Opinião: A “Guerra às Drogas” morreu? Viva a “Guerra às Drogas”!

Fotografia mostra, mensagem escrita no chão da Av. Paulista com tinta de cor vermelha. “Vivas e Livres Legalize”. Foto: Dave Coutinho | Smoke Buddies

Por que se insiste em uma política que não alcança seus objetivos e, ao contrário, piora o problema que diz combater? Leia a análise de Thiago Rodrigues*, publicada originalmente na Carta Capital

Em 1994, a especialista Mathea Falco produziu um relatório chamado “Toward a more Effective Drug Policy” (“Para uma mais efetiva política de drogas”) sobre a situação do mercado ilegal de drogas no EUA. Seu texto baseou-se em relatórios emitidos por órgãos oficiais do governo estadunidense, como o Departamento de Justiça e um comitê especial formado no Congresso Nacional. Cruzando os dados, Falco constou aquilo que muitos estudiosos, profissionais da saúde, militares e policiais já haviam notado: a “guerra contra as drogas” tinha fracassado.

Falco, que foi a primeira subsecretária de Estado para aplicação de leis antinarcóticos (ainda no governo e Jimmy Carter, 1977-1981), alertava que desde a formação dos primeiros tratados internacionais e das correspondentes leis nacionais de controle sobre drogas psicoativas, entre os anos 1910 e 1930, o rigor na repressão aos produtores, vendedores e consumidores dessas drogas só havia aumentado. No entanto, o número dessas pessoas, também. O que era um mercado praticamente sem regulação e com volume de usuários relativamente pequeno em inícios do século XX, tinha se transformado numa potente economia ilegal, de alcance transnacional, penetrando instituições políticas, forças de segurança, o sistema financeiro e os hábitos cotidianos de milhões de pessoas em todo o mundo.

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Por isso, se a meta do proibicionismo era banir determinadas drogas e os costumes a elas relacionados, o método escolhido para alcançar essa meta não se demonstrara eficiente. É importante saber que os documentos comentados por Falco não foram produzidos por hippies, deputados “de esquerda” ou cientistas “pró-drogas”, mas por burocratas, técnicos ministeriais e uma comissão mista do Congresso, formada por Democratas e Republicanos, a partir de anos de levantamentos de dados epidemiológicos, criminalísticos, econômicos e sociológicos que lhes obrigaram a aceitar o que poucos gostariam de admitir: os bilhões de dólares gastos em combater o narcotráfico não se reverteram em menor produção de drogas, em diminuição do comércio ilegal ou do número de consumidores.

Essas constatações foram ainda mais impactantes pelo momento em que foram publicadas: faziam referência ao governo republicano de George H.W. Bush (1989-1992), que havia sido severo na manutenção da política de enfrentamento militarizado ao narcotráfico começado pelo presidente anterior, Ronald Reagan (de quem Bush Pai havia sido vice-presidente). Os governos de Reagan e Bush Pai aprofundaram e deram vida à “guerra às drogas” lançada por Richard Nixon no início dos anos 1970. Isso significou, basicamente, três coisas: 1) apostar na tese do combate às “zonas de produção” de cocaína, maconha e heroína (sempre localizadas em países do Terceiro Mundo); 2) aumentar a pressão diplomática e econômica sobre os países considerados “fontes” de drogas ilegais, chantageando-os para que aderissem aos métodos de destruição de colheitas, deportação de traficantes e abertura de dados sigilosos das inteligências nacionais 3) pressionar para que os militares de países considerados bases para a “produção” de drogas ilícitas se envolvessem nas chamadas operações anti-drogas (“counter-narcotics”) que eram muito parecidas, e por vezes se confundiam, com as já conhecidas operações anti-guerrilhas/anti-comunismo (“counter-insurgency”).

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Os esforços repressivos levaram à prisão, morte ou deportação de grandes e famosos narcotraficantes, como o colombiano Pablo Escobar, o mexicano Miguel Ángel Felix Gallardo e o boliviano Roberto Suárez. Mas, surpresa, o narcotráfico não acabou. Tampouco diminuiu. Começou a acontecer o que os estudiosos chamam de “efeito balão”: assim como uma bexiga cheia, quando uma extremidade é apertada, a outra infla. Com o narcotráfico funciona assim: a repressão cerrada em uma zona ou sobre um determinando grupo ilegal estimula o deslocamento das rotas, a entrada em cena de novos atores e a abertura de novos laboratórios e novas fronteiras agrícolas. E pior: assim como em um cassino ou uma bolsa de valores, quanto maior é o risco, maior é a remuneração e mais poderosos são apostadores. Com isso, o endurecimento da “guerra às drogas” terminou promovendo a eliminação dos peixes menores, favorecendo os tubarões, ou seja, os narcotraficantes com maior poder econômico, maior capacidade de corromper juízes, autoridades policiais, militares e aduaneiras, comprar empresas legais para lavar seus ganhos ilícitos, investir em projetos sociais para conquistar o apoio de populações carentes, além de investir em armas e no treinamento de exércitos paramilitares.

Um passeio pelos relatórios publicados anualmente pelo Escritório das Nações Unidas sobre Crimes e Drogas (UNODC, na sigla em inglês) é sempre desalentador para quem acredita no proibicionismo. Os World Drug Reports mostram panoramas sombrios em mapas e gráficos muito coloridos e bem-feitos: crescente número de hectares de plantas a partir das quais se produz drogas ilícitas, dinamização das rotas mundiais (terrestres, marítimas e aéreas) controladas por grupos narcotraficantes, aumento da conexão entre narcotráfico e terrorismo, aprofundamento da corrupção de agentes do Estado ligada ao dinheiro gerado pelo tráfico de drogas etc. Conhecer os relatórios da ONU e saber da existência daqueles documentos produzidos há quase trinta anos nos EUA nos leva a pensar: por que se insiste em uma política que não alcança seus objetivos e, ao contrário, que piora o problema que diz combater? Em qualquer empresa, ou ainda, em qualquer lar, uma ideia que repetidamente não dá certo costuma ser trocada por outra. O que acontece, então, no caso do proibicionismo e da “guerra às drogas”?

Há muitos anos tenho dito e escrito que proibicionismo e a “guerra às drogas” são fracassos exitosos: geram muitos ganhos e vantagens justamente na medida em que “dão errado”.

Mathea Falco percebeu isso e soou o alerta. Não adiantou nada. Por que será? O que de tão poderoso existe na manutenção dessa “guerra” se a meta de fazer com que as pessoas sofram menos por conta da violência do narcotráfico ou do abuso de drogas está visivelmente longe de ser alcançada? A resposta não é simples, mas ela existe. E, a partir dela, é que se pode entender as propostas de reforma do sistema proibicionista que passam por projetos de legalização ou descriminalização de drogas hoje ilegais. Na coluna do mês passado, havia prometido ir direto a esse ponto. No entanto, foi preciso esse degrau intermediário para nos fazer lembrar de que há muito tempo já se sabe que a “guerra às drogas” é incapaz de entregar o que promete e, que mesmo assim, ela vem sendo mantida e renovada. Voltaremos a esse ponto em nosso próximo encontro. Aí, então, poderemos compreender um pouco melhor como um desastre completo pode ser tão idolatrado e reiterado e como pessoas que sinceramente repudiam a dor e o sofrimento do próximo podem seguir acreditando nessa “guerra”.

*Thiago Rodrigues é doutor em Relações Internacionais pela PUC-SP e Sorbonne Nouvelle, professor no Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro fundador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP) e da Red Latinoamericana de Estudios sobre Drogas (REDESDAL). Também é autor de dezenas de capítulos e artigos sobre o tema das políticas de drogas, além de autor dos livros “Narcotráfico, uma guerra na guerra” (Desatino, 2012) e “Política e Drogas nas Américas: uma genealogia do narcotráfico” (Desatino, 2017) e coeditor dos livros “Drug Policies and the Politics of Drugs in the Americas” (Springer, 2016), “Drogas, Política y Sociedad en América Latina y el Caribe” (CIDE, 2015) e “Política e Drogas no Brasil” (Mercado de Letras, 2018).

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#PraCegoVer: fotografia (em destaque) que mostra a mensagem, escrita no chão da Av. Paulista, sobre uma faixa de pedestres, com tinta de cor vermelha, “Vivas e Livres Legalize”, e uma multidão ao redor. Foto: Dave Coutinho | Smoke Buddies.

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