A história de pacientes catarinenses que dependem de remédios à base de maconha

Fotografia em primeiro plano de Regiane, que segura um frasco de medicamento à base de cannabis, enquanto olha para a filha, Júlia, à sua esquerda, ambas sorridentes. Pacientes.

Mães de pacientes catarinenses falam sobre a melhoria na qualidade de vida que observaram em seus filhos, após iniciarem o tratamento à base de cannabis, e divergem sobre a decisão da Anvisa. As informações são do NSC Total

Quando Júlia chegou a ter 132 crises convulsivas em um só dia, a mãe Regiane Capraro decidiu que era hora de tentar algo novo. A esperança se depositou, então, em um tratamento controverso, mas que logo nos primeiros meses passou a dar resultado: os medicamentos à base de cannabis, a planta da maconha. Júlia, hoje com 19 anos, mora em Penha, no Litoral Norte de Santa Catarina, e sofre de paralisia cerebral desde o nascimento. Por conta disso, não fala, não tem o movimento das pernas e braços e tem espasmos involuntários. Essas crises prolongadas ou repetidas, chamadas de estado de mal, podem levar ao coma e à morte.

Depois de ouvir em grupos de mães de crianças com epilepsia comentários sobre os benefícios de remédios à base de cannabis, Regiane provocou a médica da filha e decidiu testar o medicamento. O desejo era dar mais qualidade de vida à garota. Até então, ela tomava oito remédios para inibir os espasmos.

Regiane acionou um advogado e fez o pedido à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para poder importar e receber o purodiol, uma das variações de medicamentos à base de cannabis. O pedido à Anvisa foi respondido em 45 dias. A autorização judicial para que o Estado fizesse o pagamento pelo medicamento foi bem mais demorada. Essa, segundo ela, é uma dificuldade encontrada ao longo do processo. Regiane conseguiu o remédio para a filha em 2017.

A partir de então, passou a acompanhar os benefícios que o produto à base de cannabis trouxe para Julinha, como a mãe carinhosamente chama a filha. Dos oito remédios diários que a jovem tomava, apenas um precisou ser mantido junto ao puridiol. E a menina tem muito mais energia. Sobra até mesmo para aulas de música, em que ela toca uma bateria adaptada.

Hoje minha filha não fica dopada. Ela está mais ligada ao que está acontecendo e não sofre mais com as crises — comemora.

Regiane afirma que ainda é necessário superar o preconceito de algumas pessoas, mas gosta de deixar claro que o uso dos medicamentos se trata de uma questão de saúde.

Decisão da Anvisa libera venda em farmácias

Casos como o de Júlia receberam uma boa notícia nos últimos dias. A Anvisa autorizou a importação e produção de produtos à base de cannabis no Brasil e a venda desses artigos em farmácias. A decisão atendeu a uma consulta pública, que buscava atender a um anseio de famílias de pacientes com doenças para as quais os medicamentos com produtos oriundos da planta da maconha podem causar melhora.

A Anvisa informou que a venda em farmácias vai ocorrer a partir do momento em que os medicamentos estiverem registrados no mercado nacional, o que passou a ser permitido com a liberação da agência. Quem tiver prescrição médica poderá adquirir nas farmácias. Para produtos importados, não registrados no país e importações individuais, os pacientes ainda vão precisar passar pelo rito que envolve autorização da Anvisa.

Entre os problemas de saúde para os quais os produtos à base de cannabis podem ser indicados estão doenças neurodegenerativas, como Parkinson, câncer, ansiedade, distúrbio do sono, depressão, doenças do estômago e intestino e dores crônicas.

De acordo com a Gerência de Produtos Controlados da Anvisa, até julho de 2019, 6.457 pacientes receberam a aprovação para importar remédios como o canabidiol. Dessas autorizações, a principal doença é a epilepsia, com 2.480 permissões, seguida de autismo (811), dor crônica (353) e doença de Parkinson (344). Transtornos depressivos e de ansiedade também estão na lista.

“Quando o canabidiol entrou na nossa vida, tudo mudou”, diz mãe

Miriam Mafra, moradora de Palhoça, na Grande Florianópolis, também diz não ter dúvidas sobre os benefícios que os remédios à base de cannabis podem causar. Há pouco mais de dois anos, o filho dela, Luiz Gustavo, hoje com oito anos, começou a apresentar alguns movimentos involuntários, encarados como cacoetes.

A partir da primeira crise, em julho de 2017, os espasmos, ou tiques, se tornaram constantes na vida do pequeno. Era a Síndrome de Tourette, um distúrbio neuropsiquiátrico que causa movimentos repetitivos e afeta 1% da população, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Miriam e o filho Luiz Gustavo, o Guga, que desde março faz tratamento com medicação à base de cannabis contra espasmos

#PraCegoVer: fotografia de Miriam, com os olhos fechados, enquanto abraça seu filho, Guga, que mostra um sorriso fechado e olha para a câmera; no primeiro plano, desfocado, vê-se um frasco de medicamento. Foto: Diorgenes Pandini | Diário Catarinense.

Luiz Gustavo, o Guga, batizado em homenagem ao tenista manezinho, fez tratamento com altas doses de antipsicóticos, mas o problema nunca deixou de o acompanhar, afetando a qualidade de vida. Foi somente em março deste ano, quando o menino começou o tratamento com canabidiol, medicamento derivado da planta da maconha, que os movimentos sumiram.

Quando o canabidiol entrou na nossa vida, tudo mudou por completo. Ele nunca mais teve crises, que eram tão comuns, ocorriam pelo menos uma vez por mês. A medicação anterior o deixava grogue, e com o canabidiol ele tem uma vida muito mais ativa, agitada. Retirou todos os sintomas. Se você olha para ele hoje, é uma criança normal — conta a mãe, que trabalha como motorista de aplicativo.

Por todos os benefícios que o canabidiol trouxe à vida do filho e, consequentemente, dela, a liberação da venda em farmácias do medicamento à base da cannabis foi algo comemorado por Miriam na última semana.

— Fiquei megafeliz. Só o fato de ter na farmácia já facilita o acesso e também desmistifica o tratamento — conta Miriam.

O que pensam pacientes, mães, associações, empresários e advogados sobre a decisão da Anvisa?

A mãe explica que o preconceito contra o tratamento por causa da substância da qual é feito o medicamento ainda é algo perceptível no círculo de amigos. A luta para desfazer essa imagem negativa do remédio é algo que a motiva a divulgar para todos os benefícios que o remédio feito com cannabis levou à família. Isso porque, além do filho, a mãe de Miriam, de 72 anos, também passou a utilizar o canabidiol para tratar as dores da fibromialgia.

Tenho certeza de que essa liberação vai facilitar o acesso, baratear também o medicamento e desmistificar, tirar o preconceito que ainda existe — conta a mãe.

Medicação solucionou crises de Kauê

Kauê, hoje com 18 anos, nasceu pré-maturo e com uma lesão cerebral que provocou epilepsia. Por oito anos, a mãe Andrea Luciane Funke, 44 anos, morou na frente de um hospital para conseguir atendimento rápido quando Kauê sofria as crises, que costumam ser graves e sempre exigirem cuidado médico. O menino é cadeirante, se alimenta por sonda e chegou a ficar 280 dias de um ano internado.

A mãe Andrea e o filho Kauê: remédio à base de cannabis auxilia em crises da epilepsia

#PraCegoVer: fotografia que mostra Andrea em pé, ao lado do filho, Kauê, na cadeira de rodas, enquanto segura sua mão com uma flor verde, ambos sorridentes; ao fundo, pode-se ver outras pessoas e vegetação. Foto: arquivo pessoal.

O excesso de remédios que ele tomava para controlar as crises da epilepsia chegou a provocar por duas vezes um início de cirrose hepática. O jeito, nesses casos, era diminuir a medicação, o que agravava as crises. Esse ciclo começou a se interromper há cinco anos, quando Andrea descobriu na internet os benefícios que os medicamentos à base de cannabis passavam a trazer a pacientes com esse quadro.

Conseguir o remédio no começo foi difícil, e os benefícios para Kauê foram visíveis. Tanto o canabidiol (CBD) quando o tetraidrocanabinol (THC) são importantes porque ajudam na parte neurológica das crises convulsivas e também nas dores do quadril e de escoliose que o garoto sofre. Andrea considera que a liberação da Anvisa da última semana foi um primeiro passo, mas que não vai resolver o problema para todos.

Vai beneficiar quem tem condições de comprar. A gente tem que olhar mais profundamente para a vida e para os outros. A produção nacional poderia baratear e fazer a diferença na vida de outros pacientes.

Sinalização de debate maior sobre o tema

A advogada Sueli Veríssimo Vieira, sócia da área Regulatória do escritório L. O. Baptista Advogados e que integra um grupo de trabalho de cannabis medicinal da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), afirma que se buscava a aprovação conjunta — da consulta pública sobre venda em farmácias, acolhida na semana retrasada, e da referente ao cultivo, que acabou sendo vetada.

No entanto, mesmo assim a liberação do registro de medicamento e do monitoramento já é encarada como sinal positivo pela profissional.

A sinalização é de que houve, sim, uma evolução. Acho que as pessoas vão poder falar mais abertamente sobre a utilização de cannabis para fins medicinais e pesquisa científica.

A resolução definida no último dia 3 já foi publicada pela Anvisa e a previsão é de que entre em vigor, com possibilidade de registro e venda dos produtos à base de cannabis, daqui a 90 dias.

Entidades do setor como a Santa Cannabis, de Florianópolis, que auxilia cerca de 150 pacientes que fazem tratamento com medicação à base de cannabis, apontam que a decisão da última semana da Anvisa não vai resolver o problema de acesso. Para isso, a entidade defende a permissão de cultivo para permitir que a produção dos medicamentos ocorra dentro do país. Um médico ligado à associação chegou a definir como “irrisório” o impacto que a decisão terá sobre os pacientes.

Desde 2015, existe a possibilidade de importar o medicamento, mas isso exige autorização, demora e tem um alto custo. Agora, a expectativa é de que o acesso fique facilitado.

— A gente sabe dos benefícios que os produtos à base de cannabis são capazes de resultar. O que a Anvisa alega é que falta estudo. Ao permitir o ingresso, não da planta, mas de produtos semielaborados, o que a Anvisa sinaliza é a permissão para poder fazer pesquisas. E pesquisas são importantes para a gente entender como a cannabis vai reagir no corpo — pontua Sueli.

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#PraCegoVer: fotografia (de capa) em primeiro plano de Regiane, que segura um frasco de medicamento à base de cannabis, enquanto olha para a filha, Júlia, à sua esquerda, ambas sorridentes. Foto: Patrick Rodrigues | Jornal de Santa Catarina.

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