Quico Meirelles fala sobre Pico da Neblina, série que idealiza a maconha legalizada no Brasil

Fotografia em primeiro plano de Quico Meirelles (parte esquerda da foto) vestindo uma camiseta vermelha e um fundo desfocado. Diretor

Em tempos de um conservadorismo exacerbado no país, uma série ficcional vem acalorar ainda mais o debate sobre a legalização da maconha. Entenda mais sobre o Pico da Neblina na entrevista de Quico Meirelles para o Hypeness.

Imagine um Brasil no qual você pode fumar sua erva em paz, sem correr o risco de ser enquadrado, ser preso ou compactuar com o tráfico de drogas. É dentro deste cenário, ainda distópico, que se desenrola a série Pico da Neblina, a estrear na HBO em 2019, dirigida por Quico Meirelles com apoio do pai, Fernando MeirellesLuis Carone e Rodrigo Pesavento.

A produção já tem dado o que falar só pelo tema em si, afinal, o país vem apontando para o conservadorismo, que reprime a descriminalização das substâncias alucinógenas. Mas, ao mesmo tempo, sinaliza que o assunto não vai morrer tão cedo, já que recentemente um grupo de juristas levou ao presidente da câmara Rodrigo Maia uma proposta de alteração da Lei de Entorpecentes, sugerindo que usuários flagrados com pequenas quantidades de drogas não estaria praticando um crime.

Atualmente, quem determina a diferença entre traficante e usuário é o juiz, colocando cada indivíduo à sua própria sorte, se é que podemos chamar assim. E, vale lembrar: é exatamente através do julgamento que as cadeias ficam superlotadas no Brasil, especialmente com pessoas pobres e negras, que compõem mais da metade da população encarcerada no país, dando provas matemáticas do racismo estrutural.

No ano passado, um levantamento feito pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro supõe que dos 210 mil presos por tráfico, 140 mil não deveriam estar atrás das grades, pois eram apenas usuários. Em São Paulo, o número de presos aumentou 508% em 12 anos, segundo o Ministério da Justiça e Secretaria da Administração Penitenciária. O encarceramento em massa não significa menos violência nas ruas, mas sim menos investigações coerentes, mais injustiças e até mesmo mais gastos para o Estado.

Na ficção de Pico da Neblina, a capital paulista serve de palco para contar a história de Biriba, um jovem que sai do tráfico para empreender na venda de cannabis a partir do momento de mudança na lei. O pouco experiente Vini entra na jogada como sócio investidor. Na contramão está o amigo Salim, que se mantém na ilegalidade. Transitando entre as armadilhas do mundo dos negócios e do tráfico, a narrativa promete ampliar a visão sobre os benefícios da legalização.

Fotografia em meio primeiro plano de Luís Navarro com os braços cruzados e olhando pro lado, na parte esquerda da foto, e ao fundo, desfocado, pode-se ver um dos morros de São Paulo.

#PraCegoVer: fotografia em meio primeiro plano de Luís Navarro com os braços cruzados e olhando pro lado, na parte esquerda da foto, e ao fundo, desfocado, pode-se ver um dos morros de São Paulo. Créditos: Alile Dara – Estadão.

Outro ponto positivo da série foi na seleção de atores, que saiu do lugar-comum e buscou por novos talentos em anúncio pelo Facebook da O2 Filmes. No final, passaram nos teste 18 jovens atores e atrizes vindos das periferias da metrópole. Os dois protagonistas, Luís Navarro e Henrique Santana, são amigos na vida real e cresceram na Zona Leste. Ambos também dividem os papéis principais com Daniel Furlan, o querido Renan de Choque de Cultura e um dos idealizadores do canal TV Quase no YouTube.

Fotografia em primeiro plano de Henrique Santana e Luís Navarro, de braços cruzados, e Daniel Furlan, com as mãos unidas, apoiados sobre uma mesa e olhando para a câmera.

#PraCegoVer: fotografia em primeiro plano de Henrique Santana e Luís Navarro, de braços cruzados, e Daniel Furlan, com as mãos unidas, apoiados sobre uma mesa e olhando para a câmera.

Abaixo, Quico conversa com o Hypeness sobre os detalhes da série e o que podemos esperar no meio da cortina de fumaça que paira sobre nós.

Hypeness – O que é mais desafiador: dirigir uma série de 10 episódios ou legalizar a maconha no Brasil?

Quico Meirelles – Com certeza dirigir uma série de 10 episódios. Legalizar a maconha no Brasil, pelo menos nos próximos quatro anos, está mais no rol das tarefas impossíveis (ou no mínimo extremamente improváveis).

– Como você sabe, estamos entrando num período ainda mais conservador. Te incomoda ou te anima lançar um trabalho com esse viés na era Bolsonaro?

Ser brasileiro e viver na nossa sociedade nesse período me deixa muito apreensivo e assustado, mas do ponto de vista da série acho que pode ser bom sim, polêmica gera barulho, interesse e procura espontânea sobre o assunto, então quero mais é que antes do lançamento esse debate cresça e apareça. Tem até uma frase de um personagem da série que diz que a melhor propaganda é o jornalismo, então seria ótimo contar com mais essa aquecida no tema.

– A descriminalização e, posteriormente, a legalização são demandas de muitos brasileiros, até porque a Marcha da Maconha só cresce no país. Você participa ou chegou a participar ativamente desse movimento?

Para falar a verdade comecei a acompanhar o evento mais de perto só quando começamos a pesquisar o tema para a série, há uns quatro anos, e acabei indo conferir ao vivo no ano passado, quando rodamos algumas imagens para usar num episódio. Multidão, fumaça, paulista lotada, os planos ficaram lindos.

– Você e seu pai sempre debateram sobre a legalização das drogas?

Na verdade não, ninguém nunca foi muito chegado no tema até entrarmos de cabeça na série e conhecermos melhor esse mundo. Acho que um pouco da vontade de fazer um projeto audiovisual também vem disso, de explorar e aprender um monte sobre um assunto que você não sabia nada.

– Como essa conversa evoluiu ao longo do tempo a ponto de virar fonte de inspiração para um trabalho em conjunto?

A ideia da série veio na verdade num encontro com alguns amigos da faculdade de cinema, o meu pai entrou no projeto quando já tínhamos uma bíblia e um piloto desenvolvidos e a HBO se interessou.

Fotografia em primeiro plano e perfil de Quico Meirelles usando fones de ouvido e observando o monitor de uma câmera de filmagem, em um ambiente externo com algumas pessoas ao fundo.

#PraCegoVer: fotografia em primeiro plano e perfil de Quico Meirelles usando fones de ouvido e observando o monitor de uma câmera de filmagem, em um ambiente externo com algumas pessoas ao fundo.

– Qual a sua expectativa em relação a como o público irá reagir com os rumos da série? Acha que o país está preparado para digerir o tema?

A série é provocativa, assume um posicionamento a favor da legalização e discute bastante o tema e possíveis desdobramentos sociais e econômicos caso a maconha fosse legalizada, mas no fim das contas ela é essencialmente uma história bem contada sobre um sujeito e seus problemas, então acho que mesmo quem detesta a substância ou é radicalmente contra a legalização pode gostar do resultado. Os roteiros são inteligentes, a trama flui muito bem e os atores são carismáticos e isso que importa em última instância.

– Dá pra falar sério através do humor? Na sua visão, qual seria a linha tênue que separa o lado cômico do reflexivo? Tem sido complicado fazer isso na era da internet, onde tudo é problematizado ou vira polêmica? Apesar de algumas ressalvas…

O tipo de filme que eu mais gosto (de assistir e de fazer) é justamente o que te toca e faz refletir, mas que ao mesmo tempo tem uma leveza como contrapeso, acho inclusive que quando você consegue usar o humor direito, o que é dramático fica até mais potente. Esses dias assisti o ótimo ‘Manchester a beira mar’, que é um filme emocionalmente forte, com histórias muito tristes e os caras enchem a ação de momentos engraçados, personagens irônicos e cenas que tornam os personagens ainda mais humanos e, assim, seus dramas mais potentes. Mas com certeza a linha é tênue e fazer isso bem feito é extremamente complicado, mas não por isso menos interessante.

– Trazer atores iniciantes e vindos da periferia para os papéis principais te ajudou a se aproximar de tal realidade e a complementar a série? Qual a importância disso no seu projeto?

Trazer atores vindos da periferia (a grande maioria não era iniciante, só não tinham muita experiência com televisão) sem dúvida ajudou a dar verdade para a construção do mundo que estamos retratando. A história se passa num bairro de classe média baixa da zona leste de São Paulo e lida com uma realidade que, por mais fundo que nós (como equipe) tenhamos estudado e tentado compreender, possui códigos sociais, visuais e de linguagem que só quem cresceu ali conhece direito, e sabe fazer com maestria. A contribuição e verossimilhança que esses atores trouxeram vai desde gírias e da prosódia até questões mais fundas como a maneira de agir de determinados personagens ou suas psicologias. Assim, tentamos criar para o espectador um retrato mais genuíno e interessante daquele mundo gerando empatia tanto para quem conhece muito o universo quanto para quem o vê pela primeira vez. Ou assim eu espero…(risos)

Fotografia em primeiro plano de Luís Navarro (direita), vestindo uma camiseta cinza escuro, com o braço apoiado sobre a cabeça careca de Henrique Santana, vestindo uma camisa branca estampada, com os braços cruzados; ao fundo pode-se que estão na rua.

#PraCegoVer: fotografia em primeiro plano de Luís Navarro (direita), vestindo uma camiseta cinza escuro, com o braço apoiado sobre a cabeça careca de Henrique Santana, vestindo uma camisa branca estampada, com os braços cruzados; ao fundo pode-se que estão na rua.

– O Biriba também trará questões raciais para a narrativa. A ideia de vocês é mostrar os desafios de um jovem negro e periférico querendo empreender numa cidade dominada pela elite branca?

Uma das intenções principais da série é sim trazer para o centro da ação a história não só do Biriba, que vai tentar entrar de cabeça num mundo predominantemente branco, mas também da sua família, mãe, irmã e sobrinhas, todos também negros. A questão racial sem dúvida foi muito cara para nós desde que os roteiros começaram a parar de pé, mesmo porque no Brasil ela tem muita a ver com a legalização da maconha. A quantidade de jovens negros e pobres que foram presos por conta de um baseado no bolso é assustadora.

Desde a mudança da lei de drogas de 2006, a polícia que passou a ser quem julga se a pessoa é usuário ou traficante, e com isso o número de presos por tráfico de drogas aumentou e é uma questão importante e urgente hoje. Ainda mais depois que entramos em produção e encontramos o nosso protagonista, o Luiz Navarro, com quem conversamos muito a respeito. Em muitas cenas, depois desse processo com o Luiz, fomos colocando pequenos comentários ou ações do personagem para torná-lo um cara não só vítima desse preconceito brutal que vemos no Brasil, mas também um sujeito forte e politizado.

– Falando nisso, mostrar que a maconha é fonte de um negócio sério, próspero e lucrativo (como já vem acontecendo) pode realmente mudar a visão dos empresários mais conservadores no Brasil? Você apostaria suas fichas nisso? Porque, no fundo, a demanda maior vai ter que partir deles pra legalização acontecer…

Nos Estados Unidos os atrativos financeiros (do ponto de vista do estado, formalizar e começar a cobrar impostos sobre um mercado gigante que antes era informal) sem dúvida estão ajudando o processo de legalização em muitos estados. Temos um personagem na série que tem exatamente esse raciocínio da lucratividade, é um cara que a princípio não tem nada a favor da maconha, mas que começa a olhar para ela através da perspectiva financeira e se impressiona com o potencial de retorno que o negócio pode gerar.

Eu ia adorar que uma turma sem grandes questões ideológicas em relação à planta descobrisse que existe aí um potencial enorme de ganhar dinheiro e começasse a fazer pressão pró-legalização, mas acho que no Brasil infelizmente não temos uma cultura financeira tão presente e dominante como nos EUA, então sinto que muitos dos potenciais empresários e investidores desse ramo teriam um preconceito tão profundo e arraigado que nem parariam para olhar para o possível lucro.

– A série vai ter também um personagem que resolveu não sair do tráfico. Seria pra confrontar a visão do que temos atualmente, com as mazelas da proibição, com o que poderíamos ter futuramente, caso legalizem de vez?

Esse personagem é o Salim, amigo de infância do Biriba. Desde o começo do desenvolvimento do roteiro queríamos ter algum personagem central na trama que ainda estivesse dentro do tráfico após a legalização, pois a nossa sensação era de que os caras sentiriam um baque financeiro então seria muito interessante vermos de dentro o que poderia se desenrolar a partir daí.

Aumentaria a pressão pela venda de outras drogas? Ainda haveria um mercado paralelo para a venda de maconha paraguaia barata e de baixa qualidade? Aumentaria ou diminuiria a violência dentro da organização? São todas as perguntas que nos fizemos e com as quais tentamos jogar na história.

– O cinema pode influenciar a nossa realidade? Nesse sentido, o que a sétima arte representa pra você?

Acho que a visão de que o cinema pode transformar completamente a sociedade é um pouco utópica e talvez ultrapassada, mas o que eu de fato acredito é que o audiovisual (o cinema, televisão etc) tem o potencial de tocar os indivíduos. O que me motiva a fazer cinema é a possibilidade de contar histórias de maneiras diferentes e dando novas perspectivas para o espectador, revelar uma realidade ou jeito de viver que, mesmo diferente, toque e o faça refletir sobre sua própria vida.

Tem aquela frase clássica: ‘fale sobre a sua aldeia e você falará sobre o mundo’, acho que tem muito a ver com isso, contar histórias particulares e específicas com personagens diversos e interessantes, mas que em última medida falem sobre ser humano e sobre sentimentos que todos compartilhamos.

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Pico da Neblina: série trata de temas atuais em um Brasil com a maconha legalizada

#PraCegoVer: fotografia (de capa) em primeiro plano de Quico Meirelles (parte esquerda da foto) vestindo uma camiseta vermelha e um fundo desfocado. Créditos da foto: Fábio Braga – O2.

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