O que o combate à Aids pode ensinar à cannabis medicinal

Programa brasileiro de controle do HIV é referência mundial por garantir acesso universal aos medicamentos, ao contrário da incipiente regulação da cannabis medicinal que mantém restrito o acesso a quem pode pagar ou a quem aciona a Justiça. Entenda mais no artigo de Ricardo Amorim para a Veja

Assisti recentemente ao documentário “Carta para Além dos Muros”, dirigido por André Canto e disponível no Netflix (trailer abaixo). O filme resgata a história do vírus HIV e do combate à epidemia de Aids no Brasil, com depoimentos de pacientes, médicos, políticos, estudiosos e ativistas ligados ao tema. Ao ouvi-los falando para a câmera, não pude deixar de reconhecer ali inúmeras semelhanças com o movimento atual pela regulamentação da cannabis medicinal no país. Mais do que coincidência, trata-se basicamente da mesma questão: o direito à saúde e a obrigação do Estado em garanti-la para todos, ambos inscritos em nossa Constituição. Embora seja exótico, não chega a ser surpreendente que tenhamos que voltar sempre às mesmas discussões, como se não fôssemos capazes de aprender com os erros (e acertos) do passado. O debate público no Brasil parece andar em círculos, com todos os atrasos e retrocessos que esse comportamento errático nos impõe.

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O programa brasileiro de prevenção e tratamento da infecção pelo HIV se tornou referência mundial por combinar a profilaxia — com campanhas educativas, distribuição de preservativos e acolhimento para usuários de drogas injetáveis — ao fornecimento gratuito de medicamentos pela rede pública de saúde. O país chegou inclusive a quebrar uma patente internacional para garantir o fornecimento de uma droga fundamental à terapia, ante a recusa do fabricante em baixar os preços cobrados ao governo. Esse é justamente o desafio mais urgente que devemos enfrentar no mercado da cannabis medicinal: o acesso dos pacientes aos remédios, a custos razoáveis. Se valeu para o HIV, com resultados altamente positivos para a saúde pública, deve valer para todas as condições passíveis de serem tratadas com a erva e seus derivados. No entanto, a lógica de economia dos recursos do Tesouro Nacional que norteou a política de Aids parece não valer para a cannabis. Senão, vejamos.

A regulamentação aprovada pela Anvisa no final do ano passado é flagrantemente favorável às empresas importadoras, uma vez que o cultivo segue proibido no país. Mesmo quem pretende produzir o medicamento por aqui, só poderá fazê-lo com insumos semimanufaturados, nunca com a planta ou suas partes in natura. Apesar do avanço no que diz respeito ao registro no Brasil dos produtos com cannabis, que trará mais agilidade na prescrição e na compra, a matéria-prima seguirá sendo importada, sujeita às variações cambiais e custos logísticos. As empresas seguirão vendendo produtos importados ou somente finalizados no país, modelo que, a princípio, tem baixo potencial de promover a redução de custos para a indústria e a consequente queda de preços ao paciente. Assim, o mercado comercial continuará restrito a quem pode pagar ou a quem acessa a Justiça para obter os produtos via SUS, obviamente onerando os cofres públicos.

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Há ainda duas outras opções: o autocultivo e o mercado ilegal. Já há mais de 50 cidadãos brasileiros autorizados a cultivar cannabis para produzir seu próprio remédio e as decisões judiciais, em primeira e segunda instância, continuam sendo proferidas em favor dos pacientes. Ao contrário dos medicamentos para controlar o HIV, é possível obter em casa, com qualidade aceitável e baixos riscos, óleos e extratos de cannabis capazes de aliviar sintomas e controlar com sucesso diversas condições de saúde. Como já escrevi aqui, trata-se de um caminho sem volta, uma vez que o Poder Público reconheceu oficialmente que cannabis é remédio. Pegue, por exemplo, o caso dos populares antiácidos. Apesar das inúmeras opções de marcas disponíveis nas prateleiras, ninguém pode proibir o indivíduo de se tratar com chá de boldo feito em casa se ele assim desejar. Sobre o mercado ilegal, prometo um post a respeito nos próximos dias.

Diante do cenário, o mercado da cannabis medicinal no Brasil pode se tornar ainda mais confuso, caro e ineficiente, um verdadeiro cada um por si. As empresas vão continuar investindo para ampliar suas vendas, convencendo cada vez mais médicos a prescrever seus produtos. Com o registro de produtos e venda em farmácias, o interesse pelas possibilidades terapêuticas das plantas tende a crescer na sociedade. Alguns poderão comprar, outros recorrerão à Justiça para obrigar o SUS a fornecer, e outros tratarão de cultivar por conta própria, inclusive com autorização judicial. Correndo por fora, há iniciativas legislativas no Congresso Nacional e em assembleias estaduais que pretendem alterar a decisão da Anvisa para permitir o cultivo por empresas e pessoas físicas, além de obrigar o SUS a oferecer os medicamentos gratuitamente à população. E, ainda mais importante, será a luta das associações de familiares e pacientes para garantir o constitucional direito à saúde, exatamente como aconteceu no caso do HIV. Se não fosse a pressão de ONGs, coletivos de pacientes e do movimento LGBT, o combate à doença não teria sido tão bem-sucedido, fato que o “Carta para Além dos Muros” demonstra com clareza.

Ou seja, em vez de uma regulamentação que favoreça o acesso à saúde de forma economicamente sustentável, teremos nos próximos meses (quiçá anos), um legítimo salve-se quem puder, com o mercado funcionando pelas exceções e não por regras que beneficiem o conjunto da sociedade. Você nem precisa ser pessimista para perceber que não vai dar certo.

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#PraCegoVer: em destaque, fotografia em vista superior de uma fita vermelha que forma um laço sobre a palma de uma mão, apoiada em uma superfície de madeira escura desgastada. Foto: P. Chinnapong | Shutterstock.

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