Marcha da Maconha: o que levou milhares de brasileiros às ruas?
A Marcha da Maconha é um ato plural, multicultural, político e social que, cada vez mais, arrasta multidões pelas principais cidades e capitais brasileiras – com um objetivo comum, sim, porém com motivos muito diversos. Conheça alguns no registro de pessoas que trombamos na 11ª Marcha da Maconha de São Paulo, que rolou no dia 1º de junho
Em 2011, a Marcha da Maconha era fortemente reprimida pela polícia militar de São Paulo – o que, na ocasião, pode ter levado muitos proibicionistas a crerem que havia sido suficiente para dar um ‘cala boca’ nos consumidores de cannabis. Porém, isso simplesmente não aconteceu, e a repressão rendeu uma marcha a mais, a da Liberdade, com mais de 5 mil pessoas e, consequentemente, a decisão do Supremo Tribunal Federal (ADPF-187), em que confirma a garantia do direito constitucional e à liberdade de manifestação e expressão dos atos favoráveis à regulamentação da maconha.
Os tiros, porradas e bombas diminuíram, porém não cessaram. A repressão, antes registrada abertamente e em maior quantidade, foi se transformando em casos isolados e com menor frequência. Com a polícia desconvidada, como ocorre na manifestação em SP, mais cidades e estados brasileiros realizam suas marchas, e é cada vez mais notável que a sociedade quer, e precisa, sair do armário ou, como diz a linguagem canábica, abrir a gaveta.
Leia também – Marcha da Maconha: Afinal, como o ativismo canábico surgiu?
Bem isso que pude verificar de perto na 11ª Marcha da Maconha de São Paulo, que foi realizada no dia 1º de junho, às vésperas do Supremo Tribunal Federal julgar o processo que poderia descriminalizar o porte de maconha e outras drogas, caso não tivesse sido retirado da pauta por Dias Tóffoli, presidente do STF.
MAR DE GENTE
Acostumado ao belo cenário nas Marchas pelo Rio de Janeiro e na reunião de cerca de 10 a 15 mil pessoas, ao chegar na Av. Paulista, a metros do MASP, cartão postal da cidade de São Paulo, eu tomei um susto, apesar de esperar a presença de uma multidão, ao me deparar com tal mar de pessoas. Podem achar que é firula, que estou vendendo ‘meu peixe’, mas a cena me levou a redefinir meu conceito de multidão, e parei para pensar nos motivos de cada um que ali dividia um espaço na grande Avenida Paulista.
Apesar de não haver números oficiais divulgados, por especulação, chuto mais de 200 mil pessoas. Não é exagero, do Masp à Consolação, em um dos sentidos, a Avenida Paulista foi tomada por pessoas que acompanharam a Marcha da Maconha até a Praça da República.
POR MUITOS MOTIVOS
A Marcha da Maconha é autônoma, horizontal, sem espaço para homofobia, machismo, ódio e discriminação. Sob o tema ‘Para o povo vivo e livre – Legalize’, em seu 11º ano, a Marcha contou com blocos temáticos, com forte presença de feministas, LGBTQ+, movimentos negros pelo desencarceramento e pacientes de cannabis medicinal. Segundo Paula Chiaretti, uma das integrantes que estava com outras pessoas na linha de frente, “A marcha é feita por blocos e cada um representa as pautas que devemos debater. Tem a ala do cultivo, do uso religioso e a ala do medicinal, tem a dos psicodélicos e entre outras”. Paula explica que são muitas pautas representadas dentro de uma marcha tão diversa.
Uma marcha de vários atos e gritos de ordem. Durante o percurso, na esquina da Consolação com a Paulista, uma pausa e uma clareira se abre, de tinta vermelha, sobre a faixa de pedestres, as letras são pintadas formando palavras e um pedido: “VIVAS E LIVRES, LEGALIZE!”. Mais à frente, na esquina com a Eduardo Prado, uma projeção chamava a atenção de todos para um prédio: “NOSSA CAUSA É MEDICINAL”.
Como é a causa das mães, crianças e adultos da ala medicinal. Ali foi onde conheci, à frente da faixa da Associação Cultive, Eunice de Assunção da Silva, que empurrava a cadeira de rodas onde estava a filha Estela, 15 anos, que sofre de paralisia cerebral e degeneração Walleriana, que contou:“só estou aqui porque o tratamento com a maconha permitiu que minha filha parasse de se auto agredir”. “Tinha que mantê-la amarrada. Ela batia tão forte nela mesmo que tinha que amarrar”, conta a mãe, enquanto caminhava e mostrava animada o resultado: “agora ela fica ao meu lado sem se bater, não a vejo mais sangrando”.
Durante a minha jornada, do vão do Masp até a Praça da República, registrava, depois de uma troca de ideia ou outra, que todos ali estavam por motivos que iam além da regulamentação da maconha.
POR BOLSONARO
Paulo Fonseca*, que pediu para ter sua identidade preservada, é eleitor e, digamos que, cabo eleitoral até hoje de Bolsonaro e um dos que retrucava em baixo volume, quase imperceptível, “não é bem assim”, enquanto a multidão soltava o nome de Bolsonaro ao meio de críticas. “Bolsonaro vai legalizar, não é uma questão de governo e sim de tendência mundial. Se Estados Unidos faz, ele fará também”, opina Paulo, completando: “Votei e acredito nele, tenho amigos e amigas, negros e pobres, que usam maconha que não merecem serem presos”.
Paulo, apesar de “de direita”, como se auto declarou, demonstrou ter ciência do encarceramento em massa, um dos malefícios que a guerra às drogas causa a uma parcela da sociedade. Tema que também esteve muito forte na Marcha – e não é por acaso.
CONTRA O ENCARCERAMENTO EM MASSA
Segundo os dados mais recentes do Ministério da Justiça, coletados pela associação Conectas, 26,5% da população carcerária masculina e 62% da feminina responde por crimes relacionados a drogas.
De 2006, quando foi publicada a Lei de Drogas, até 2017, a população carcerária cresceu no Brasil mais de 80%, até o total de 730 mil pessoas, ocupando o terceiro lugar na classificação mundial, segundo o levantamento.
Neste ano, pela primeira vez, o bloco Anti-Cárcere, da Frente Estadual Pelo Desencarceramento (criada em outubro de 2018), esteve na marcha, conforme divulgado pelo portal Alma Preta.
Em parceria com a Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos/as), o Bloco marchava sob o lema: “toda prisão é uma prisão política”. Para Fábio Pereira, um dos integrantes da Frente, o mote é uma sustentação política: “a gente entende que há um interesse estatal em relação a quem está sendo preso e a que serve a política de drogas hoje no Brasil”. Fábio explica que o objetivo da política é “continuar prendendo pessoas que historicamente foram presas”: jovens negros, pobres e moradores das favelas.
É o que aponta o levantamento feito pela Agência Pública sobre condenações feitas na cidade de São Paulo em 2017. A análise de mais de 4 mil sentenças indicou, por exemplo, que 64% dos brancos condenados por tráfico portavam uma média de 1,15 quilos de maconha. No caso dos negros, 71% foram condenados com quantidades muito inferiores para justificar uma condenação (nesses casos, a média foi de 145 gramas de maconha apreendida).
De acordo com dados mais recentes do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), negros correspondem a 64% do sistema prisional, enquanto compõem 53% da população brasileira – o que significa que dois em cada três presos no Brasil é negro.
O STF deveria retomar a análise para decidir se descriminaliza ou não o porte pessoal de substâncias ilícitas, mas não o fez no dia 5, e não há previsão de retorno do tema à pauta do Supremo. O assunto segue estagnado desde 2015, quando a corte começou a debater o assunto, mas a sessão foi suspensa por tempo indeterminado quando três dos 11 juízes que integram o plenário já tinham votado a favor da descriminalização do porte e consumo pessoal de drogas.
UM ÚNICO MOTIVO: LIBERDADE
Apesar da estagnação do Supremo e do retrocesso pelo governo, com a sanção da nova política de drogas, mais de 200 mil pessoas fizeram ser vistas e ouvidas. Entre os variados motivos, havia quem estava pela mudança política e quem tava só pela confraternização e o clima de festa, tinha os com apelo do uso medicinal, religioso, adulto e até industrial, mas que, no fim, a luta de todos se cruzavam a um direito fundamental: a Liberdade.
MAIOR DO MUNDO?
Com o grito “Para o povo vivo e livre – Legalize”, sem sombras de dúvidas essa Marcha da Maconha tornou-se, em minha experiência de noticiar a cena, como a maior do mundo a qual já era tida como a maior do Brasil. Em registros anteriores, vimos um número máximo de 100 a 150 mil nas manifestações na Argentina e Chile, agora ganhando a de São Paulo com mais de 200 mil pessoas pela regulamentação dos usos adulto, industrial, medicinal e religioso.
MAIOR DO PAÍS
Em números menores e com menos destaques, as marchas da maconha continuam sendo realizadas por várias partes do país. Mas, se somarmos o saldo atual das manifestações, deste ano apenas, mais de 250 mil pessoas já foram às ruas das cidades e capitais brasileiras exigir uma política mais digna, humana e menos sangrenta que a atual. A descriminalização do porte e consumo e a regulação da maconha favorecem muito mais a sociedade e o governo brasileiro do que a guerra às drogas.
Cada vez mais, vemos mais pessoas lutando por uma mudança a respeito da regulação da maconha. O Supremo pode estagnar, a Anvisa tentar e até o governo Bolsonaro ignorar, mas a sociedade canábica continua crescendo e ganhando força e, claro, continuará exigindo mudanças eficazes que cessem e reparem os danos causados pela guerra às drogas.
A sensação que tenho é que o mundo já mudou, mas ainda falta o Brasil. E isso é uma questão de tempo. Com ou sem Bolsonaro, Dias Toffoli e Osmar Terra, a regulamentação é necessária, mesmo que, para que isso ocorra, todo mês uma manifestação pela maconha tenha que acontecer. A sociedade já está mais que ‘ligada’ nos benefícios da planta e nos males produzidos pela sua proibição, muitos compartilhavam o mesmo pedido: serem livres. Ou seja, um direito de cada cidadão e dever do estado assegurar.
Confira abaixo os melhores momentos da 11ª Marcha da Maconha São Paulo pelas lentes de vários(as) fotógrafos(as):
#PraCegoVer: fotografia (em destaque) que mostra uma multidão e, à sua frente, uma faixa branca com o lema “Para o povo vivo e livre legalize”. Após a faixa um homem carrega um sinalizador de fumaça aceso na cor verde. Foto: Dave Coutinho | Smoke Buddies.
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