Oito em cada dez brasileiros apoiam a internação involuntária de dependentes químicos

Apoio à internação involuntária soma desinformação e estigma sobre uso de drogas, dizem especialistas. As informações são de Audrey Furlaneto para o jornal O Globo

Pesquisa realizada pelo instituto Datafolha e divulgada pelo jornal “Folha de S.Paulo” na quarta-feira revelou que oito em cada dez brasileiros defende a internação involuntária de dependentes químicos . A aprovação à medida permanece acima de 70% em todas as faixas etárias ou nos diferentes níveis de escolaridade dos cerca de 2 mil entrevistados pelo instituto.

Para estudiosos do tema ouvidos pelo GLOBO, o apoio popular à internação involuntária , considerada uma forma de tratamento de exceção por especialistas, é resultado de falta de informação e do estigma em torno do usuário de drogas .

Professora da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas (CRR/FCE/UnB), Andrea Galassi explica que o endosso popular à internação forçada é fruto de dois equívocos:

— O primeiro é que as pessoas associam a internação como modalidade de tratamento para qualquer situação. Ou seja, quando ocorre um agravo, procura-se um hospital, e não um posto de saúde ou um abulatório, mesmo sem ter uma avaliação da gravidade do caso. O outro equívoco diz respeito especificamente ao usuário de droga, ao entendimento de que quem faz uso de drogas é incapaz de tomar decisões, que está o tempo todo com o juízo prejudicado e deve ser retirado da sociedade, confinado.

A internação involuntária , já prevista na Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001, teve sua aplicação ampliada com a sanção pelo presidente Jair Bolsonaro, um mês atrás, do texto que altera a Lei de Drogas, de 2006.

De acordo com a nova lei, de autoria do atual ministro da Cidadania, Osmar Terra , a internação involuntária, que antes podia ser solicitada por familiares ou responsáveis legais do paciente, agora pode ser demandada também por servidor público, o que abriria margem para remoção em massa de populações que fazem uso de drogas em cena aberta.

A falta de informação tanto sobre as possibilidades de tratamento da dependência química , quanto sobre os diferentes usos de drogas , segundo a professora da UnB, poderia ser combatida com campanhas informativas. Como exemplo, ela lembra “as bem-sucedidas campanhas de combate ao tabagismo, que reduziram o consumo de cigarro no país”.

— As campanhas do governo sobre drogas têm sempre um apelo emocional, como a que foi lançada (em junho passado) pelo ministro Osmar Terra — diz ela, referindo-se à campanha de slogan “Você nunca será livre se usar drogas”, cujo material não fornece dados sobre drogas, e tampouco sobre prevenção ao abuso ou tratamento de dependência. — Com campanhas assim, a população não tem acesso a informação correta e pragmática sobre drogas , e as pessoas constróem seus conceitos baseados no medo, no temor da dependência . Existe um estigma social absurdo, como se o dependente fosse um fracassado.

Procurado, o Ministério da Cidadania respondeu que o ministro Osmar Terra não comentaria.

“Internação tem apelo popular”

Para o antropólogo Mauricio Fiore, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e membro da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), o apoio da população à internação involuntária não surpreende.

— A internação tem um apelo popular muito forte quando se fala em drogas, até mesmo a voluntária, a ideia de que o isolamento é capaz de proteger a pessoa dela própria e das drogas. Embora a literatura médica aponte vários caminhos para tratamento, sendo que a internação é um deles e que não necessariamente é o que mais funciona, as pessoas ainda a buscam, porque a internação tem essa aura de proteção, que não está de todo errada. O grande erro é pensar nisso como política pública, quando se trata de medida de exceção.

Fiore defende ainda que grupos políticos conservadores forçam uma polarização entre a abstinência e a internação, de um lado, e a redução de danos, do outro, “repetindo a ideia de que são opostos e que o segundo modelo seria mais lento e, por isso, menos eficaz”.

— Não existe uma oposição. Inclusive, nos Caps AD ( Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, unidades públicas de saúde para atendimento de dependentes químicos ) não se usa só o modelo da redução de danos, como também pratica-se a internação. Muitos Caps internam, e isso é muitas vezes necessário e importante. Mas o que se tenta criar, com esse jogo político, é uma ideia de que quem trabalha com redução de danos defende o uso de drogas, o que não é verdade — completa Fiore.

Cultura da ‘guerra às drogas’

O psiquiatra Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), lembra que “a falsa impressão de que a melhor forma de tratamento é a internação tem origem na chamada guerra às drogas, campanha lançada pelos Estados Unidos na década de 1970”.

— Mas hoje existem estudos científicos mostrando que a internação não é a melhor forma de tratamento. Na melhor das hipóteses, é tão eficiente quanto outras, mas nunca melhor que o tratamento ambulatorial — afirma Xavier. — O que ocorre é que no Brasil é que um político assume o cargo que for, presidência, ministério, e diz: “Vamos mudar, vamos resolver o problema das drogas”, só para mostrar empenho governamental, que, de fato, inexiste. Se esse empenho existisse, faria-se aqui o que se faz no Canadá: escolhe-se o meio mais barato e mais eficaz, que é o sistema ambulatorial do tipo Caps AD que temos aqui, que funciona e que a gente não aproveita.

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#PraCegoVer: Fotografia mostra ação da Guarda Civil Metropolitana em São Paulo, em meados de 2017, para a remoção de usuários de drogas na região central da capital. Foto: Edilson Dantas.

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