O que pensam pacientes, mães, associações, empresários e advogados sobre a decisão da Anvisa?

Fotografia em plano fechado e vista inferior da folha de uma planta de maconha contra a luz, que assume um tom claro e reluzente, acompanhada de outros ramos, e um fundo desfocado, onde pode-se ver a fonte de luz à mostra. Imagem: Luiz Michelini. Epilepsia Anvisa deputados Unicamp

A resolução aprovada – assim como a arquivada – não gerou repercussão unânime entre quem acompanha de perto o assunto, pelo contrário. Sendo assim, perguntamos a pacientes, mães e associações de cannabis medicinal, para advogados e para empresários do setor o que a decisão da Anvisa sobre o tema representa

Na terça (3), a Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária aprovou, por unanimidade, o texto que regulamenta a fabricação e registro de produtos à base de cannabis no Brasil, ao mesmo tempo que arquivou a proposta que tratava do cultivo em solo nacional para este fim, por três votos a um.

O marco regulatório, que passa a vigorar 90 dias depois da publicação no Diário Oficial da União, e com revisão após 3 anos, dispõe sobre a fabricação e a importação de produtos derivados da maconha (que, pela resolução, não podem ser chamados de medicamentos), bem como estabelece requisitos para comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização destes.

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Entre pontos polêmicos, como a restrição do nível de THC permitido para produtos disponíveis nas prateleiras das farmácias para 0,2%, e o veto à manipulação no Brasil, sendo permitida apenas a importação da matéria-prima semielaborada para a fabricação dos produtos (para administração oral e nasal, em comprimidos, líquidos, além de óleos), a resolução aprovada – assim como a arquivada – não gerou repercussão unânime entre quem acompanha de perto o assunto, pelo contrário. Sendo assim, perguntamos a pacientes, mães e associações de cannabis medicinal, a advogados e empresários do setor o que a decisão da Anvisa sobre o tema representa. Confira.

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“Não vou comemorar”

Na visão de Emílio Figueiredo, advogado e membro da Reforma – Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, engajada em 26 dos 51 Habeas Corpus concedidos para cultivo pessoal de cannabis para uso terapêutico no Brasil, a regulamentação da Anvisa está em desconexão com a realidade social do país.

“Agora a ANVISA faz uma regulação priorizando os interesses empresariais, que vem atuando cotidianamente com seu lobby. A questão é que nada é mais forte que o fato social, e o fato é que pessoas plantam em casa e preparam o próprio remédio, inclusive com aval judicial. E também se organizam em redes como associações e grupos de trocas de informações, sendo que as associações, além de prestar o acolhimento, também auxiliam o cultivo e até mesmo fornecem o óleo para seus associados”, ele afirma, em nota publicada.

O advogado Erik Torquato, também membro da Rede Reforma, lista os pontos pelos quais não vê a decisão da Anvisa como algo a ser celebrado:

“Não vou comemorar vitória do lobby das grandes farmacêuticas estrangeiras, que pouco estão preocupadas com a saúde do brasileiro. Não vou comemorar as restrições impostas para o uso de insumos nacionais, tornando-nos ainda mais reféns de importados. Não vou comemorar a limitação de os médicos prescreverem tratamento com cannabis como última alternativa e não como primeira. Não vou comemorar a demonização do THC, que só poderá ser indicado para pacientes terminais. Não vou comemorar as restrições para manipular o composto de cannabis, dificultando o tratamento caso a caso. Não vou comemorar esta decisão que dificulta ainda mais o cultivo associativo, já existente no país. Não comemoro decisão que não traga a liberdade de cultivar os próprios direitos. Não comemoro retrocessos travestidos de vitória. A luta por uma política de drogas justa e democrática continua!”

“É mais um passo, mas muito pequeno”

Símbolos da luta pelo acesso à maconha para fins terapêuticos, as mães que, através do constante trabalho realizado nas associações de pacientes de cannabis medicinal, dão voz ao movimento pelo cultivo associativo, questionam a democratização do acesso nos moldes da nova regulamentação.

“A única coisa que mudou nesta regulamentação é que o importado estará na prateleira da farmácia. No mais, essa regulamentação continua favorecendo apenas a indústria farmacêutica, os importados e quem tem dinheiro para pagar. As associações e cooperativas foram excluídas, a prescrição continua como última opção, o THC continua com grande restrição e não teremos direito de escolha para buscar a melhor resposta terapêutica, muito menos acesso com igualdade. Se no SUS já faltam medicamentos básicos, imagine a cannabis. Favorece apenas os interesses econômicos dos gringos. Sem dúvida, é mais um passo, mas muito pequeno diante de tanta necessidade e sofrimento”, declara Cidinha Carvalho, mãe de Clárian e presidente da Associação de Cannabis e Saúde, a Cultive, de São Paulo.

Para Margarete Brito, primeira mãe brasileira a obter autorização judicial para realizar o cultivo caseiro de cannabis com fins terapêuticos e diretora da Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal, a Apepi, no Rio (RJ), a decisão “a médio prazo, talvez diminua apenas a burocracia, mas [o valor] deve continuar tão caro quanto os medicamentos importados que circulam hoje no mercado. Ou seja, paciente de baixa renda continua com problemas de acesso”.

“É uma faca de dois gumes”

A negligência da Anvisa sobre o papel das associações na regulação dos produtos de cannabis é um ponto que encontra convergência entre quase todas as opiniões declaradas.

“Essa decisão da Anvisa não passa pelas associações, é uma decisão injusta, que não está levando em conta as pessoas que abriram este caminho, os detentores dos HCs que já existem e as associações que começaram a levantar esse debate, que trabalharam na desobediência civil, que foram buscar médicos para receitar, advogados para defender, então tem toda uma cadeia antes da regulamentação que precisa ser levada em consideração”, afirma Pedro Sabaciauskis, presidente da associação de pacientes Santa Cannabis, de Florianópolis.

Cassiano Teixeira, diretor-presidente da Abrace Esperança, primeira e única associação a obter autorização judicial para o cultivo no país, destaca que o arquivamento da resolução sobre o plantio foi positivo para as associações que buscam esse aval na Justiça.

“Não foi o que a gente esperava, eu fiquei surpreso, inclusive, com o voto da Alessandra [Bastos] . Não é o que o Brasil precisa, uma regulamentação desse tipo. Não vai melhorar o acesso, não vai baratear o custo. Eu acho que foi infeliz, porque a resolução não mencionou as associações. Por outro lado, a Anvisa não regulamentou o cultivo, dando esperança às associações que estão entrando com ações pedindo o cultivo. A gente poderia ser prejudicado se saísse o cultivo agora. Então, é uma faca de dois gumes. Eu estou feliz, porque a gente vai resolver esse problema no Congresso e de uma vez por todas, porque o Congresso está ouvindo a gente. Querendo ou não, jogar para o Congresso é bom”, afirma Teixeira.

“O pobre vai continuar sem ter o remédio”

Gilberto Castro, ativista e usuário de maconha para fins terapêuticos, detentor do 24º Habeas Corpus de cultivo caseiro no Brasil, acompanha a história há anos, e aponta o caráter excludente da regulamentação da Anvisa, tanto no que diz respeito à escolha dos pacientes, quanto sobre o acesso ao produto.

“A decisão, no fim das contas, mostra uma forma excludente para o povo, no sentido de escolher de que forma ele prefere a medicação, se in natura ou não. Por exemplo, para as dores, eu costumo fumar, porque o efeito é mais rápido, e eles excluíram essa forma de administração. E eles abrem margem para o monopólio, que vai ser excludente, o pobre vai continuar sem ter o remédio. Imagina, o preço hoje do remédio que seria para mim, o Mevatyl, da última vez que vi era R$ 2800 cada caixa, e eu precisaria usar uma por semana”, conta.

Filipe Suzin, paciente e ativista à frente do perfil Curando Ivo, se diz preocupado com a decisão que, segundo ele, não beneficia pacientes da forma como eles esperam e precisam. Em post na rede social, ele declara:

“Essa decisão somente poderá trazer benefícios a uma pequena parcela da sociedade como já acontece, e para somente algumas patologias, dificultando de tal forma nós que precisamos muito mais do que simplesmente CBD! Tornar o acesso a esse medicamento tão burocrático e de forma tão inacessível a população que não muda em nada nossa realidade, permitir somente que o acesso venha de fora, negar que o cultivo desse medicamento seja feito em nossas terras é CRIMINOSO! MILHÕES DE PESSOAS PRECISANDO DESSE MEDICAMENTO, E A RESPOSTA QUE TEMOS É DIFICULDADE E LIMITAÇÕES?!”

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“A Anvisa foi muito feliz”

Para Marcelo Galvão, CEO da OnixCann/Cantera, a Anvisa foi acertada nas decisões que tomou, tanto no cultivo como no registro de produtos à base de cannabis. “A proposta de cultivo era horrível, e não tem porque não ser aprovado para qualquer um que entrar no Judiciário pedindo cultivo, então ninguém perdeu nada, esse é um aspecto. Quanto ao registro, surpreendeu muito positivamente. A Anvisa foi muito feliz, muito humana, fez o que era melhor para todos os pacientes”, ele afirma. “Não vai ter problema de gargalo na distribuição, porque é farmácia, genial. A distinção dos dois tipos de prescrição, genial. As restrições que foram colocadas, genial. E o fato de ter BPF, sigla no Brasil para Boas Práticas Farmacêuticas, vai garantir que o brasileiro não compre gato por lebre. A Anvisa garantiu ao brasileiro um produto de qualidade com essas regras que colocou”.

Viviane Sedola, CEO da Dr. Cannabis, afirma que a regulação aprovada pela Anvisa é positiva, mas ainda precisa amadurecer:

“Demos um primeiro passo importante em termos de regulação. É um sinal que vamos partir para uma regulação mais robusta, mas ela ainda precisa amadurecer.  Agora é preciso aguardar a publicação da RDC (Resolução da Diretoria Colegiada) da Anvisa no Diário Oficial da União para  ter mais detalhes dessa normatização.  Essa decisão é muito positiva para a Dr. Cannabis, na medida em que permite que exista produto no País. Trabalhamos e lutamos muito para que isso acontecesse.”

Em nota oficial, a HempMeds, primeira empresa a ter autorização para importar medicamentos à base de cannabis no Brasil, também se posicionou favorável à decisão da Agência:

“A mudança irá permitir que pacientes tenham acesso quase que imediato ao produto – hoje, o processo leva três meses. Os cerca de 4 milhões de pacientes que podem ser beneficiados com a Cannabis medicinal poderão sair do consultório médico e se dirigir diretamente para uma farmácia. A HempMeds Brasil destaca que, em um primeiro momento, a decisão da Anvisa não irá impactar imediatamente a comercialização dos produtos. Os processos de importação adotados pela empresa continuam os mesmos. Paralelamente a isso, a organização irá trabalhar para cumprir todos os protocolos que a agência reguladora passará a exigir”.

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#PraCegoVer: Fotografia em plano fechado e vista inferior da folha de uma planta de cannabis contra a luz, que assume um tom claro e reluzente, acompanhada de outros ramos, e um fundo desfocado, onde pode-se ver a fonte de luz à mostra. Foto: Luiz Michelini.

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Sobre Thaís Ritli

Thaís Ritli é jornalista especializada em cannabis e editora-chefe na Smoke Buddies, onde também escreve perfis, crônicas e outras brisas.
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