O tráfico de drogas é uma tragédia porque é a cara do capitalismo

Fotografia de dois militares, um atrás do outro, portando fuzis apontados para baixo, estando o da frente com máscara de caveira e o outro com máscara preta, próximos a um poste de energia; ao fundo, desfocado, pode-se ver uma criança, vestindo uma camiseta amarela e azul, caminhando pela rua. Guerra às drogas.

O tráfico de drogas utiliza os mesmos métodos do capitalismo. Usa a morte, o roubo e a corrupção como motores de sua empreitada, não enxerga o ser humano como alguém que mereça respeito. Entenda mais no texto de Gustavo Roberto Costa* para a CartaCapital

Qualquer pessoa minimamente consciente e preocupada com a efetivação dos direitos do ser humano não pode, de maneira nenhuma, defender a continuidade da criminalização do consumo, do comércio e da distribuição de drogas (quaisquer delas).

Vale dizer que muitos dos crimes que envolvem drogas são inconstitucionais; são condutas que não lesam direitos de terceiros; não podem, portanto, ser consideradas criminosas — não num regime democrático. Mas esse assunto ficará para uma próxima reflexão.

Por ora, importante consignar por que o tráfico de drogas é tão pernicioso. Por que causa tantas mortes, tragédias, perda de jovens para facções, encarceramento massivo e desumano. Por que justifica incontáveis crimes praticados por agentes do Estado. Por que profissionais do direito fecham os olhos para o ordenamento jurídico, a fim de “combater o tráfico de drogas”, que, segundo eles (sem qualquer base científica e imbuídos do mais puro senso-comum), destrói famílias.

Uma primeira resposta — como já procuramos demonstrar em algumas oportunidades — é a proibição. O que causa a violência não é a circulação e o consumo de drogas (algo absolutamente pacífico); o que a causa é a proibição em si. Ela permite o monopólio do (astronômico) lucro pelas organizações. Com os altos valores angariados, os “traficantes” são capazes de comprar armas (necessárias para garantir seu negócio), contratar muitos “empregados” e corromper agentes públicos com facilidade.

Mas não é só. Como as organizações têm poder financeiro e armamentista, são exigidos esforços do Estado para um enfrentamento tão ou mais violento. Passa a ser necessário armar as polícias até os dentes para fazer frente aos “criminosos”. Com o aparato estatal fortemente armado e crente de que está combatendo os maiores inimigos da civilização (quando são, em sua maioria, meros integrantes da pobre classe trabalhadora), tem-se a receita perfeita para uma verdadeira guerra civil (Brasil e México que o digam).

Mas uma segunda reposta mostra-se reveladora. O tráfico de drogas é trágico porque representa a faceta mais cruel e acabada do que é o capitalismo. As coincidências são inúmeras.

O capitalismo não respeita o Estado de Direito, não respeita as leis e não respeita a democracia. O tratamento dado a pessoas acusadas de tráfico de drogas (para as quais são negados os mais elementares direitos humanos) é o primeiro e mais enfático exemplo. O Estado burguês, quando elege alguém como inimigo e decide destruí-lo, não pode ser parado por leis ou instituições.

O mesmo se dá com o tráfico ilegal de drogas. A guerra por mercados e territórios faz com que quadrilhas entrem em guerra entre si. Faz com que se matem e se roubem por mais lucro; por mais influência.

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Nessas guerras, morrem traficantes e inocentes, sem que a sociedade se abale (o abalo depende do endereço de quem morre). A busca pelo lucro justifica ainda o trabalho precário, o trabalho infantil, jornadas exaustivas, nenhuma segurança e a troca rápida em caso de morte ou prisão. No tráfico, como no capitalismo, o ser humano é descartável.

Na nossa irmã Bolívia, um sangrento e arrasador golpe de Estado vandalizou, saqueou, humilhou e matou. Os indígenas foram e continuam sendo os mais prejudicados. O cidadão que teve a maioria folgada nas eleições não pôde assumir o cargo de Presidente da República, dando lugar a uma presidente autoproclamada, que não recebeu um só voto. Agora, as riquezas naturais do país estão sendo roubadas sem tréguas por forças internacionais, que se garantem no exército e em milícias armadas. Os direitos do povo boliviano simplesmente não existem mais.

No Iraque, forças armadas dos Estados Unidos assassinaram um general iraniano e o chefe de uma milícia iraquiana (além de outras pessoas). Os norte-americanos violaram a soberania do Iraque, o princípio da resolução pacífica dos conflitos (pois agiram militarmente sem que haja guerra declarada) e também o direito à vida, condenando pessoas à morte sem acusação formal, sem direito de defesa e sem julgamento. O direito internacional passou longe da ação dos Yankees.

Os principais representantes do capitalismo mundial, com destaque especial para os Estados Unidos, invadem, matam, roubam, saqueiam, escravizam, impõem pesadas e criminosas sanções e patrocinam golpes, tudo em busca de influência e controle de mercados, além, é claro, de muito lucro. Igual aos chamados traficantes, que ainda têm a desvantagem de não contarem com uma imprensa (com destaque especial para a brasileira) mentirosa ao extremo, que aplaude tais crimes como que se fossem uma luta pela democracia.

Não há, portanto, como endeusar o capitalismo e ser contra o tráfico ilícito de drogas, pois este é filho daquele. Utiliza os mesmos métodos. Defende seus “valores” com unhas e dentes. Atropela e esmaga qualquer um que se ponha à sua frente. Não enxerga o ser humano como alguém que mereça respeito. Usa a morte, o roubo e a corrupção como motores de sua empreitada. O grande problema, assim, não são as drogas e os traficantes.

São eles apenas uma engrenagem de algo muito maior e mais criminoso.

*Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo, membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD e associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM.

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#PraCegoVer: em destaque, fotografia de dois militares, um atrás do outro, portando fuzis apontados para baixo, estando o da frente com máscara de caveira e o outro com máscara preta, próximos a um poste de energia; ao fundo, desfocado, pode-se ver uma criança, vestindo uma camiseta amarela e azul, caminhando pela rua. Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil.

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