“Mateína” imagina como seria a realidade se a erva-mate fosse proibida

Fotografia mostra Diego Licio (Moncho), segurando uma cuia e bomba de chimarrão à boca, e Federico Silveira (Fico), sentados à sombra de uma árvore, em um campo. Imagem: Divulgação / Mateína.

Filme mostra um futuro onde a bebida que todos consomem no Uruguai é proibida e faz uma crítica à “lógica que justifica as proibições”. Informações da Folha de S.Paulo

A jornada que transforma Moncho e Fico, dois homens que vivem em algum lugar do interior, com gado nos campos e carros velhos nas estradas, em heróis nacionais começa “meio por casualidade, em um dia comum, em um rincão do mundo chamado Uruguai”, quando chega a decisão que muda o país.

No ano de 2045, com paisagens não muito diferentes do interior uruguaio de hoje ou de algumas décadas atrás, a vida se move em marcha lenta, enquanto um locutor de rádio celebra com entusiasmo os dez anos de proibição da erva-mate, um acordo do governo local com os Estados Unidos.

A bebida feita com a erva, de origem indígena, que todo uruguaio conhece desde o berço, consumida pelo papa Francisco e jogadores de futebol como Cavani, Messi e o francês Griezmann, com emoji próprio, foi proibida no país sob alegação de ser “uma droga que atacava invisivelmente os compatriotas”.

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A ideia surreal de um Uruguai sem mate por ordem do Estado é a partida do filme “Mateína – A Erva Perdida”, uma coprodução de Uruguai, Argentina e Brasil que entrou em cartaz na quinta-feira em salas de Porto Alegre, São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro.

No cenário da história, quem quer tomar um mate — ou chimarrão, como também é chamado no Brasil — precisa recorrer ao contrabando, conformando-se com produto de baixa qualidade, trazido do Paraguai, uma erva sem cor, o que afeta o sabor da bebida.

“Por que trabalhamos? Não é pela grana. Isso é um circo. Por que alguém volta para casa? Por que alguém tem um pátio? Fogão, rádio, cachorro? Para tomar uns mates depois”, reclama Moncho sobre o sentido da vida sob a proibição. “As coisas mais belas da vida a gente faz para tomar uns mates depois.”

Cansados de seguir só podendo ter acesso ao mate “como se fossem uns delinquentes”, os dois abraçam a missão de trazer a erva de volta ao Uruguai, buscando sementes fora, e ganhando aos poucos apoio do povo, que acompanha a jornada por transmissões de rádio clandestinas. A aventura cria quase uma mobilização política em torno da dupla.

“A erva é do povo”, diz um cartaz pendurado em um portão em uma das estradas em que eles passam. “Ânimo, companheiros, que a semente pode mais”, lê-se em outro.

“De alguma maneira, o mate é como um símbolo de identidade, como parte fundamental de se reconhecer como um uruguaio. Até para aqueles que não bebem”, explica um dos diretores, Joaquín Peñagaricano, que assina o roteiro.

“Um amigo argentino sempre diz que fica surpreso com o fato de que nós, uruguaios, desenvolvemos uma habilidade especial de fazer tudo com apenas uma mão, porque a outra sempre está ocupada com o mate e a garrafa térmica”, brinca o outro diretor, Pablo Abdala Richero. “Se eu não tomo mate, me dói a cabeça. Somos um país viciado pela mateína, basicamente.”

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A ideia do roteiro de Peñagaricano começou a ser trabalhada em uma oficina com Enrique Fernández, codiretor e roteirista de “O Banheiro do Papa”, de 2007, e levou anos em desenvolvimento, chegando a ter cerca de dez versões.

O ator César Troncoso, protagonista do filme de Fernández, faz uma participação em “Mateína”, como um policial que esconde a cuia de mate debaixo da mesa do escritório.

“A ideia é que, se inventasse uma máquina do tempo, no Uruguai, ela não serviria. Você viajaria ao ano 3000 e seria igual”, explica Joaquín sobre a decisão de ambientar a história duas décadas a frente do tempo atual. “A ficção científica no Uruguai seria assim, ir para trás ao ir para o futuro.”

O filme traz referências à história uruguaia, desde uma cena que remete à vida de José Artigas, líder revolucionário, tido como pai da independência uruguaia, e seu leal companheiro Ansina, ao período de repressão da ditadura no século 20 e seus programas oficiais desconectados da realidade, até a mais recente descriminalização da maconha, sob o governo do ex-guerrilheiro José Mujica.

Embora tenha sido pensado antes da lei que liberou o consumo no país, há paralelos na forma de comércio dos produtos em tempos de proibição e uma crítica à lógica que justifica as proibições.

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Quando éramos jovens, via todo esse mercado clandestino da maconha. Depois veio a legalização, que fez todo mundo perceber o absurdo da proibição. Antes ia preso, agora as pessoas fumam em qualquer lado e nada mudou. A única coisa que aconteceu é que passou a ser legal”, diz Peñagaricano.

“É uma situação muito absurda, mas tudo é possível e não é tão absurdo quanto parece. Nos anos 1970, em Montevidéu, por exemplo, não se podia vender carne, então as pessoas começaram a ir até as divisas dos departamentos vizinhos [a divisão dos estados no Uruguai], começaram a aparecer açougues nas divisas, e as pessoas compravam. Se precisam de algo, conseguem de alguma maneira. Queríamos brincar com essa ideia das proibições”, lembra Richero.

O filme venceu prêmios no Festival Internacional de Cinema da Fronteira, em Bagé, no Rio Grande do Sul. No Uruguai, estreou no início de março, com boa recepção pelo público, segundo os diretores.

“O norte é sempre buscar o humor e tratar de rir das coisas que nos acontecem, como sociedade”, explica Peñagaricano.

“As pessoas estão se identificando por diferentes motivos, o que nos deixa muito contentes e muito emocionados, porque os filmes são para isso, para que sejam vistos”, diz Richero.

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#PraTodosVerem: fotografia mostra Diego Licio (Moncho), segurando uma cuia e bomba de chimarrão à boca, e Federico Silveira (Fico) sentados à sombra de uma árvore, em um campo. Imagem: Divulgação.

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