Menos saúde, mais repressão: prioridades mudam no “combate às drogas” no Brasil

Fotografia que mostra parte da perna e mão de um policial que empunha um fuzil e, ao fundo, desfocado, os morros do Rio de Janeiro dividindo a linha do horizonte com um céu de nuvens claras. Imagem: Fernando Bizerra Jr. | EFE.

Levantamento do Ipea mostra que, nos últimos anos, houve redução em verbas destinadas a políticas de atenção à saúde dos usuários, ao passo que recursos destinados a ações de repressão registraram valor recorde. As informações são da BBC News Brasil

O investimento do governo federal em políticas de drogas teve uma queda abrupta nos últimos anos: saiu de um patamar de mais de R$ 1,8 bilhão em 2017 para um valor 75% menor no último ano do governo Michel Temer (R$ 447 milhões) e no primeiro ano de Jair Bolsonaro (R$ 476 milhões).

Esses dados fazem parte de levantamento inédito produzido por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Eles analisaram as despesas do governo federal com essa área, em diferentes ministérios, em 15 anos (2005 a 2019).

No âmbito do governo federal, os gastos com políticas de drogas incluem ações em diferentes frentes (e espalhadas em vários ministérios): coordenação nacional da política sobre drogas, repressão ao tráfico internacional de drogas, atenção à saúde dos usuários, políticas de educação para prevenção e compra de leitos em comunidades terapêuticas.

Além da constatação sobre a queda geral no gasto com política de drogas, a análise de como os recursos foram distribuídos entre essas diferentes áreas também revela uma mudança na lógica dessa política no Brasil.

Nos últimos anos, houve redução em verbas destinadas ao Ministério da Saúde, responsável por políticas de atenção à saúde dos usuários, ao mesmo tempo em que foi verificado valor recorde nos recursos destinados ao Ministério da Justiça, responsável por ações de repressão.

O contexto de um orçamento da União cada vez mais apertado, de forma geral, ajuda a explicar a redução nos gastos com a política de drogas. Mas o cenário de arrocho revela também as prioridades, como aponta o coordenador da área de Justiça, cidadania e segurança pública do Ipea, Alexandre Cunha, responsável pelo levantamento.

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“Isso reflete prioridades, mesmo num contexto de redução (de despesas), que nunca é linear. Algumas políticas sofreram cortes expressivos, como de saúde mental. Outras tiveram aumento, como de repressão”, afirmou em entrevista à BBC News Brasil.

Com base nos dados do levantamento, solicitado pelo próprio governo federal, Cunha aponta que, até o fim do governo do ex-presidente Lula havia “pouco investimento do governo federal em política sobre drogas — quer em repressão, quer em prevenção”.

A partir de 2013, já no governo Dilma Rousseff, há um “claro aumento da despesa em tema de política sobre drogas, que tem a ver com aumento na repressão, mas principalmente um aumento expressivo em política de prevenção e cuidado”, segundo ele.

Depois, no último ano da gestão Temer, isso muda. “Aí você tem alteração substancial do tipo de gasto feito em prevenção e cuidado — o sentido da política de prevenção e cuidado muda, acompanhado de desfinanciamento — e o aumento do gasto com repressão não chega perto do que você cortou nos recursos destinados à prevenção e cuidado”, diz Cunha.

Despesa no Ministério da Saúde com política de drogas tem menor nível sob Bolsonaro

As despesas do Ministério da Saúde com políticas voltadas a essa área tiveram, em 2019, seu menor nível em 15 anos, com R$ 22,6 milhões. Quando comparado ao orçamento total da pasta, o percentual é de apenas 0,02%, que também é o menor patamar da série histórica. De 2014 a 2017, quando ficou por volta de R$ 1,5 bilhão, esse percentual superava 1%.

Saúde mental e políticas de atenção a usuários de drogas

No Ministério da Saúde, o aumento durante o governo Dilma é explicado, segundo Cunha, por uma política de fortalecimento das redes de atenção psicossocial e ações no campo de saúde mental.

Na Saúde, os gastos com políticas sobre drogas estão misturados com gastos de saúde mental, e existem destinações específicas para drogas, principalmente o financiamento de CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas), que é a atenção especializada a dependentes de álcool e outras drogas. E foi no governo Dilma que houve articulação da rede e financiamento para estruturação dessa política em atenção à saúde mental”.

Desde o governo Temer, houve uma mudança de orientação e hoje esse modelo também não é prioridade do governo Bolsonaro.

Na medida em que o governo Temer muda a orientação política na área de saúde mental no Ministério da Saúde, começa a haver desmonte forte das redes de atenção psicossocial e do financiamento a esse tipo de atenção. Então esse movimento no gráfico tem a ver com essa política ser estruturada e, depois, desestruturada.”

Cunha diz que a política de atenção ao usuário de álcool e outras drogas dentro da lógica de redução de danos foi “abortada”. “Não chegou efetivamente a estar estruturada e a gente ainda não tem distância suficiente para avaliar êxito. Para avaliar política pública, precisamos de pelo menos cinco anos de implementação da política para fazer avaliação para medir impacto”, diz.

Procurado pela BBC para comentar a redução na verba, o Ministério da Saúde respondeu que o atendimento de saúde mental e o tratamento especializado para dependência química é oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Disse ainda que, em 2020, a pasta investiu R$ 476 milhões nesses atendimentos.

Foco em comunidades terapêuticas

O modelo anterior de atendimento vem sendo substituído pelas chamadas comunidades terapêuticas. Essa política, que foi iniciada por Dilma, vem se tornando o principal mecanismo de combate à dependência química da gestão Bolsonaro.

Em 2019, uma lei sancionada por Bolsonaro fortaleceu as comunidades terapêuticas, instituições normalmente ligadas a organizações religiosas. O texto facilitou internações involuntárias em unidades de saúde.

A lei também diz que esses locais devem oferecer “projetos terapêuticos ao usuário ou dependente de drogas que visam à abstinência”, deve ter um “ambiente residencial, propício à formação de vínculos, com a convivência entre os pares, atividades práticas de valor educativo e a promoção do desenvolvimento pessoal”, e estabelece que esses locais devem servir de “etapa transitória para a reintegração social e econômica do usuário de drogas”.

Assim, existem três tipos de internações: a voluntária, a involuntária (quando o dependente é levado pela família ou por um agente de saúde) e a compulsória — quando há determinação da Justiça.

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Procurado pela reportagem, o Ministério da Cidadania informou que o investimento subiu de R$ 40,9 milhões em 2018 (2.900 vagas financiadas) para R$ 153,7 milhões em 2019 (10.833 vagas financiadas). A pasta hoje mantém contratos com 483 instituições.

O governo já informou que o Ministério da Cidadania busca aumentar esse orçamento, hoje em R$ 146,2 milhões, para R$ 330 milhões. Esse gasto com comunidades terapêuticas estava originalmente no Ministério da Justiça até 2018 e em 2019 passou para o orçamento do Ministério da Cidadania.

“Um dos objetivos da nova política é acolher e tratar usuários de drogas por meio da desintoxicação e fortalecimento das comunidades de tratamento, integrando políticas nacionais e internacionais, tomando iniciativas públicas e privadas e reconhecendo as diferenças entre o usuário, o dependente e o traficante de drogas, tratando-os de forma diferenciada”, disse o Ministério da Cidadania.

Uma das principais críticas feitas por especialistas e procuradores ao modelo passa pela relação entre o tratamento de dependentes químicos e o proselitismo religioso. Das quase 2 mil comunidades terapêuticas no país, segundo outro estudo do Ipea, 82% disseram ter ligação com igrejas e organizações religiosas (40% pentecostais e 27% católicas).

A leitura da bíblia é uma atividade diária em 89% delas, e a participação em cultos e cerimônias religiosas é obrigatória em 55%. Leia mais nesta reportagem da BBC News Brasil, que revelou, em 2019, que o governo federal financiava entidades para dependentes químicos denunciadas por maus-tratos e irregularidades, com denúncias como violação de correspondências, prisão dentro de quartos, trabalhos forçados e punições por faltas a cultos religiosos.

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“A lógica do sistema anterior, de atenção ambulatorial ao dependente, trabalha dentro da lógica de redução de danos. E o modelo da comunidade terapêutica é o da abstinência. Então, é uma transição de modelo que era calcado na melhora da vida do dependente mesmo que ele não deixasse de usar droga, para um modelo em que o fundamental é a abstinência — tornar-se ‘limpo’ é requisito para ter direito à assistência”, diz Cunha.

Despesa no Ministério da Justiça com política de drogas tem maior nível sob Bolsonaro

Diferentemente de outras áreas, os recursos destinados à política de drogas no Ministério da Justiça bateram recorde: os mais de R$ 420 milhões em 2019 representam o maior patamar dos 15 anos pesquisados. Em proporção ao orçamento total da pasta, ficou em 3%.

Nessa área, o Ministério da Justiça é responsável por ações de combate ao crime organizado, tráfico internacional e pelo financiamento de vagas relacionadas a esse tipo de delito no sistema penitenciário federal.

Procurado pela reportagem, o Ministério da Justiça informou que, desde 2019, com a aprovação da Nova Política Nacional Sobre Drogas, as ações da pasta “são voltadas para gestão da política, pesquisa e, sobretudo, a redução da oferta de drogas através da descapitalização das organizações criminosas, com leilão de bens apreendidos do crime”.

Entre os investimentos, também estão, segundo a pasta, o sistema de radiocomunicação na fronteira do Brasil com o Paraguai (“que causou um prejuízo de quase R$ 3 bilhões aos criminosos e apreendeu, desde 2019, cerca de 900 toneladas de droga”), a Escola Nacional de Cães de Faro (“que será inaugurada em breve, com foco em aumentar a capacidade de detecção de drogas por parte dos policiais”) e a nova unidade de pesquisa sobre o mercado de drogas (Centro de Excelência em Redução de Oferta de Drogas Ilícitas).

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O presidente e seus aliados defendem a ação contra o tráfico como política fundamental para conter a criminalidade no país — ao mesmo tempo em que estudiosos do tema apontam que “a guerra às drogas”, realizada há décadas, não vem mostrando resultado na redução da violência.

Em 2020, por exemplo, Bolsonaro e aliados comemoraram apreensões recordes de centenas de toneladas de drogas (principalmente maconha).

No âmbito do debate sobre apreensões, a Polícia Federal reconheceu o impacto limitado das apreensões de drogas para combater o tráfico, destacando como ações de maior relevância as operações que conseguem atingir o comando das organizações criminosas por trás desse mercado ilegal.

A tendência gradual de liberação do uso da maconha no mundo também é frequentemente apontada pelos especialistas no tema — hoje, o uso adulto é permitido em países como Uruguai, Canadá e Geórgia e em vários estados dos EUA.

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Por que é desafiador calcular (e fiscalizar) quanto o Brasil gasta com política de drogas?

Mensurar os gastos em todas essas áreas da política relacionada às drogas é desafiador por alguns motivos.

O primeiro é que o Brasil não reúne todas as políticas sobre drogas em um mesmo órgão. Então, além de o orçamento estar espalhado entre os ministérios, existem ações orçamentárias que não são exclusivamente para políticas de drogas, o que torna difícil identificar cada uma e diferenciar os gastos lá dentro.

“Fizemos uma garimpagem, dentro de cada ação orçamentária, sobre o que ia para política sobre drogas e o que não ia”, explicou Cunha.

Os pesquisadores dividiram as modalidades de gastos entre diretos e indiretos, mas em alguns casos, dizem, era impossível diferenciar exatamente o que foi direcionado para política de drogas. Por isso, Cunha diz que é possível que se gaste com políticas sobre drogas em ações que não foram desagregadas — o que significa que o gasto pode ser maior.

O estudo sugere uma metodologia para o orçamento nessa área, de forma que os gastos sejam previamente divididos em cinco eixos: 1. Prevenção, 2. Tratamento, cuidado e reinserção social, 3. Redução da oferta, 4. Pesquisa e avaliação, 5. Governança, gestão e integração.

Isso por que, da forma que é hoje, os pesquisadores apontam que é difícil mensurar e, por consequência, analisar a efetividade. “Uma melhor distinção de diversas atividades voltadas para as políticas sobre drogas iria contribuir para uma melhor implementação e fiscalização dessas políticas públicas.”

Outro ponto importante quando se pretende analisar o conjunto das políticas de drogas no Brasil é considerar o papel de estados e municípios, que não está contabilizado aí. Um exemplo claro são as ações da Polícia Civil e Militar de todo o país, que não entram na conta do governo federal com repressão.

Pesquisadores do Ipea trabalham, agora, em levantamento específico com esses gastos estaduais.

Neste ano, pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) apontou que, em um ano, as instituições do sistema de justiça criminal dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo consumiram mais de R$ 5,2 bilhões com a política de proibição das drogas.

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