Marcha da Maconha avança, mas Lei de Drogas segue como entrave à descriminalização

Maconha Uma placa branca suspensa com a frase "Legalize a vida" na qual a última letra (a) foi substituída pelo desenho de uma folha de maconha na cor verde. Crédito Diogo Vieira | Smoke Buddies Plebiscito Maconha

No início nos anos 80, o movimento pela descriminalização da maconha já se iniciava no Brasil com debates realizados na USP e UFRJ e em 2006 foi de encontro a uma da lei de drogas que superlotou os presídios do país. Hoje, o ativismo floresceu e conta com o apoio de diversos coletivos e grupos, de organizações de apoio a mídias alternativas, na luta pela legalização e pelo fim da falida guerra às drogas. Saiba mais no artigo de Leandro Aguiar para o portal Opinião e Notícia.

A história da luta pela descriminalização da maconha no Brasil remete ao período da abertura política do início dos anos 1980. Foi nessa época que grupos variados de pessoas – pesquisadores, universitários, artistas, juristas e médicos, entre outros – passaram a se organizar pela descriminalização das drogas no país.

Mais do que hoje, a maconha era um tabu. Num esforço para trazer à tona a discussão, diretórios acadêmicos na USP e UFRJ passaram a organizar debates sobre o tema. Num deles, realizado em 1982, que contou com uma palestra do tropicalista Jorge Mautner, foi lido o “manifesto pela descriminalização da maconha”, resultado de debates em que se defendia a liberação do plantio individual. Pequenos jornais libertários (chamados pelos estudantes de “imprensa nanica”, como “O Repórter” e “Patuá”) iniciavam também uma nova abordagem sobre a maconha, sem os preconceitos da imprensa tradicional da época.

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A despeito das dificuldades, a discussão cresceu e as “Marchas da Maconha”, passeatas em que se reivindica a descriminalização da planta, já são datas certas no calendário: em todo mês de maio, mais de 40 cidades no país realizam sua própria marcha.

Os argumentos se acumularam, tanto os de ordem jurídica quanto científica, econômica, médica e social. Artistas, acadêmicos e políticos – entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – já se posicionaram em favor da descriminalização, e a luta contra a proibição pode, nos próximos anos, alcançar um desfecho positivo.

Lei de Drogas e super encarceramento

O principal entrave à descriminalização da maconha no Brasil é a atual Lei de Drogas.

Um levantamento realizado pelo Ministério da Justiça em 2014 aponta que a população carcerária brasileira atingiu, naquele ano, a impressionante a marca de 622 mil detentos – o que, no ranking mundial, nos deixa atrás apenas da China e dos EUA. Desse total, 28% – mais de 170 mil pessoas – foram presas por tráfico.

Em 2005, antes da promulgação da Lei de Drogas, aqueles considerados como traficantes pelo Estado correspondiam a 9% da população carcerária, o que aponta para as consequências desta lei que, à primeira vista, descriminalizava o consumo (mas não o porte) de drogas.

Pouco específica e aberta a interpretações, a Lei de Drogas, apontam juristas e advogados críticos a ela, levou a toda sorte de arbitrariedades e penas desproporcionais. E a situação é mais dramática se olharmos para os presídios femininos: 64% das presidiárias foram encarceradas por tráfico de drogas, sendo que muitas (em torno de 35%) foram acusadas de levar drogas para parceiros ou familiares presos.

O perfil dos acusados traçado pelo Ministério da Justiça deixa claro que o punitivismo se sobrepõe: 60% dos presos por tráfico são réus primários; 80% não portavam armas e levavam consigo pequenas quantidades de drogas: 1 grama de cocaína ou 10 gramas de maconha, de acordo com dados compilados por Luciana Boiteaux, coordenadora do Grupo de Pesquisas em Políticas de Drogas da UFRJ.

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Ainda, 70% das detenções têm como testemunha única os policiais que realizaram o flagrante. Outros indicadores sociais e econômicos parecem já não surpreender a quase ninguém: mais de 50% dos presos são jovens entre 18 e 29 anos e quase 70% são negros, pobres e com parco acesso a advogados.

Em razão da escalada de violência nos presídios brasileiros, operadores de Direito – de advogados, delegados, membros do Ministério Público até ministros do STF, como Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes – vieram a público se posicionar pela descriminalização das drogas. O argumento é que uma mudança na lei pode representar um desafogo ao sistema carcerário, além de enfraquecer o tráfico.

Paralelamente, grupos de advogados, ativistas, cultivadores e usuários de maconha se organizam para conter injustiças. Além de pressionar o poder público por mudanças legais, associações como o SOS Growroom, a Divisão de Assistência Jurídica da Faculdade de Direito da UFMG, a Plataforma Brasileira de Política de Drogas e o instituto EDUCannabis informam o usuário sobre seus direitos e prestam auxílio jurídico aos que são pegos em flagrante com drogas e/ou pés de maconha.

Sociedade civil se organiza

De organizações de apoio jurídico ao cultivador com problemas com a polícia a grupos de WhatsApp de familiares que buscam a erva medicinal, passando pelas mídias alternativas que cobrem a “cultura canábica”, ativistas que organizam as “Marchas da Maconha” e associações médicas que pesquisam o tema, os grupos a favor da legalização têm ganhado capilaridade e relevância no debate atual.

Entre as vitórias obtidas está a decisão de 2011 do STF, que reconheceu que as “Marchas da Maconha” não configuram crime de apologia. Meses antes neste mesmo ano, a Polícia Militar de São Paulo havia reprimido com violência a marcha de 21 de maio, que contou com cerca de 500 pessoas. De lá pra cá, as marchas ganharam outra dimensão, e estima-se que em 2017 ela reuniu, em São Paulo, 20 mil pessoas; e se espalharam pelo país: anualmente, entre os meses de abril e maio, tomam as ruas de mais de 40 cidades brasileiras.

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Mais recentemente, também, em 2017, depois de intensa pressão de ativistas, médicos e da própria mídia, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu pela regulamentação do CBD, um dos componentes medicinais da cannabis. A agência também decidiu enviar um corpo técnico ao Canadá para entender como a regulação das drogas funciona no país.

Coletivos como ACUCA (Associação Cultural Cannabica de São Paulo), grupos de estudos como o NEIP (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos) e a ABESUP (Associação Brasileira de Estudos Sociais sobre o Uso de Psicoativos) e sites como o Smoke Buddies e o Growroom têm colaborado também para a criação e disseminação de conhecimento sobre as drogas e os problemas causados pela maneira como o tema foi conduzido nas últimas décadas.

Estes grupos são participantes assíduos dos debates em Brasília sobre a descriminalização da maconha e têm construído alianças que os auxilia na pressão junto ao poder público.

Eles se articulam, por exemplo, com ativistas de outros países, trocando experiências com associações espanholas, portuguesas, uruguaias, argentinas e norte-americanas, onde o debate sobre a legalização já avançou mais do que aqui.

Antevendo a descriminalização, muitos destes ativistas iniciaram empreendimentos relacionados à maconha, investindo na produção de artigos como sedas e cachimbos, produtos derivados do cânhamo, redes de lojas e cafés especializados, sites de notícias e start-ups que ambicionam desenvolver medicamentos nacionais derivados do CBD e do THC.

Droga ou remédio? 

Pesquisadores das mais diversas partes do mundo têm verificado a eficácia do uso medicinal da cannabis. Já está claro, por exemplo, que a erva e seus componentes auxiliam pacientes portadores de HIV e com câncer, recobrando-lhes o apetite e diminuindo suas dores e enjôos; atenua, também, enxaquecas crônicas, bem como as convulsões dos que sofrem com variações raras da esclerose múltipla; e podem funcionar na redução de danos entre os dependentes de álcool e crack. Mais recentemente, pesquisas de ponta têm especulado que a maconha pode ser também a chave para o tratamento da depressão e do Alzheimer, entre outros males.

No Brasil, apesar das dificuldades legais, dezenas de pesquisadores debruçam-se sobre o tema. Na USP, laboratórios buscam voluntários para testar os potenciais da cannabis no trato de transtornos depressivos; neurologistas de renome internacional investigam como se dá a interação dos componentes da maconha com nosso sistema nervoso central, encontrando evidências de que eles podem ser usados na reconstrução de neurônios em pessoas que sofreram traumatismos cranianos; e médicos dos mais respeitados hospitais do país, a revelia da proibição, “receitam” maconha informalmente para pacientes com câncer e AIDS.

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Já é conhecida, por exemplo, a luta de familiares e portadores de esclerose para conseguir acesso ao CBD, óleo extraído da cannabis. Atualmente, estes pacientes têm de esperar pela importação do produto, que chega ao Brasil a um custo mensal entre R$ 1 mil e R$ 5 mil, muito embora o óleo possa ser facilmente fabricado aqui, o que, entretanto, a proibição da maconha inviabiliza.

E a proibição é também um grande entrave às pesquisas: acumulam-se depoimentos de pesquisadores gabaritados que tiveram problemas alfandegários ao importar componentes da maconha.

O cenário de proibição faz com que pacientes sejam penalizados e tenham de lutar na Justiça para conseguir remédios, além de levar ao desperdício de dinheiro público com produtos importados pelas universidades e que acabam perecendo nos aeroportos. O Brasil, enfim, vê passar o bonde desta nova frente científica que, na última década, tem se mostrado das mais promissoras.

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#PraCegoVer: Fotografia de uma placa sendo erguida em área urbana com os dizeres “Legalize a vida”, na qual teve a letra ‘a’ da palavra vida substituída por um desenho da folha de maconha. Créditos: Diogo Vieira – Marcha da Maconha São Paulo 2017.

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