Medicado ou simplesmente… chapadão?

“Se você está suspeitando que esteja tendo algum problema ou dificuldade em lidar com as situações cotidianas por conta da Cannabis, provavelmente você está certo. Não seja paranoico, mas esta é justamente a hora de procurar ajuda”. Entenda mais no texto do neurocientista Fabricio Pamplona publicado originalmente no Medium

Pode parecer brincadeira, mas com o estímulo à Cannabis medicinal estamos obviamente estimulando as pessoas a usarem os canabinoides rotineiramente. Elas alegadamente melhoram o bem-estar, e é um dos grandes motivos pelos quais pacientes com doenças crônicas de fato procuram esse tipo de tratamento. Quando a gente pensa no inferno que deve ser viver com dores crônicas, por exemplo, ter o alívio de um ____________ (baseado, vape, óleozinho, preencha com o que preferir) para fazer você se sentir bem deve ser realmente o paraíso.

Fato é que, de repente a dor passou, de repente você acorda melhor todos os dias, mas a vontade de estar chapado nunca passa. Esse é um “problema” intrínseco a qualquer substância que a gente goste… Sometimes, you can never get enough. É assim com a cerveja pra discutir o futebol na mesa de bar, é assim com o Rivotril pra dormir de noite, é assim com os opioides para aliviar a dor, é assim com a Cannabis. E não é diferente porque o uso é medicinal.

A questão de se a Cannabis causa dependência ou não já está de certa maneira pacificada. Ela pode provocar esse tipo de efeito em algumas pessoas sim, e trazer consequências desastrosas para a vida de alguns, mas na média da população, a ocorrência é considerada pequena comparada a outras substâncias. Agora, de forma alguma isto minimiza os problemas potencialmente graves para quem de fato desenvolve a dependência. Fato é que muitas das pessoas que passam a consumir Cannabis (em qualquer forma) para uso medicinal sequer consideravam esta possibilidade para uso recreativo. Conheço vários casos em que eram inclusive opositoras ferrenhas e tinham preconceitos com os usuários “típicos”. Uma vez fazendo uso medicinal é natural que elas passem a se perguntar em algum momento… “veja bem, agora estou fumando todos os dias, será que estou ficando viciado?”. É uma pergunta legítima.

Me deparei com um post tratando justamente desse tema, e achei que vale compartilhar a reflexão. O post é de uma americana que, segundo ela própria, conseguiu controlar seu transtorno de humor e evitar crises de pânico com o uso de Cannabis. O título é sugestivo do conteúdo “O que acontece se você vaporizar concentrados de Cannabis todos os dias durante 5 anos” (tradução minha). Parece interessante, vou traduzir os pontos principais por aqui.

Ela mesma relata que ao se dar conta que estava vaporizando todos os dias começou a refletir a respeito de qual era a imagem que tinha de um dependente, e de como o que estava experimentando era distante dessa imagem, por mais que estivesse usando uma substância entorpecente diariamente durante longos 5 anos da sua vida.

“Fumo há 30 anos, mas não sou viciada” (vide abaixo)

“Fumo há 30 anos, mas não sou viciada”. Quem se lembra desse clássico do Tapa na Pantera? Genial, e leva à reflexão. Eu conheço gente assim, que fuma diariamente, mas jura de pé junto que tem a situação completamente sob controle. Muitas vezes não é o que pensam as pessoas à sua volta.

Levando em consideração as reflexões do post que mencionei acima, quando você usa Cannabis cronicamente durante 5 anos da sua vida, pode estar sujeito às seguintes situações*:

*note que estamos falando da experiência pessoal relatada no post, não necessariamente será a sua, mas pode ser a de alguém que você conheça. Também pesa bastante o fato da autora viver em um país em que o uso está regulamentado, portanto, totalmente legal.

1 — Você eventualmente pode achar OK trabalhar “chapado”

Quem fuma o tempo todo não vê o menor problema em fazer isso quando precisa ser produtivo. Conheci gente que fumava antes de ir pra aula na universidade, ou mesmo pra uma prova, e tudo bem. Após se acostumar com os efeitos, seu desempenho cotidiano pode ser absolutamente normal, ou suficiente para as tarefas do dia a dia, e você certamente tende a naturalizar a atividade, já que virou um hábito. Assim como toma um café ou fuma um cigarro, qual o problema de dar uma “bolinha” no seu vape no break depois do almoço? A autora relata se sentir menos ansiosa quando fuma, e, portanto, consegue desempenhar uma tarefa de cada vez e se sente mais organizada.

Leia mais: Já imaginou ter uma pausa para a maconha em seu trabalho?

2 — O motivo pelo qual você fuma vai mudar

Quando a gente começa, tudo é novidade, e a mudança na percepção da realidade junto com o relaxamento faz a gente achar graça de tudo e literalmente gargalhar. Bem, isso passa. E quando você usa todo o dia, aquilo passa a ser um hábito, parte dos seus rituais cotidianos e, diria até, parte da sua neuroquímica basal. Como o tabagista, como o ‘bebedor’ de cigarro, ou como o pinguço que passa no boteco pra tomar um rabo de galo e “regular a lenta”. Antes, era uma novidade no dia, agora, se você não tem, ela faz falta. É uma outra relação.

3 — Ao invés de laricar, você pode emagrecer

Aquela fome incontrolável que se tem no início da relação com a Cannabis também tende a desaparecer. No lugar dela, há quem relate que não tenha fome se não usar no dia. O popular “fumar um para abrir o apetite”. Particularmente, nos casos em que a pessoa é naturalmente ansiosa, e compensa essa ansiedade com exagero na comida, fumar pode ajudar a aliviar a ansiedade e de fato, te fazer emagrecer. É o oposto diametral à cena típica do “maconheiro lariquento” comendo um pote de sorvete com colher ou se esbaldando em massas, doces ou _________ (complete com sua larica preferida).

4 — Você pode ter dificuldades em acompanhar as conversas normalmente

Aquela cena típica do usuário crônico dando uma “viajada”, realmente acontece. O relato da autora é de que às vezes nota que sua mente está meio “confusa” como se estivesse nebulosa. E vez ou outra faz um comentário estranho numa roda de conversa, como se estivesse “atrasada”. Temos até uma expressão, certo? Aquela pessoa “faísca atrasada”, que demora pra entender as coisas. Ou seja, pode acontecer com qualquer um, mas parece ser mais frequente com alguns usuários crônicos.

5 — Você pode se tornar irritadiço e pouco tolerante

Mais um relato interessante: de que se tornou mais irritada e com menos paciência para as pessoas, particularmente as chatas. Não tolera muita conversinha e mimimi. Por outro lado, a tendência é ficar muito menos violento e agressivo.

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6 — Pode ser difícil parar quando você quiser

Por mais que a situação pareça sob controle, a verdade é que parar subitamente de usar pode não ser uma possibilidade (talvez nem seja um desejo). Se você tiver algum problema de saúde, ou prejuízo qualquer que te leve a querer interromper o uso, é provável que você tenha que fazer gradualmente, substituindo as composições por algo menos psicoativo, substituir pelo canabidiol, ou reduzir a frequência aos poucos.

7 — O “fundo do poço” não existe

Essa é uma questão bem importante. O nosso imaginário em relação ao dependente é aquele cara “crackudo”, cuja vida já foi devastada, que vendeu a televisão pra comprar drogas e não tem mais nenhuma esperança de se reerguer. Não é raro ouvirmos que “as drogas podem te levar ao fundo do poço”. Preciso te dizer que provavelmente você não vai se sentir assim se estiver lá. Ou seja, “fundo do poço” e algo realmente subjetivo e se você foi sendo cozinhado em fogo lento pelo hábito, dificilmente vai perceber o tamanho da encrenca. Não há fundo do poço, mesmo dependente, você sentirá que está tendo uma vida normal. Seu julgamento está afetado e isso é parte da doença.

Conselho de amigo: Se você está suspeitando que esteja tendo algum problema ou dificuldade em lidar com as situações cotidianas por conta da Cannabis, provavelmente você está certo. Não seja paranoico, mas esta é justamente a hora de procurar ajuda.

De verdade, o que me inspirou a escrever esse post foi justamente uma pergunta parecida feita por um amigo. Percebendo claramente os benefícios da Cannabis no seu bem-estar e controle do humor, ele passou a usar cotidianamente, e aí me veio com a pergunta “Doutor, quando sei se estou usando demais?”. Pois é, difícil saber. Mas há quem tente com as conhecidas “escalas funcionais” como a Marijuna Problems Scale ou “Escala de Avaliação de Problemas com Cannabis”, numa tradução livre. Eu prefiro esse tipo de abordagem do que uma abordagem quantitativa com um limite taxativo de dose, frequência ou quantidade. A tolerância para estas substâncias varia muito, e cotidianos diferentes são afetados de maneiras diferentes por esse “lifestyle”. Imagine por exemplo um artista, um surfista, um cirurgião e um controlador de voo indo trabalhar meia hora depois de dar um dab. Pois é.

A responsabilidade e julgamento são muito individuais. Agora, quando consideramos o uso medicinal, esta decisão é compartilhada com o médico, profissionais de saúde, rede de apoio e todos precisam estar atentos aos potenciais efeitos danosos no uso crônico. Isto é particularmente verdade para as variedades e produtos contendo THC. Nas referências temos algumas leituras recomendadas, mas diria que o ponto de partida é a aplicação da “Escala de Avaliação de Problemas com Cannabis”. Pode ser em autoavaliação como naqueles testes da revista Capricho, mas a avaliação e aconselhamento devem ser sempre realizados por um profissional capacitado.

Como funciona a escala

A “Escala de Avaliação de Problemas com Cannabis” foi desenvolvida em 1994 e é uma escala de autoavaliação que ajuda a identificar aspectos da vida do paciente/usuário que eventualmente estejam sendo prejudicados pelo uso cotidiano de Cannabis.

Ela contém 19 itens que representam efeitos negativos potenciais da Cannabis nas relações sociais, autoestima, motivação, produtividade, trabalho, finanças, saúde física, saúde mental e problemas com a lei. Os itens foram selecionados com base em protocolos anteriores voltados à identificação e tratamento de dependentes de outras substâncias, e adaptados à medida do possível para a realidade da Cannabis. A intenção é dar uma ideia da gravidade do problema na avaliação de problemas que buscam tratamento por abuso de Cannabis. Portanto, pode ser pouco indicativo ou simbólico para alguém que está fazendo um uso “social”, embora não estejam definidos limiares numéricos claros a partir do qual um indivíduo possa ser classificado “uso seguro” ou “dependente”.

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Cada item da escala é preenchido de zero a dois, de acordo com a intensidade, com “0” igual a nenhum problema, “1” igual a problema de pouco importância e “2” iguala problema grave. Utiliza-se a soma destes scores individuais em cada item, e já que tem 19 itens, a escala vai de 0 a 38. Um score maior indica um problema potencialmente maior, embora, como eu já comentei, não haja um limiar numérico pré-definido. A intenção é identificar a gravidade do problema e orientar o aconselhamento baseado mais na identificação da causa dos problemas, e atuar neles individualmente. Diz-se que “a natureza” do problema é maior do que a quantificação de fato ou a atribuição de um número ao paciente, visto que a escala provavelmente não é linear em relação aos problemas observados.

A escala vai abaixo, esse estudo interessante faz uma análise fatorial para entender quantos “fatores” dimensionais a escala aborda, buscando “autocorrelações” entre as variáveis analisadas (essa é uma simplificação para o entendimento, a PCA é uma análise com suas particularidades, e busca entender “clusters” de variáveis).

Numa tradução livre, temos os seguintes itens:

  1. Falta de autoestima
  2. Autoestima reduzida
  3. Sentir-se mal em relação ao uso
  4. Procrastinar
  5. Baixo nível de energia
  6. Baixa produtividade
  7. Negligência com a família
  8. Dificuldade para dormir
  9. Perda de memória
  10. Perda do trabalho (sofreu demissão)
  11. Problemas com os amigos
  12. Perda de dias no trabalho ou estudo (absenteísmo)
  13. Dificuldades financeiras
  14. Problemas com a família
  15. Sintomas de abstinência
  16. Problemas com o cônjuge
  17. Tem blackouts ou flashbacks
  18. Problemas com a lei
  19. Falta de autoconfiança

Esses acimas são os 19 itens, e de acordo com o estudo abaixo (resumo na tabela), eles podem ser divididos basicamente em 2 fatores ou componentes:

Componente 1: relacionado a autoestima, afeto, produtividade e sono. Em que todas as variáveis abaixo se “autocorrelacionam” com um load score de pelo menos 0,4.

Componente 2: relacionado a problemas familiares, sociais e no trabalho.

Lembrei-me da frase de um amigo que diz que “A maconha é um problema social”, quando fumo não quero falar com ninguém. Agora já sei a que grupo ele pertence hehehe.

Pra quem estiver interessado em avaliar sua chance de estar dependente baseado na avaliação da chance de ter abstinência, a escala abaixo pode ser usada para avaliar a experiência no último dia sem a substância (escala de 24h, abstinência aguda). É igualmente só um indicativo. Se houver suspeita, procure um profissional qualificado para lhe ajudar.

A intenção desse post foi levantar a lebre de que o uso cotidiano crônico pode ter consequências. Ainda que para todos os efeitos se considere que o padrão de uso dos pacientes legítimos seja diferente dos usuários recreativos, e, portanto, com menos risco de provocar dependência, ainda assim, vale a pena um olhar vigilante a si mesmo e aos amigos.

Se você é um profissional de saúde que lida com dependentes, recomendo a leitura técnica “Manual de aconselhamento dos pacientes” disponível aqui.

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#PraCegoVer: em destaque, foto que mostra, em close-up, o ator James Franco com um sorriso aberto e os olhos cerrados. Foto: recorte do cartaz do filme “Pineapple Express”.

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