‘No Brasil, a guerra às drogas está entranhada na sociedade’, diz fotojornalista estadunidense

Fotografia em primeiro plano de Jonathan Alpeyrie, vestindo um casado de cor escura, sob um colete de cor camuflada (tons de verde e marrom), na parte esquerda da foto e à frente de um caveirão (carro blindado da PM do Rio), na rua de uma comunidade. Guerra.

Com experiência na cobertura de conflitos por todo o mundo, Jonathan Alpeyrie conta as dificuldades e particularidades da violência da guerra às drogas no Brasil. As informações são da Época

Aos quarenta anos, o fotógrafo Jonathan Alpeyrie já esteve nas zonas de conflito de todo o mundo: Cáucaso, Líbia, Afeganistão, Leste da África, Ucrânia, Nepal, Iraque e Síria, onde chegou a ser feito de refém por 80 dias. Nessa lista, o francês radicado nos Estados Unidos adiciona também o Brasil, por onde esteve por três meses neste ano.

Em conversa com ÉPOCA, Alpeyrie contou sobre suas experiências no Brasil fotografando a guerra às drogas no Rio de Janeiro. E fala sobre as diferenças e similaridades do país com outras zonas de conflito aonde esteve. Para ele, apesar de não sofrer embates da mesma intensidade dos vistos nos fronts do Oriente Médio ou do Leste Europeu, o Brasil tem um problema grave: “Aqui, a guerra não tem previsão para acabar. E a morte pode vir de qualquer lado”.

Você está pela segunda vez por aqui, e também já rodou o mundo. Como é fotografar no Brasil, comparado aos outros lugares que você já visitou?

Trabalhar no Brasil é difícil. Demorei um tempo para conseguir meus contatos. Na minha primeira vinda, foram 15 dias até que eu tirasse a minha primeira foto. Cobrir a guerra às drogas tem sido meu foco. E, como fotógrafo, essas histórias são muito difíceis. Em parte por conta do acesso aos personagens, mas também porque é uma venda difícil. Eu trabalho para a ‘Vanity Fair‘, ‘Elle‘, ‘CNN‘ e muitas grandes publicações internacionais. Mas o Brasil nunca é um grande interesse para elas. Com Bolsonaro isso cresceu um pouco. Nesse sentido,  minha primeira viagem foi muito bem sucedida. Pude entrar no mundo das drogas e das operações policiais. Também consegui conhecer a cracolândia e explorar a relação entre as minorias sexuais e o consumo de drogas. A ideia era ter uma grande história sobre as diferentes camadas da sociedade que estão envolvidas com o mundo das drogas.

Um soldado rebelde vigia área próxima de escola que havia sido destruída após ataques na Etiópia Foto: Jonathan Alpeyrie

#PraCegoVer: fotografia de um homem (parte esquerda da foto) de costas para a câmera, portando um rifle e apoiado com os braços no parapeito de uma grande janela, por onde pode-se ver um céu azul, em um prédio avariado com pedaços de concreto pelo chão; o registro foi feito na Etiópia. Foto: Jonathan Alpeyrie.

Uma das suas especialidades é cobrir guerras, e você falou em ‘guerra às drogas’. Como você já esteve em diversas zonas de conflitos, como você vê a situação do Brasil? Estamos vivendo uma guerra?

Então, obviamente, a palavra guerra tem significados diferentes. Na Ucrânia é uma guerra quente, por exemplo. Não é como aqui. Mas a guerra às drogas é uma guerra. Só é um conflito muito mais discreto e que não quer se deixar nomear. Mas se você quer ser honesto sobre o que está acontecendo aqui, no México ou na Colômbia, é preciso dar nomes aos bois. Ser honesto. A primeira maneira de entender um problema é nomeá-lo.

Então, para mim, é uma guerra. Todo dia há operações, pessoas morrem diariamente em ambos os lados. E há Manaus, que está uma loucura e ninguém fala. Também a fronteira do Paraguai, por onde entram as armas. É uma situação séria.

E é bem mais complicado do que a guerra na Ucrânia, por exemplo. Ela está tão entranhada na sua sociedade, está dentro de vocês. Lidar com isso será difícil.

Na Geórgia, em 2004, um guia conduz soldados em momento de reconhecimento do terreno inimigo Foto: Jonathan Alpeyrie

#PraCegoVer: fotografia que mostra dois homens fardados (farda em tons de verde-claro e marrom), um abaixado (primeiro plano), usando um chapéu e olhando para trás, e o outro em pé, segurando um rifle em uma mão, apontando para frente com a outra, usando uma máscara de cor clara e olhando para trás, em uma trilha no meio de uma vegetação densa; o registro foi feito na Geórgia. Foto: Jonathan Alpeyrie.

E quais são as diferenças práticas entre esses conflitos? Para o seu trabalho e para quem vive nos locais afetados?

É complicado, pois aqui a morte chega até você e você não sabe. Se alguém decide te matar, ou você está no meio de uma operação da favela, acontece do nada. Se você está numa batalha, por exemplo, é outra coisa. Eu cobri a batalha de Mosul por algum tempo em 2017. Lá, você tem um front, você sabe onde as batalhas estão acontecendo, é mais fácil. Aqui é muito perigoso, pois tudo pode acontecer no estalar de um dedo. Ninguém sabe quem é quem. E é difícil saber quem está em cada lado, com a milícia e a polícia. No fim das contas, todos querem sobreviver.

No Brasil, para fazer um bom trabalho fotográfico, é preciso ir muito fundo. Visualmente é difícil: não está na sua cara. Você precisa procurar. Na Cracolândia, por exemplo, você não pode chegar tirando fotos. É preciso que as pessoas confiem em você. Numa batalha como a de Mosul, por exemplo, as coisas estão acontecendo por todas as partes.

Leia: Rio confirma o fracasso da guerra às drogas

E o que você tem percebido do Brasil com essas vindas?

O Brasil é seu mundo próprio, é tão grande, e tem muitos mundos dentro de si. É um pouco como os Estados Unidos, são muitas vivências e realidades. Aqui visitei o Jacarezinho, Acari, Alemão e Rocinha. Lembro que a Rocinha foi intensa porque são ruas tão estreitas, era muito complexa. Estive lá quando a polícia fazia uma operação, e você podia ser emboscado em qualquer local e hora.

Nessa operação, inclusive, fomos emboscados e houve tiroteio. Na anterior, no Jacarezinho, também. Não há fronts e não há exércitos. Todo mundo se esconde, e eles vivem nesse territórios, os traficantes. Isso dificulta muito o trabalho para qualquer pessoa. É um mundo dentro do mundo.

Batalhão de combate se alinha em Kathmandu, no Nepal Foto: Jonathan Alpeyrie

#PraCegoVer: fotografia que mostra várias mulheres jovens fardadas (tons de marrom e verde), usando bonés, enfileiradas e segurando suas armas apoiados no chão, ao lado corpo, com detalhe para uma delas que olha para a câmera; o registro foi feito no Nepal. Foto: Jonathan Alpeyrie.

E se tratando de América Latina: a experiência é parecida nos outros países que você visitou?

Eu cobri a guerra às drogas no México uma vez. A violência lá é muito pior. Fiquei mais nervoso lá do que aqui. Acho que eles têm uma relação diferente com a violência, pensando em quão criativos eles são. Eles cortam cabeças, botam nas praias de Acapulco, usam ácido, fazem torturas terríveis.

Na Colômbia é diferente, pois se trata de uma guerra contra rebeldes, também. Mas, pensando na cobertura de guerra aqui e no México, algo em comum é que as pessoas acham que não há um rosto, e por isso também não há um nome.

Eu discordo: você precisa procurar mais fundo, pois ele está diluído. Não é uma grande batalha que se estende, mas vários lampejos de conflito que não param de surgir. Para quem mora na favela, é interminável. Aqui a intensidade é menor do que na Síria, sim, mas acontece o tempo todo. Lá é mais pesado, mas vai acabar. E aqui continua.

E o que você acha das milícias? Elas são uma realidade bem particular do Rio, mas acabam sendo um Estado dentro do Estado. Elas são mais perigosas do que o tráfico comum?

A situação da milícia é muito perigosa, e pior do que as facções criminosas. É como ter uma corrente subterrânea, que tem raízes em membros da Polícia e das Forças Armadas. Eles têm acesso às armas de fogo, não precisam importar. E têm treinamento. São muito agressivos.

Fronteira entre a Etiópia e o Quênia, onde tropas rebeldes se reagrupam após embates com tropas governamentais. Foto: Jonathan Alpeyrie.. Guerra.

#PraCegoVer: fotografia em primeiro plano de vários soldados rebeldes, sendo um deles uma mulher, no plano do meio e em foco, que carrega uma metralhadora apoiada no ombro; o registro foi feito na fronteira entre Etiópia e Quênia. Foto: Jonathan Alpeyrie.

Me lembram um pouco os “zetas”, que era o cartel mais violento do México. Apesar de terem perdido espaço recentemente, a sua estrutura era composta de membros das Forças Especiais do México. Então usavam sua violência para impor a própria lei. É algo que acontece muito na história humana: usar a agressividade para afastar a competição.

Outro problema das milícias é que sabemos pouco sobre elas. Todo mundo que tente cobrir esse fenômeno acaba botando a própria vida em risco. É fascinante do ponto de vista histórico, mas vai tornar a vida das pessoas complicadas aqui no Brasil.

Leia também:

Autor de livro sobre fracasso da guerra às drogas diz que Brasil é o pior lugar do mundo

#PraCegoVer: fotografia (de capa) em primeiro plano de Jonathan Alpeyrie, vestindo um casado de cor escura, sob um colete de cor camuflada (tons de verde e marrom), na parte esquerda da foto e à frente de um caveirão (carro blindado da PM do Rio), na rua de uma comunidade. Foto: arquivo pessoal.

Deixe seu comentário
Assine a nossa newsletter e receba as melhores matérias diretamente no seu email!