Morte de criança em ação da PM gera onda de protestos em Porto de Galinhas

Uma garota de apenas seis anos foi vítima de suposto conflito entre a Polícia Militar e organizações do tráfico de drogas. Moradores denunciam que comunidades periféricas vivem rotina de violência policial há tempos

A rotina em Porto de Galinhas, em Ipojuca, no Grande Recife, mudou completamente desde quarta-feira (30), quando Heloysa Gabrielly, de 6 anos, morreu após ser baleada em uma operação da polícia. Em meio ao luto, o clima de insegurança tomou conta do balneário. O comércio fechou e houve incêndio de ônibus e bloqueio de ruas e estradas.

Entre a noite de quinta (31) e a sexta (1º), o cenário de Porto de Galinhas foi marcado por protestos e barricadas.

Cerca de 250 policias civis e militares foram enviados para reforçar a segurança no balneário. A principal preocupação é atuação de um grupo que controla o tráfico de drogas na região, disseram fontes ligadas à Polícia Civil ao g1.

Um turista europeu de 30 anos estava em Porto de Galinhas no dia em que a menina foi assassinada e ficou impressionado com o que viu e ouviu.

“Houve alguns momentos assustadores. Fomos ao Centro para jantar e tudo estava fechado. Então, ficamos confusos. Depois, algumas pessoas nos contaram o que aconteceu e ficamos chocados”, lembrou.

O homem relatou ter visto uma grande quantidade de policiais andando pela cidade, com armas. “Eles eram tão agressivos. Na verdade, eu estava apenas tentando me afastar deles. Então, naquela noite, fomos para casa depois disso. Agora, tenho mais medo da polícia no Brasil do que já tinha”.

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Heloysa Gabrielly, de 6 anos, foi morta no terraço de casa durante investida da PM — Foto: Reprodução/WhatsApp

Heloysa Gabrielly, de 6 anos, foi morta no terraço de casa durante investida da PM. Foto: reprodução / Whatsapp.

Segundo a Polícia Militar, a menina foi atingida durante um confronto entre o Batalhão de Operações Especiais (Bope) e dois suspeitos de tráfico de drogas, com troca de tiros na comunidade Salinas.

Moradores, no entanto, afirmam que os policiais chegaram atirando ao local. A Polícia Civil abriu um inquérito e investiga o que aconteceu.

“Eu nunca imaginei que os policiais pudessem chegar atirando aqui, que é uma praça onde tem muita criança brincando. Não teve tiroteio aqui, a polícia chegou atirando e correndo atrás de um cara. Um dos tiros tirou a vida da minha filha”, afirmou o pai de Heloysa, Wendel Fernandes, ao UOL.

A prefeitura de Ipojuca lamentou a morte da menina e disse que enviou ofício ao governo do estado solicitando mais segurança para os moradores e turistas.

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Desculpa de combate ao tráfico

Para o secretário de Defesa Social de Pernambuco, Humberto Freire, os traficantes estão se aproveitando da situação para inflamar a população contra o Bope, que participou da operação que culminou na morte da menina.

“Os traficantes estão se aproveitando da tragédia para pregar uma saída do Bope, como a gente já tem áudios circulando de que eles querem que tenha movimento até a saída do batalhão. E não é esse o caminho. A força policial que ali se instalou, a base do Bope, tem serviços prestados, prisões de traficantes”, disse o secretário em entrevista ao g1.

Ele afirmou que o combate ao tráfico em Ipojuca resultou da diminuição em 33% do índice de homicídios na cidade no ano passado.

O delegado Ney Luiz, que era titular da Delegacia de Ipojuca e atuou na investigação, foi transferido. Agora ficará cuidando exclusivamente de Porto de Galinhas. O objetivo é combater o tráfico de drogas na localidade.

“A gente sabe que somente prisão e apreensão de drogas não resolvem o problema da violência. Então, a gente quer identificar os líderes desses grupos criminosos e o núcleo financeiro deles, não os pequenos traficantes. Muito embora, a maioria comande de dentro do presídio”, destacou.

A advogada Edna Jatobá, integrante do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), classifica como desastrosa a operação policial que resultou na morte de Heloysa e diz ser preocupante a forma que a polícia militar tem atuado nas periferias da região metropolitana do Recife.

“Na abordagem eles atiram primeiro e perguntam depois. E quando estão em operação, como esse caso em Ipojuca, chegam abrindo fogo, trocando tiros, um comportamento que eles só têm em comunidades criminalizadas”, disse a advogada ao Brasil de Fato.

Edna alerta que há casos em que a PM matou adolescentes e não foi sem intenção. “O caso de Heloysa está sendo caracterizado como ‘bala perdida’. Mas temos casos como os de Vicor Kawan [17 anos, morto em dezembro de 2021], Lucas Luz [17, morto em 2020], Jhonny [17, também em 2020], que são adolescentes mortos durante abordagens policiais”.

Investigação

Os policiais militares envolvidos na ação que resultou na morte de Heloysa tiveram as armas recolhidas para a realização de perícia. Na equipe, segundo a Polícia Militar, havia sete PMs em duas guarnições.

Além das armas dos policiais, um revólver apreendido e a viatura da PM, que teria sido atingida por disparos, segundo a corporação, também foram encaminhados para perícia. Quatro testemunhas do crime também foram ouvidas pela Polícia Civil.

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Por meio de nota, o estado disse que três investigações foram abertas, “no âmbito da Polícia Civil, da PMPE e da Corregedoria”, para apurar as circunstâncias da ocorrência.

Segundo a SDS, “as investigações estão sendo realizadas de forma técnica e isenta e, por enquanto, não é possível afirmar de onde partiu o disparo. Todos os elementos estão sendo levados em consideração”.

Turismo

De acordo com o diretor executivo do Trade Turístico de Porto de Galinhas, Ulisses Ávila, antes da pandemia, a região recebia cerca de um milhão e 200 mil turistas por ano e aproximadamente 100 mil por mês. Números que, segundo ele, começam a se aproximar da normalidade novamente.

“O turismo é a atividade principal geradora de emprego e renda em Ipojuca. Na semana passada, já tinha praticamente voltado à normalidade, em quase pleno vapor. Neste momento de conflito, temos entre 75% e 85% dos hotéis ocupados”, observou.

Ulisses acredita que o que aconteceu foi um fato isolado e não afetará o turismo na cidade. “Porto de Galinhas sempre se caracterizou como um dos destinos mais seguros do Brasil. Foi um fato isolado que abalou a percepção de segurança nestes dias, mas isso vai ser superado”, disse.

Segundo um dos moradores da região entrevistado pelo Alma Preta, a realidade em Porto de Galinhas é diferente da passada pela mídia.

Aqui nós contamos com um amplo histórico de violência de nossas comunidades, todo mundo tem um parente que morreu na suposta guerra contra as drogas, então, como se não bastasse essa tragédia, ela vem também lembrar a cada um de nós nossos lutos pessoais”, disse Ramos Oliveira, 31, denunciando a rotina marcada por desrespeitos que vivem os moradores das periferias do município.

Ele afirma que o cenário, até então visto como “paradisíaco” para pessoas de fora, na verdade, vive uma realidade paralela ao que se é posto pela mídia.

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“Temos comunidades com milhares de pessoas vivendo nos espaços residuais enquanto resorts e empreendimentos ligados ao turismo tomam a paisagem. As drogas que servem como pretexto para invasão de comunidades e assassinatos estão também ligadas ao turismo, por toda a classe média consumidora de psicotrópicos. A diferença, em questão, é que nos espaços turísticos não existe qualquer fiscalização ou algum tipo de coibição”, denuncia.

Protestos

As manifestações por causa da morte de Heloysa acontecem desde a quarta-feira (30). Os ônibus de transporte público que saem do Recife com destino a Porto de Galinhas e Nossa Senhora do Ó, na sexta, paravam no Centro de Ipojuca. Pessoas que estavam em Porto de Galinhas também relataram dificuldade de conseguir deixar o balneário.

Ao longo da quinta-feira, lojas, padarias e supermercados não abriram as portas e ruas e avenidas foram bloqueadas com entulhos, galhos e fogo.

A Escola Amara Josefa da Silva, onde Heloysa estudava, cancelou as aulas e colegas de trabalho do pai da menina, que é jangadeiro, não realizaram passeios pelas piscinas naturais de Porto de Galinhas.

Protesto é realizado no Recife pedindo celeridade nas investigações sobre a operação da PM que resultou na morte da menina Heloysa, em Porto de Galinhas — Foto: Pedro Alves/g1

Protesto é realizado no Recife pedindo celeridade nas investigações sobre a operação da PM que resultou na morte da menina Heloysa. Foto: Pedro Alves / g1.

Por volta das 19h da quinta, um ônibus que era utilizado para transporte de funcionários de hotéis foi incendiado na PE-09, sentido Recife, próximo ao posto do Batalhão de Polícia Rodoviária.

No momento, apenas o motorista estava no veículo. O Corpo de Bombeiros foi acionado e apagou as chamas, informando que ninguém ficou ferido.

Vídeos que circulam pelo Whatsapp mostram que, durante a noite e madrugada, de quinta para sexta, houve diversos protestos. As imagens também mostram pessoas correndo pelas ruas. Em alguns locais, foi ateado fogo a entulhos para impedir a circulação de veículos.

Em nota, enviada na madrugada de sexta (1º), o governador Paulo Câmara (PSB) disse que monitorou os protestos em Porto de Galinhas durante toda a quinta e que se solidariza com a família da menina, Heloysa. O governador disse, ainda, que o caso “será apurado com o máximo rigor”.

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Sobre o envio de cerca de 250 policiais para o Litoral Sul, o governo disse que está trabalhando para “restabelecer a tranquilidade” na região.

De acordo com informações repassadas pela Articulação Negra de Pernambuco (ANEPE) ao Alma Preta, os moradores pedem pela retirada do policiamento ostensivo de Porto de Galinhas e a devida investigação pelos abusos de poder, ameaças e assassinato das crianças e jovens da comunidade.

Movidos pela instabilidade na segurança local e como forma de protesto à violência e morte, comerciantes, barraqueiros, jangadeiros, bugueiros, ambulantes, mergulhadores, entre outros, se uniram à causa e cruzaram os braços.

Nas redes sociais, algumas pessoas relataram “arrastões” pela cidade. No entanto, diversos comentários apontavam que o que havia ocorrido eram protestos pacíficos de pessoas indignadas que pediam, sobretudo, acolhimento jurídico. Uma denúncia de bombas lançadas pela polícia para “dispersar” a ação também foi feita.

Denúncia

Nessa terça-feira (5), um documento com denúncias sobre casos de violência policial em Porto de Galinhas e a morte da menina Heloysa Gabrielly assinado por 119 instituições que defendem os direitos humanos foi enviado à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

O documento pede que a ONU e a Corte solicitem explicações aos governos federal e estadual sobre violação de normas e recomendações internacionais. Além disso, reivindica a criação de um “plano de medidas contra a violência e letalidade policial, com participação da sociedade civil” e assistência aos parentes de Heloysa Gabrielly.

As solicitações feitas no documento foram as seguintes:

  • Que seja explicado o evento de 30 de março de 2022, “especialmente pela caracterização de flagrante atuação violenta das forças policiais”;
  • Que sejam divulgados os protocolos empregados para prevenir o uso de força letal e a “vitimização da população civil, especialmente de pessoas negras, nos termos da resolução 43.1 do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei e Protocolo de Minnesota”;
  • Que seja garantida uma investigação “independente, célere, transparente e imparcial, conduzida por órgão independente, alheio às forças de segurança e instituições públicas envolvidas na operação”;
  • Que seja formado um corpo pericial independente, “que garanta a imparcialidade e transparência para investigar os assassinatos, observando-se os termos dos Protocolos de Minnesota e Istambul”;
  • Que os familiares da vítima e todas as pessoas que sofreram violações “sejam devidamente assistidas, reparadas e informadas sobre a tramitação das investigações”;
  • Que seja emitido um posicionamento público “a respeito da inviolabilidade do direito à vida e à integridade física da população moradora de periferias, assim como que se envie um pedido de informação ao Estado brasileiro”;
  • Que seja cobrada do governo a criação de um “plano de redução da violência e letalidade policial” a ser dotado de orçamento e com participação da sociedade civil organizada.

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De acordo com a coordenadora executiva do GAJOP, Deila Martins, o documento foi construído pela sociedade civil e tem cunho de “apelo urgente” às instituições internacionais de defesa dos direitos humanos.

“A gente pede que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos cobre informações do governo de Pernambuco e do Brasil, considerando os índices de violência que a gente vem percebendo nas ações policiais”, disse Deila ao g1. “Em 2020, 113 pessoas foram mortas durante operações policiais em Pernambuco. Dessas, 97,3% são pessoas pretas e pardas, a população negra, geralmente periférica”, disse Deila ao g1.

A coordenadora executiva do Gajop também afirmou que, nas comunidades do distrito de Porto de Galinhas, circulam relatos de excessos e violência nas abordagens policiais.

Há violência na abordagem policial, de forma truculenta, batendo em moradores, entrando nas casas sem processo legal e fazendo revistas vexatórias em mulheres e crianças, além de ameaças. Identificamos vários perfis atribuídos ao Bope em que fazem ameaças diretas às comunidades, mandando determinadas pessoas se entregarem e dizendo que o Bope vai entrar com força nas comunidades”, declarou Deila.

Outro ponto da denúncia é a intimidação da família de Heloysa. Na segunda-feira (4), houve um protesto no Recife pedindo justiça e a apuração do caso. Os parentes da menina também solicitaram o afastamento dos sete policiais militares envolvidos na ação que resultou na morte da criança.

“Há violência psicológica à família. A SDS colocou um helicóptero sobrevoando de maneira muito baixa, perto do telhado da casa da família, com policial armado de fuzil apontando a arma. Nós presenciamos isso na sexta [1º de abril], quando fazíamos atendimento”, denunciou Deila. “Acontecem situações de ameaça como forma de amedrontar”.

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#PraTodosVerem: fotografia mostra Heloysa Gabrielly com a boca aberta e sorridente ao lado do bolo de aniversário de seis anos. Imagem: foto cedida pela família.

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