às farmácias. Como é sabido, a cannabis recreativa está disponível no país, nas famosas “coffee shops”, mas não só o grama da cannabis medicinal é muito mais barato nas farmácias (seis euros contra 10 nos comércios de cannabis recreativa) como a qualidade farmacológica está ali assegurada.

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Mercado português de cannabis não é atraente

Se, como vemos, noutros países as leis de cannabis medicinal funcionaram, por que é que em Portugal nada muda? Carla Dias suspira. “No último contato que tivemos com o Infarmed, em novembro de 2019, disseram-nos que o problema não é deles, que isto sucede por que as empresas não estão a fazer pedidos de autorização de introdução no mercado dos seus produtos”.

O Observatório não deixou cair os braços, porém; contatou várias empresas europeias de produção de cannabis medicinal com certificado de qualidade, como a holandesa Bedrocan. “O que eles dizem é que o mercado português não é aliciante, porque têm de se submeter a uma burocracia enorme e não sabem se o produto vai ser vendido e prescrito pelos médicos. Pelo que não vão fazer o pedido de autorização de colocação no mercado“.

Ainda assim, o Observatório recebeu um conselho das empresas contatadas: “Que solicitássemos ao ministério da Saúde que autorize que algumas farmácias possam importar diretamente para vender estes produtos, através de uma autorização especial de importação”. Carla enviou um e-mail no início de março à ministra Marta Temido a solicitar uma reunião nesse sentido, mas a pandemia interrompeu o processo.

Quanto à possibilidade, prevista na lei e na regulamentação, de o Laboratório Militar poder elaborar produtos de cannabis medicinal, parece ter ficado também em águas de bacalhau. “A informação que temos”, adianta Carla, “é que o laboratório chegou a receber prescrições de médicos para fazer a preparação, e disse-nos que estava preparado para o fazer, mas depois o Infarmed declarou-nos numa reunião que o LM não tem autonomia para tal“. Já em fevereiro de 2019 o DN tinha questionado o Infarmed sobre o papel do LM neste processo, nomeadamente sobre se seria o Infarmed a indicar que produtos deveria aquele preparar ou se poderia o LM assumir a iniciativa, assim como de onde viria a matéria-prima e qual o mecanismo — nomeadamente financiamento — para a sua compra. A resposta foi de que “o regime agora em vigor determina que [o LM] está legalmente autorizado à produção de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da cannabis, não tendo que seguir os procedimentos relativos aos pedidos de autorização previstos na lei”.

Mas o Infarmed acrescentava: “No entanto, [o LM] está obrigado ao cumprimento de todos os requisitos legais exigidos para a fabricação destes produtos, só podendo iniciar qualquer tipo de produção após verificação por parte do INFARMED de que é possuidor de todas as condições e requisitos técnicos“. Na mesma ocasião, o DN contatou o LM para perceber se este iria tentar fabricar os produtos em causa, mas não obteve resposta até agora.

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“A lei era demasiado genérica para se traduzir em alguma coisa”

“Estou na mesma situação em que estava no início de 2018, quando o DN me entrevistou. Nós os ilegais habituamo-nos a viver assim. Tenho tido apoio, mas nenhuma ajuda”. A ironia na voz de Victor Mateus pesa. É pai de Duarte, nascido há quase 17 anos com síndrome de Dravet, uma epilepsia refratária que causa convulsões terríveis. Desde 2017 que ele e a mulher decidiram começar dar óleo de CBD ao filho. Fizeram-no com medo, mas as melhoras entusiásticas deram-lhes coragem para continuar e assumir publicamente a situação, na esperança de que isso servisse para ajudar outros e mudar a lei.

E a lei mudou. Mas para Victor “foi como se costuma dizer na minha terra: uma lei para boi ver. Como se nos dissessem: querem uma lei? Tomem lá”. Continua como desde 2017 a comprar o óleo de CBD como suplemento alimentar, sempre temeroso por saber que usa um produto sem certificação terapêutica: “Como não é óleo purificado estamos sempre na dúvida. Será que as análises são fidedignas e as percentagens por lote iguais?”.

Apesar de existir já um verdadeiro fármaco, o Epidiolex, criado pela GW Pharmaceuticals a partir de óleo de CBD para tratamento das epilepsias refratárias, e de este ter sido aprovado quer pelo regulador do medicamento americano, a FDA, quer em setembro de 2019 pela Agência Europeia do Medicamento, tal de nada valeu a Duarte. “O Epidiolex podia ser dado ao meu filho, Dravet é uma das indicações do medicamento”, comenta o pai. “Mas não sei de ninguém em Portugal que esteja a tomá-lo, e conheço bem a comunidade Dravet”.

O neuropediatra Tiago Proença dos Santos tem explicação para isso. “Tentou-se fazer um pedido de Autorização de Utilização Especial [AUE, mecanismo que visa disponibilizar um fármaco a pacientes portugueses ainda antes de o laboratório requerer a autorização de introdução no mercado nacional ao Infarmed] de Epidiolex para alguns pacientes aqui, mas não avançou por que o laboratório não tem capacidade de resposta, não consegue produzir o fármaco em quantidade suficiente”.

No ínterim, admite o clínico, tem pacientes, ou seja, crianças, a usar óleo de CBD. “Não por sugestão minha, porque não sabemos o que estamos a dar e o meu primeiro dever como médico é não fazer mal. Faz-me muita confusão saltar etapas e usar estes preparados como se fossem fármacos. Mas não vou antagonizar, vou tentar ajudar, até por que o óleo é uma panaceia que se usa por que não temos Epidiolex. Mas se o Epidiolex estiver disponível, para quê usar o óleo?”.

“Se”. Porém não está disponível e não se sabe quando estará. E a lei que passou em 2018 e fala de preparados e substâncias, não apenas de medicamentos (para estes existia já toda uma cadeia de regulamentações, sejam eles derivados de cannabis, de ópio ou de salsa), ficou na gaveta. O neuropediatra é cáustico: “A lei da maneira como foi feita era demasiado genérica para se traduzir em alguma coisa na prática. Surgiu por que há correntes políticas de opinião que querem por motivos midiáticos promover a utilização de canabinoides, independentemente da validade científica destas indicações”.

Que noutros países, como a Alemanha, não tenha sido assim não se deverá a que aí parte da classe médica tenha aceitado prescrever preparados e substâncias que não são fármacos, em contraste com a posição da Ordem dos Médicos portuguesa, a qual se pronunciou contra a cannabis medicinal? “A posição da Ordem foi de que a utilização da cannabis terapêutica deve passar pelo mesmo crivo de qualquer fármaco”, responde o neuropediatra. “Mas no meu entender não se podem colocar no mesmo saco as epilepsias em idade pediátrica e o tratamento de dor em neoplasias, fibromialgia etc. Há situações e afecções nas quais produtos de cannabis que não são medicamentos podem ser usados, e aí a minha posição é diferente”.

Seja como for, nenhuma afecção ou situação para as quais se admite, nos vários países que aprovaram leis de cannabis terapêutica (e inclusive em Portugal, através da regulamentação efetuada sob os auspícios do Infarmed), o recurso a produtos desse tipo tem resposta legal e certificada no mercado português. Tiago Santos assenta: “Tenho um paciente cujo pai é uma pessoa muito diferenciada que vai à Espanha comprar produtos de cannabis e diz que um dia destes chega à fronteira e chama o Ministério Público, para criar um escândalo. Se me pergunta se acho bem, se calhar acho, para dar visibilidade à necessidade que existe e à indefinição da situação”. Porque pelos vistos é preciso.

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#PraCegoVer: em destaque, fotografia que mostra um cultivo de cannabis em período vegetativo de crescimento, com foco em uma das plantas no primeiro plano e um fundo escuro. Imagem: THCameraphoto.

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