Mídia, poder punitivo e tráfico de drogas: a Zona Sul continua linda

Ilustração que mostra uma pessoa negra agachada, com as mãos no rosto, um pano branco no colo, cicatrizes de açoites nas costas e uma corrente presas à perna, que está amarrada a uma favela que se vê ao fundo, em nanquim branco e preto, onde também pode-se ver um helicóptero da policia que sobrevoa. Drogas.

A partir do tratamento distintivo dado pela mídia é possível notar que a guerra às drogas não é impulsionada pela preocupação com a saúde pública ou qualquer outro bem jurídico, mas, sim, importante instrumento de aquecimento econômico da indústria bélica através de uma política de extermínio de pretos e pobres. Entenda mais no artigo de André Nicolitt* e Charlene da Silva Borges** para a ConJur

“Eu sigo naquela fé que talvez não mova montanhas, mas arrasta multidões e esvazia camburões. Preenche salas de aula e corações vazios” (Falcão: Djonga)

No último dia 10 de julho, uma determinada plataforma digital da grande mídia estampou a seguinte manchete: “Dois homens são presos acusados de fazer delivery de drogas na Zona Sul do Rio”. Noticia-se que a entrega de drogas era realizada por aplicativos de celular, em combinação feita entre fornecedor, entregador e consumidores residentes no Leblon, Ipanema e outros bairros de elevado padrão.

Os rapazes possuem nível superior. Um era responsável pela entrega, o outro foi encontrado com significativa quantidade de um tipo específico de maconha, que não costuma ser traficada nas “favelas”, termo utilizado na matéria. Aquele que exercia a função de guardar a droga é filho de um casal de médicos e possui “passagem” por tráfico internacional de drogas.

Se o leitor observasse os comentários nas redes sociais vinculadas ao referido portal jornalístico, lá encontraria indignações quanto ao caráter protetor da manchete, que falava apenas na modalidade delivery de droga, ao passo que, quando situações semelhantes ocorrem nas “periferias”, o noticiário teria outro tom, do tipo: “Intenso esquema de tráfico de drogas foi desbaratado”; ou: “A polícia conseguiu prender o maior traficante da região”.

Leia: Guerra às drogas é pretexto para atacar negros e pobres, diz criminalista

Nas redes sociais foram feitas comparações raciais. “Como o rapaz é branco, deixa-se de chamá-lo de traficante”. “Se fosse na zona norte e preto, seria rotulado como traficante”. Em resumo, “no morro é tráfico, na zona sul é delivery.

Se os internautas estavam certos ou errados, não nos cabe avaliar, à míngua de uma análise documental do caso. Porém, sobre a construção linguística da manchete e a notícia em si, permitimo-nos algumas reflexões. É a conhecida relação entre mídia, construção do imaginário social e poder punitivo.

A ideia que hipoteticamente se visualiza é a de que, independentemente da raça — se preto, pardo, branco ou amarelo —, a construção midiática do fato tráfico de drogas, quando se refere a áreas de alto padrão econômico, estabelece-se com a finalidade de proteger o estado de intocabilidade do bairro, como se ali não acontecessem crimes. Quer-se evitar, a todo custo, a desvalorização econômica do bairro. Suaviza-se ao máximo a linguagem empregada na mídia, como forma de convidar o leitor da notícia ao esquecimento imediato do fato.

Se essa suposição tiver consistência lógica, pode-se ter a equivocada impressão de que o eufemismo usado na construção de um noticiário sirva, de forma indireta e acidental, como fator de proteção da imagem de uma pessoa negra que viesse a ser detida nas diversas zonas nobres do Brasil, que não seria tratada expressamente como traficante, como ocorre no cotidiano das comunidades. Aqui, prefere-se pensar de forma diferente.

Quando a mídia, com figuras de linguagem, apaga a dimensão racial que envolve o delito consumado em áreas nobres, tenta eliminar a possibilidade de que seja estabelecida uma crítica sócio-racial por quem lê a notícia. Coisifica-se mais uma vez o ser apreendido, que, sendo negro, já terá experimentado uma ciranda de coisificações anteriores que envolve a presença negra numa sociedade de arquétipos culturais brancos e embranquecedores.

Leia mais: Os negros não são maioria no tráfico, é a guerra às drogas que só ocorre nas favelas

Definir o que é branquitude, e quem são os sujeitos que ocupam lugares sociais e subjetivos da branquitude, é o nó conceitual nos estudos contemporâneos sobre identidade racial branca. Para efeito do presente ensaio, poderíamos dizer que a branquitude é entendida como uma posição em que sujeitos foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm na contemporaneidade. Para se entender a branquitude é preciso saber de que forma se constroem as estruturas de poder concretas e subjetivas nas quais as desigualdades raciais se ancoram [1]. A branquitude é um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros e a si mesmo. É uma posição de poder, um lugar confortável do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo [2].

No Brasil, quando a mídia protege conceitos estéticos de bairro, estabelece geografias e espaços de vida oníricos, não identificáveis como zonas delitivas, simplesmente rende loas a uma concepção de vida de uma branquitude acrítica, ou seja, aquela que não desaprova o racismo e sente-se confortável em sua “condição especial”, na lição de Lourenço Cardoso [3]. Por isso, se brancas/os, em regra de boa condição social, cometem tráfico de drogas na zona sul, temos uma dupla proteção dada pela mídia servil ao poder econômico: a) protege-se a estética econômica do bairro; b) protegem-se pessoas não negras, cuja imagem social é fortalecida com a mensagem, subliminar ou não, de que a branquitude não trafica drogas.

Essas mensagens midiáticas são importantes na medida em que produzem, modificam ou eliminam representações sociais. Contribuem, portanto, para determinar como serão as interações sociais, das quais são extraídas relevantes informações para o conceito de desvio social. É aqui que a sociologia do desvio (Howard Becker) deve se fazer presente para mostrar como as “instituições” ainda que não jurídicas, ao exemplo da mídia, são fontes criminalizantes, definidoras do conceito de crime e — o que pode ser mais danoso ainda — criam os estereótipos de criminosos. Como sugeriu Zaffaroni, as agências de comunicação social são também agências de poder punitivo.

Paraisópolis: lei do silêncio, baile funk e guerra às drogas são pano de fundo de ações policiais

Ao analisar a relação entre mídia e capitalismo tardio, Nilo Batista oferece uma certeira ponderação: “O discurso criminológico midiático pretende constituir-se em instrumento de análise dos conflitos sociais e das instituições públicas, e procura fundamentar-se numa ética simplista (a ‘ética da paz’) e numa história ficcional (um passado urbano cordial; saudades do que nunca existiu, aquilo que Gizlene Neder chamou de ‘utopias urbanas retrógradas’)” [4].

Crime deveria ser crime em qualquer parte das cidades (re)partidas.

Ao lado da crítica criminológica, é preciso prosseguir com mais percepções orientadas por uma crítica sócio-racial, para explorar, ao máximo, as interconexões semânticas da manchete “Dois homens são presos acusados de fazer delivery de drogas na Zona Sul do Rio”.

A Lei nº 11.343/2006 autoriza uma interpretação geograficamente racista, para distinguir traficante e usuário de drogas. No §2º do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 consta que, para considerar se a droga se destinava a consumo pessoal, deverá o juiz avaliar a natureza e a quantidade da substância apreendida, o local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente.

Quando Milton Santos, ao propor uma Geografia Nova, diz que a Geografia foi usada para justificar movimentos de colonização [5], fato que não se resume à prática exploratória de um único país, e quando também ele evidencia que o espaço pode ser a casa do homem como também sua prisão, essa dimensão crítica da Geografia nos permite compreender as funcionalidades punitivas e encarceradoras extraíveis dos vocábulos “local” e “circunstâncias sociais”. Significa que uma mesma conduta, a depender do local de apreensão da droga, pode ser tipificada como uso ou tráfico privilegiado — se na Zona Sul — ou tráfico de drogas e associação para o tráfico, se nas comunidades.

Leia mais – “Guerra às drogas”: uma metáfora sobre o genocídio negro

A lei autoriza o exercício de um poder punitivo colonizador, que, através de uma seleção racialmente geográfica, poderá conquistar novos territórios urbanos para praticar o rotineiro encarceramento, pois é nas comunidades onde mora a maior parte da população negra. E o que isso tem a ver com a mídia? A força do poder punitivo colonizador conta com o apoio da mídia para selecionar e divulgar imagens delitivas que proporcionem uma sensação de justiça/punição na sociedade. A mídia ganha força social com as informações vazadas pelos donos do poder punitivo. Trata-se de um sistema de retroalimentação de poderes, construído por uma elite econômica e política do país, em sua maior parte não negra.

O Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (set/2018), registra que a magistratura tem como perfil um juiz que é homem, branco, casado, católico e pai. Informa ainda que entre os juízes e juízas, “a maioria se declarou branca (80,3%), 18% negra (16,5% pardas e 1,6% pretas), e 1,6% de origem asiática. Apenas 11 magistrados se declararam indígenas. Dos que entraram na carreira a partir de 2011, 76% se declararam brancos” [6]. Por outro lado, a maior parte da população carcerária brasileira (63,6% — junho de 2017) é composta por pessoas negras (pretas e pardas) [7].

Mídia e suas figuras de linguagem, poder econômico e poder punitivo colonizador estabelecem uma cartografia urbana, onde corpos serão capturados ou não ao critério da seletividade racial, reforçando-se um antigo pacto social, que não é o de Rousseau. É, como revela Maria Aparecida Silva Bento [8], o “pacto narcísico da branquitude”, em que esta, herdeira de imensas sesmarias de privilégios sociais, lê a questão racial brasileira como um problema unicamente do negro.

A branquitude mantém uma espécie de cegueira deliberada sobre sua participação fundamental no processo de exclusão social da população negra. Por isso, recusa uma compreensão inclusiva da democracia, que permita a disponibilização de cotas raciais ou do protagonismo negro na cena midiática. Amedronta-se com a possibilidade de uma igualdade material entre negros e não negros. Como na canção de Baco Exu do Blues“Eles querem um preto com arma pra cima num clipe na favela gritando cocaína. Querem que nossa pele seja a pele do crime”.

Invasão Makana: “FOGO NOS RACISTA!”

No âmbito criminal, esse “pacto da branquitude” impede um sério debate sobre as tensões raciais da sociedade brasileira, e que, portanto, compõem o processo penal. Por isso, Thula Pires interpela as narrativas criminológicas, inclusive as críticas, todas de viés eurocentrado, e propõe um debate criminológico em que o branco saia da condição patriarcal, heteronormativa e de sujeito universal, que dita a regras do jogo acadêmico e do sistema de Justiça criminal. Propõe um debate criminológico horizontal, que considere o racismo e seus efeitos na política criminal do país [9].

E o que seria delivery de drogas? Delivery é uma palavra em inglês que significa entrega. Muito utilizada para a distribuição de gêneros alimentícios. Em dimensão mais ampla, na era digital, seria o fornecimento de qualquer bem de consumo por aplicativo. No artigo 33 da Lei nº 11.343/2006, delivery, entre os 18 verbos do tipo, aproxima-se da conduta de “entregar a consumo ou fornecer drogas”.

Por que a notícia usa delivery, se há um verbo em português adequado à conduta delitiva? Delivery é a glamourização e o embelezamento do crime, correspondente ao sentimento de nobreza que se apossa dos viventes de bairros luxuosos. Usar a palavra delivery é dizer que não ocorrem crimes na zona sul. E, se acontecem, são coisas triviais, semelhantes ao serviço de delivery de pizzas.

A partir desse tratamento distintivo é possível notar que a guerra às drogas não é impulsionada pela preocupação com a saúde pública ou qualquer outro bem jurídico, mas, sim, importante instrumento de aquecimento econômico da indústria bélica através de uma política de extermínio de pretos e pobres.

Gilberto Velho se dedicou, na década de 70, a uma pesquisa etnográfica realizada na zona sul do Rio de Janeiro, que resultou no livro “Nobres&Anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia”. Em sua análise da classe média carioca, conseguiu detectar que o uso de tóxicos estava associado a um movimento de contracultura, de uma nova forma de compreensão da vida diante de um padrão comportamental ditado pela moralidade social. Ou seja, os integrantes do grupo não se autopercebiam como criminosos.

Esse “direito à não autopercepção criminosa” só cabe aos moradores da zona sul. São aqueles que podem perambular pela cidade, com folga e sorriso no rosto para a água de coco em frente ao mar. Está certo Luís Valois, quando diz que a guerra às drogas é uma guerra contra categorias sociais.

Diversas são as qualificações para esse fenômeno proibicionista que nos inunda de sangue derramado no confronto diário entre policiais e inimigos criados pela Lei nº 11.343/2006, quase todos pretos. “O Haiti é aqui” (Caetano Veloso). O espaço urbano é racialmente produzido. Palavras de Jaime Amparo Alves, que dizem tudo sobre a governamentalidade espacial brasileira [10].

Pensa-se que os adjetivos usados para criticar a política de drogas brasileira permanecerão incompletos na sua significação, se não houver uma revisão de conceitos criminológicos através da lupa teórico-empírica sustentada pela crítica racial. Hora de pensar, com Nathalia Oliveira e Eduardo Ribeiro, em uma iniciativa negra por uma nova política de drogas [11], o que certamente não será proveitoso à mídia brasileira.

[1] SCHUCMAN. Lia Vainer. Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana. Psicol. Soc. vol.26 nº 1 Belo Horizonte Jan./Apr. 2014, p. 83-94.

[2] FRANKENBERG, Ruth. White women, race masters: The social construction of whiteness. USA: University of Minnesota. 1999, p. 70-101 apud PIZA, Edith. Porta de vidro: entrada para branquitude. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (orgs). Psicologia social do racismo – estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. p. 59-90.

[3] MÜLLER, Tânia MP; CARDOSO, Lourenço. Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil. Appris Editora e Livraria Eireli-ME, 2018.

[4]BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 42, p. 243-263, 2003.

[5] SANTOS, Milton. Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica. Edusp, 2002. p.30

[6] Disponível em https://www.cnj.jus.br/juiz-brasileiro-e-homem-branco-casado-catolico-e-pai/. Acesso em 18/7/2020.

[7] Disponível em http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf. Acesso em 18/7/2020.

[8] CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Editora Vozes Limitada, 2017. p. 374 (ebook).

[9] DE OLIVEIRA PIRES, Thula Rafaela. Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica criminológica apreensível em pretuguês. Revista brasileira de ciências criminais, n. 135, p. 541-562, 2017.

[10] ALVES, Jaime Amparo. Topografias da violência: necropoder e governamentalidade espacial em São Paulo. Revista do Departamento de Geografia, v. 22, p. 108-134, 2011.

[11] OLIVEIRA, Nathália; RIBEIRO, Eduardo. O massacre negro brasileiro na guerra às drogas. 2018. Disponível em: https://sur.conectas.org/wp-content/uploads/2019/05/sur-28-portugues-nathalia-oliveira-e-eduardo-ribeiro.pdf

*André Nicolitt é juiz de Direito do TJ-RJ, doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professor do PPGD da Faculdade Guanambi – BA, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e membro emérito do Instituo Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

**Charlene da Silva Borges é defensora pública federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA, mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia – NEIM e coordenadora do Departamento e do Grupo de Estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Leia também:

Racismo Estrutural: Dando a Letra

#PraCegoVer: em destaque, ilustração que mostra uma pessoa negra agachada, com as mãos no rosto, um pano branco no colo, cicatrizes de açoites nas costas e uma corrente presas à perna, que está amarrada a uma favela que se vê ao fundo, em nanquim branco e preto, onde também pode-se ver um helicóptero da policia que sobrevoa. Ilustração: Carlos Latuff.

Deixe seu comentário
Assine a nossa newsletter e receba as melhores matérias diretamente no seu email!