Milícia incorpora venda de drogas em um terço das favelas sob seu domínio

Fotografia mostra um aglomerado de casas e árvores em um morro na cidade do Rio de Janeiro. Imagem: Fernando Frazão / Agência Brasil.

Estudo da Fundação Getulio Vargas com moradores de 188 favelas no Rio de Janeiro mostra que milicianos incorporaram práticas do tráfico. Informações d’O Globo

Criada por policiais no início dos anos 2000 com o argumento de impedir a entrada do tráfico nas favelas onde moravam, a milícia incorporou a venda de drogas aos seus negócios em cerca de um terço de seus domínios na cidade do Rio de Janeiro. Já os traficantes importaram práticas de extorsão típicas de grupos paramilitares na maioria das favelas que controlam. É o que revela um estudo inédito feito por pesquisadores da Fundação Getulio Vargas (FGV), da Universidade de Chicago e da Escola de Administração, Finanças e Instituto Tecnológico da Colômbia. Com base em dados coletados pelo Disque-Denúncia, o trabalho detalha como os diferentes grupos criminosos que agem no Rio atuam de forma cada vez mais semelhante.

Um questionário sobre práticas criminosas, atividades econômicas e exploração de taxas pelas quadrilhas foi submetido a 337 moradores de 188 favelas da cidade do Rio — dominadas por três facções diferentes do tráfico e pela milícia — que ligaram para a central de atendimento do Disque-Denúncia entre setembro de 2020 e março de 2021.

As respostas revelaram porcentagens semelhantes de exploração de vários serviços em comunidades com atuação de traficantes e de paramilitares. Por exemplo: em 79% das áreas sob controle do tráfico há relatos de participação da facção na venda de pacotes de internet, enquanto o mesmo serviço é explorado em 80% dos locais dominados pela milícia. A situação se repete nos questionamentos sobre monopólio da venda de gás de cozinha, atividade explorada em 76% das favelas com ação de grupos paramilitares e em 62% daquelas controladas por traficantes, e do serviço clandestino de TV a cabo, presente em 82% dos locais com ação da milícia e em 78% daqueles sob domínio do tráfico.

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Sem disparidades

Já a cobrança de taxas de segurança a moradores e comerciantes, registrada em 92% das localidades com a presença de paramilitares, foi relatada em 26% das áreas com atuação do tráfico. Por outro lado, 30% das favelas controladas por milicianos têm relatos de venda de drogas — presente em quase 100% das favelas dominadas por traficantes.

“O que percebemos é que, onde antes havia disparidades, hoje há semelhanças. Havia uma separação clara: o tráfico de drogas não explorava o morador, só vendia droga; já a milícia proibia a venda de drogas e vivia de formas de extorsão. Hoje, cada um dos grupos importou atividades do outro. Nas áreas dominadas por milícia, há relatos de tráficos de drogas. Nas áreas dominadas pelo tráfico, há cobranças por produtos lícitos e até de taxa de segurança”, explica Benjamin Lessing, diretor do Centro de Estudos sobre América Latina da Universidade de Chicago e um dos autores do estudo.

Os resultados serão apresentados no Seminário Internacional de Governança Criminal, que acontece pela primeira vez no Rio amanhã e quinta-feira. O evento — organizado pela FGV, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Universidade de Chicago — vai ter a participação de pesquisadores de quatro regiões brasileiras e de outros seis países das américas do Sul, Central e do Norte, que vão compartilhar experiências sobre controle social e econômico por organizações criminosas nas regiões que são objeto de suas pesquisas.

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A partir de 2015 — quando o ex-traficante Carlos Alexandre da Silva Braga, o Carlinhos Três Pontes, assumiu o controle da maior milícia do Rio —, a polícia do Rio passou a receber denúncias sobre a entrada dos paramilitares no negócio da venda de drogas. No início, havia somente um acordo para que um traficante aliado de Três Pontes pudesse vender drogas nos redutos do chefão em Santa Cruz, na Zona Oeste. A prática, no entanto, expandiu-se pela cidade, sobretudo em áreas invadidas pela milícia que antes eram reduto de traficantes, como a Praça Seca, também na Zona Oeste. Lá, segundo investigações da Polícia Civil, os paramilitares estabeleceram uma espécie de convênio com traficantes do Complexo da Serrinha — que podem explorar a venda de drogas na região e, em troca, dão apoio aos paramilitares contra investidas da maior facção do Rio, rival que os dois grupos têm em comum.

Por outro lado, o intercâmbio entre tráfico e milícia na Praça Seca levou à importação da exploração de serviços de internet, TV a cabo e gás, antes exclusivos de áreas dominadas por paramilitares, a várias favelas da mesma facção que domina a Serrinha — como Muquiço, Parada de Lucas, Cidade Alta e Vigário Geral, todas na Zona Norte. Uma investigação do Ministério Público já identificou, inclusive, um caso de acordo entre tráfico e milícia para exploração de internet na favela Ás de Ouro, em Anchieta, também na Zona Norte: lá, milicianos da Baixada Fluminense têm o monopólio de exploração do negócio mediante o pagamento de uma taxa aos traficantes.

“A pesquisa revela que o objetivo do crime organizado, seja tráfico ou milícia, é explorar monopólios locais, ou seja, controlar atividades econômicas nos territórios dominados. Em alguns casos, isso é feito impedindo outros fornecedores de prover o serviço. Em outros, são estabelecidas taxas para a exploração. Mas o que o estudo mostra é que o objetivo dos grupos, seja milícia ou tráfico, é o mesmo”, explica Joana Monteiro, coordenadora do Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública da FGV e outra das autoras da pesquisa.

Das 188 favelas sobre as quais foram colhidos relatos na pesquisa, 78 eram dominadas por milícias e 110 por traficantes — sendo que 69 eram dominadas pela maior facção do Rio e outras 41 por duas quadrilhas rivais. Para realizar as entrevistas, atendentes do Disque-Denúncia seguiam um questionário produzido pelos pesquisadores. Após colher o relato do denunciante, o atendente perguntava se ele poderia responder, por cinco minutos, perguntas sobre a região alvo da denúncia.

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#PraTodosVerem: fotografia mostra um aglomerado de casas e árvores em um morro na cidade do Rio de Janeiro. Imagem: Fernando Frazão / Agência Brasil.

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