Os desafios para a prescrição da cannabis medicinal

Fotografia que mostra uma pessoa vestida de jaleco branco (dos ombros ao quadril), podendo-se ver as pontas do estetoscópio pendurado no pescoço, mostrando para a câmera uma porção de flores secas de maconha (cannabis) nas mãos.

“É irrefutável assegurar que a cannabis é uma ferramenta terapêutica útil, que tem impacto direto na qualidade de vida de pessoas portadoras de doenças crônicas e incapacitantes”, segundo a neurocirurgiã Patrícia Montagner*, em artigo publicado originalmente no Estadão

Apesar dos resultados promissores, já apresentados em mais de 20 mil artigos publicados do Pubmed, assim como a alta demanda de pacientes brasileiros em busca de tratamento diante das robustas evidências de sucesso, a resistência de alguns setores da sociedade e da classe médica e a desinformação são os grandes obstáculos enfrentados para a incorporação da cannabis medicinal, ainda que os avanços e o potencial terapêutico sejam irrefutáveis e amplamente relatados nas mais variadas especialidades médicas.

Diante deste cenário, e a partir do aval da Anvisa para a importação de produtos à base de cannabis, assim como a pressão social para aprovação do PL 399/2015, que possibilita o cultivo da planta no Brasil, muitos pacientes portadores de doenças neurológicas, psiquiátricas e até com câncer ainda encontram obstáculos para obter uma prescrição médica segura e eficaz da substância, além de terem como entraves o alto custo e a burocracia enfrentados para o acesso.

As evidências científicas são substanciais e validam a prescrição a partir de diversos projetos de pesquisa em torno da atuação da cannabis em doenças como câncer, epilepsia, dor crônica, fibromialgia, doença inflamatória intestinal, transtornos de ansiedade, doença de Parkinson, dentre outras. A Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos EUA realizou uma profunda revisão sobre o estado atual de evidências e recomendações para pesquisas dos efeitos da cannabis e dos derivados canabinoides na saúde humana, baseando-se em trabalhos publicados de 1999–2017. A revisão foi taxativa ao afirmar que os dados apresentados são substanciais para a validação do uso da cannabis no tratamento da dor crônica.

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Os estudos também mostram avanços que tendem a se consolidar para outras patologias, que apresentam respostas impactantes a partir do uso da cannabis, como, por exemplo, aos portadores de transtornos do sono, doença de Alzheimer e autismo, como bem mostrou a pesquisa de cientistas brasileiros publicada no Frontiers Neurology, que expõe os benefícios do óleo de cannabis no tratamento dos sintomas do espectro autista.

No entanto, as dificuldades passam pelo acesso a uma fonte de informações segura, técnica e organizada, aliada à falta de experiência do profissional médico para a prescrição assertiva dos derivados canabinoides. Com poucas opções de profissionais capacitados e a ausência de um manual qualificado de instruções, muitos pacientes iniciam uma maratona em busca de médicos prescritores ou se arriscam à automedicação, muitas vezes sem sucesso.

Apesar do seu histórico de uso medicinal milenar, que data desde 2.700 AEC, a cannabis apresenta, nos últimos 70 anos, uma imagem de controvérsia e estigma, com inúmeras restrições legais ao seu uso. A partir da descoberta do sistema endocanabinoide e seus receptores, o interesse de pesquisadores no estudo da interação desse sistema com os fitocanabinoides e suas possíveis utilidades terapêuticas aumentou exponencialmente. No entanto, mesmo sendo objeto de pesquisa desde meados da década de 1940, as descobertas não integram as disciplinas médicas dentro das universidades e até mesmo nas especializações profissionais. Em um dos países mais avançados no uso medicinal da cannabis, os EUA, apenas 9% das universidades médicas norte-americanas apresentam conteúdos programáticos sobre de sistema endocanabinoide e cannabis medicinal.

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É preciso ampliar o debate dentro da academia, das preceptorias nas residências médicas, democratizar o conhecimento, especialmente sobre o entendimento do sistema endocanabinoide, responsável por regular todos os demais sistemas do corpo humano, com conexões que podem gerar uma série de reações fisiológicas, que se modulam positivamente no tratamento de inúmeras doenças. Este conhecimento é o divisor de águas para diminuir a resistência por parte dos profissionais de saúde em incluir medicamentos à base de cannabis em seu arsenal terapêutico.

Romper com o preconceito em torno da eficácia, já comprovada a partir de pesquisas científicas e inúmeros casos clínicos em todas as partes do mundo, é urgente. São centenas de milhares de histórias que demonstram que a aplicação correta dessa medicação pode ser transformadora, especialmente para casos de maior refratariedade e difícil manejo clínico.

É irrefutável assegurar que a cannabis é uma ferramenta terapêutica útil, que tem impacto direto na qualidade de vida de pessoas portadoras de doenças crônicas e incapacitantes e esta afirmação está respaldada no uso medicinal histórico da planta, nos desdobramentos da descoberta do sistema endocanabinoide e no volume crescente de pesquisas na área. Educação e formação técnica qualificada são necessárias para desmistificar a imagem equivocada associada a essa planta e lapidar o entendimento científico a respeito da utilidade médica da cannabis e do seu impacto na melhora da qualidade de vida dos pacientes.

*Patrícia Montagner é especialista em neurocirurgia pela Sociedade Brasileira de Neurocirurgia e diretora técnica da Clínica NeuroVinci, localizada em Florianópolis (SC). Certificada pelo World Institute of Pain (WIP) para procedimentos minimamente invasivos em dor (fellow of interventional pain practice), é também colaboradora médica da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal, a AMA+ME.

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