O perigo representado pela desinformação propagada por um médico antimaconha

Fotomontagem que traz a foto em preto e branco de uma mulher, de lado e com a boca aberta, vomitando folhas de cannabis na cor verde. Imagem: Corbis | The Cut.

Enquanto cientistas pelo mundo pedem pela legalização das drogas em prol da justiça racial e o direito à vida, aqui seguimos com médicos fanáticos antidrogas que ainda divulgam o mito de que maconha é “porta de entrada”

O pediatra João Paulo Becker Lotufo, médico assistente do Hospital Universitário da USP (Universidade de São Paulo), compartilhou em seu programa na Rádio USP a história de uma paciente do Centro de Orientação e Dissuasão do uso de Álcool e Drogas (Codad) cujo filho sofre de transtorno comportamental relacionado ao uso de crack.

Segundo Lotufo, a estória lhe foi narrada por uma senhora usuária do ambulatório antitabágico do Codad que deixou um recado para outras mães: “As mães têm que prestar muita atenção, eu vejo mães falarem que hoje em dia a maconha é uma droga normal, não é verdade, não deixe eles começarem por que a maconha é a porta para as outras drogas”.

Um dos responsáveis pela pesquisa e elaboração do texto do livreto anticannabis do Conselho Federal de Medicina (CFM) e negacionista das propriedades medicinais da planta, Lotufo fez questão de repetir e enfatizar no programa que “a maconha é a porta para as outras drogas”. Um desserviço para a legalização da maconha medicinal e evolução das políticas de drogas, a postura do médico vai na contramão da ciência, como veremos a seguir.

Maconha: a porta de saída

O consumo da maconha está associado com melhores resultados em indivíduos no período de tratamento, ajudando-os a desistirem de substâncias altamente viciantes como a heroína.

Pesquisadores da Universidade de Columbia relataram que os pacientes que usaram maconha durante a fase de tratamento ambulatorial foram capazes de dormir bem, apresentarem menos ansiedade e tinham maior probabilidade de completar o tratamento em comparação com os outros indivíduos, em um estudo publicado na revista Drug and Alcohol Dependence.

Segundo os autores do estudo, “uma das conclusões interessantes observadas no estudo foi o efeito benéfico de fumar maconha no período de tratamento”.

Leia mais: Fumar maconha ajuda no tratamento de dependentes de heroína, diz estudo

Tratamento do vício em crack

Estudos realizados pelo Centro de Uso de Substâncias em Vancouver, no Canadá, mostraram que o uso de maconha permite que as pessoas consumam menos crack. O grupo de pesquisadores, das universidades canadenses de British Columbia, Montreal e Simon Fraser, estudou entre 2012 e 2015 a rotina de 122 dependentes de crack que haviam relatado estar usando maconha e crack.

Os resultados apontaram que a cannabis auxilia na redução do consumo de crack. O número de usuários que relataram uso diário de crack caiu de 35% para pouco menos de 20% após o consumo das duas substâncias.

A pesquisa canadense se alinha com um estudo realizado no Brasil, que acompanhou 25 pessoas que buscavam tratamento contra o uso problemático de drogas e relataram usar maconha para reduzir a vontade por outras drogas mais pesadas como a cocaína e o crack. Em um período de nove meses de estudo, realizado por Dartiu Xavier e outros pesquisadores, 68% dos participantes tinham parado de consumir o crack.

Leia mais: O potencial do uso de CBD no combate ao vício em crack e cocaína

Redução de drogas prescritas

Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade do Novo México (UNM), nos EUA, durou 5 anos e envolveu 125 participantes, todos com dores crônicas. Dos participantes, 83 utilizaram a cannabis com as drogas prescritas e 42 escolheram não usar.

O estudo revelou que 34% dos que se medicavam também com a maconha deixaram de usar os seus remédios para dor. Já entre os que não consumiram a planta, somente 2% abandonaram as drogas, em outras palavras: 98% continuaram a usar medicamentos prescritos.

Estudo canadense encontra ligação entre o uso de cannabis medicinal e parar de beber

Em maio de 2018, outro estudo, realizado com pacientes adultos inscritos no Medicaid — um programa de saúde social dos Estados Unidos para famílias de baixa renda —, descobriu que, entre 2011 e 2016, os estados onde a maconha medicinal legal estava disponível para uso no alívio da dor tiveram uma taxa de prescrição de opiáceos 6% menor, em comparação aos demais estados.

Além disso, os estados que legalizaram a maconha para fins adultos tiveram uma taxa de prescrição de medicamentos cerca de 6% mais baixa do que aqueles com maconha medicinal, ou seja, a maconha para uso adulto dá às pessoas um acesso ainda melhor à erva como um analgésico.

Ainda sobre cannabis e drogas prescritas, um terceiro estudo mostra como a maconha pode combater a crise de opioides em pacientes acima dos 65 anos. A pesquisa feita com pacientes do Medicare — o sistema de seguros de saúde gerido pelo governo dos EUA destinado aos idosos — analisou os dados entre 2011 e 2015 e detectou uma queda de 14% nas doses de medicamentos prescritos por dia nos 14 estados com dispensários de maconha medicinal (e mais nove que legalizaram ao longo do estudo).

A pesquisa também comparou estados com dispensários àqueles que só permitem o cultivo caseiro. Os estados sem dispensários tiveram uma queda de 7% nas doses diárias de opiáceos em comparação com os estados sem legislação sobre a maconha medicinal.

Leia mais: Prescrições de opioides diminuem após legalização da maconha no Canadá

Eficácia contra o alcoolismo

A New Frontier Data realizou uma pesquisa com 3.000 adultos consumidores de maconha, nos EUA, que foram questionados sobre o porquê de utilizarem, como conseguem, como consomem e suas perspectivas sobre a sociedade e a vida.

Entre os consumidores de álcool e maconha, dois terços (65%) dizem que dada uma escolha, preferem a erva em vez da bebida, enquanto 28% seguem consumindo ambas as substâncias.

Dos entrevistados, 74% acreditam que a maconha é mais segura que o álcool e 73% dos pacientes medicinais a utilizam como um substituto aos fármacos, sendo que 94% reportou melhoras em suas condições.

Leia mais: Maconha medicinal reduz uso de álcool e drogas, aponta relatório

O perigo da histeria de um médico anticannabis

A atitude do médico João Paulo Lotufo contribui para o atraso do país no que tange ao avanço de uma legislação que permita o acesso seguro à maconha pra uso terapêutico e adulto, que já é uma realidade em lugares como Canadá, Uruguai e vários estados nos EUA.

Em 2019, durante o 9º Congresso Brasileiro de Direito Médico, realizado em Brasília pelo CFM, o médico disse que “não existe maconha medicinal, o que existe para tratamento é o canabidiol”. A fala do pediatra é uma mentira descarada, uma vez que diversos estudos já demonstraram as propriedades medicinais de outros compostos da maconha, como o THC (tetraidrocanabinol).

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A difusão de desinformação sobre a maconha, vista nas palestras e cartilhas do médico, tem reflexos funestos na sociedade, como a falida política de “guerra às drogas” que superlota o sistema carcerário, fazendo centenas de milhares viverem em condições sub-humanas, além de promover o genocídio da população negra e pobre.

Enquanto cientistas pelo mundo pedem pela legalização das drogas em prol da justiça racial e o direito à vida, aqui seguimos com médicos fanáticos antidrogas que ainda divulgam o mito de que maconha é “porta de entrada” para o consumo de outras drogas, ao pior estilo “reefer madness”.

Leia também:

Coalização internacional de especialistas pede o fim da guerra às drogas

#PraCegoVer: fotomontagem que traz a foto em preto e branco de uma mulher, de lado e com a boca aberta, vomitando folhas de maconha na cor verde. Imagem: Corbis | The Cut.

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