Mãe do Alemão quebra paradigmas e importa óleos de Cannabis para tratamento da filha autista

Fotografia mostra Rafaela França segurando duas caixas do óleo de cannabis, uma de cada versão (verde e amarela), próximo à filha Maria, em um ambiente interno. Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades.

Ainda tratada como tabu na sociedade brasileira, Rafaela França luta para que outras crianças com autismo possam ter acesso à cannabis. Saiba mais na reportagem de Davi Cidade, publicada originalmente no Voz das Comunidades

“Eu não tive tempo para sofrer!”, repete Rafaela França sobre o impacto de ter descoberto o autismo em sua filha de 3 anos. Quando a Maria tinha um ano e oito meses, a família começou a suspeitar de algo. Pouco tempo depois, um acontecimento preocupante: a mãe pediu para Maria mandar um beijo e ela não conseguia, como se simplesmente não soubesse.

Após diversas idas ao médico, foi confirmado o autismo da Maria. Com o diagnóstico, vieram também diversas mudanças na rotina de todos, muitas consultas com especialistas e, principalmente, a força implacável de uma mãe que não mede esforços para garantir o bem-estar de sua filha.

O tratamento com cannabis custa em média R$ 1.000, mas Rafaela não mede esforços para ajudar Maria. Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades.

O Autismo

O transtorno do espectro autista (TEA), ou simplesmente autismo, é uma condição de saúde que se caracteriza por déficit na comunicação social e no comportamento. Há muitos tipos de autismo, por isso mesmo é denominado “espectro”, podendo ser associado a outras condições, como deficiência intelectual e epilepsia (trecho adaptado do site Canal Autismo). 

Desde o começo da vida, nós temos em nosso cérebro a formação de ligações entre neurônios (sinapses). E, quando somos crianças, apresentamos o dobro dessas ligações. Os neurônios são responsáveis por toda e qualquer ação do nosso organismo, desde piscar até aprender a assobiar, por exemplo.

O que acontece é que de tempo em tempo o cérebro precisa fazer uma “limpezinha” nessa quantidade de sinapses, para garantir o bom funcionamento do nosso corpo. Mais ou menos nos 3 anos de idade, acontece a primeira poda neural (“limpezinha”) e nesse processo as sinapses menos ativas morrem. Os neurônios morrem! 

No caso de crianças com autismo, essa poda neural é crítica. Devido às suas dificuldades no processo de ensino e aprendizagem, sinapses fundamentais responsáveis pela fala, pela percepção ou, simplesmente, por saber mandar beijo para mãe podem morrer (trecho baseado em informações do site Autismo Legal). Por serem pouco utilizadas em crianças autistas, o cérebro entende que essas ligações são descartáveis e, aos poucos, as crianças perdem ou regridem em atividades básicas.

Por isso, foi fundamental para Maria iniciar o tratamento o quanto antes. Para aumentar as possibilidades de melhoria na sua qualidade de vida.

“Toda vez que uma mãe periférica vai procurar um serviço dentro da comunidade, por uma preocupação, como ‘ah, meu filho não tá falando’, eles mandam ela aguardar. Pediram pra eu esperar até uns dois anos e pouco, três. Aí, eu ‘ahn? De maneira nenhuma!’”, conta Rafaela sua indignação ao procurar a unidade básica de saúde no Complexo do Alemão para tratar a Maria.

Em todo caso de suspeita de autismo, é importante iniciar o tratamento rapidamente. Por não poder perder tempo, Rafaela e sua família resolveram visitar médicos particulares. Foram seis neurologistas com consultas variando entre 250 e 800 reais cada. Um investimento nada barato em plena pandemia de Covid-19.

Junto às consultas, determinada, Rafaela França decidiu também encontrar alguma solução por conta própria. Ela começou pesquisando artigos sobre alimentação e tratamentos para transtornos neurológicos. Buscou documentos de países estrangeiros referências no assunto (como EUA e Espanha) e traduziu diversos desses materiais.

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Após muita pesquisa, ela finalmente encontrou o primeiro tratamento para Maria: o protocolo Coimbra. O problema? Cada receita custa em média 1.000 reais.

Foi então que a Rafaela decidiu expor seu problema para a favela e pedir ajuda. Ela não desistiu. Dinheiro não podia ser um problema! Além de familiares e amigos, figuras importantes do Complexo do Alemão, como Lúcia Cabral, da ONG Educap, e Raull Santiago, do coletivo Papo Reto, ajudaram na arrecadação para o tratamento da Maria.

Tudo resolvido, certo? Na última consulta, a mãe guerreira conheceu uma médica especialista no protocolo Coimbra: a neurologista Jéssica Tilli, de Minas Gerais, que acompanha Maria desde o início de 2021, quando começou o primeiro tratamento.

Com o protocolo Coimbra, após 30 dias, a Maria voltou a comer tudo. Mas, se estava tudo “ok”, onde entra o óleo de cannabis nessa história?

O protocolo Coimbra é um tratamento com altas doses de vitamina D para pessoas com transtornos autoimunes, como é o caso do autismo. A vitamina D auxilia diversas funções do corpo humano. Além disso, tem o papel fundamental também no crescimento e no sistema imunológico, permitindo o bom funcionamento deles (trecho baseado em informações do site Hospital Sírio-Libanês).

Com o tratamento, a Maria melhorou e retomou para muitas de suas atividades. Mas, após 3 meses do protocolo, novos problemas surgiram.

As altas doses de vitamina D, apesar de benéficas, também podem desorientar o paciente, como alerta a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia do Estado de São Paulo em seu site. Além disso, pacientes com autismo têm quase sempre problemas de neuroinflamação (inflamação no cérebro) e costumam reter em seus organismos substâncias que em excesso são muito prejudiciais.

Por conta dessas complicações e alguns outros fatores relacionados ao transtorno, a Maria começou a ter episódios de autolesão. Quando contrariada, ela se irritava muito e se debatia, além de bater com a cabeça na parede e outros tipos de ações. A situação era simplesmente desesperadora para toda a família.

Esse comportamento não é birra de criança! Antes, a Maria sempre foi calma, mas, como uma criança autista, ela aprende muitas coisas por meio de associações. Por exemplo, se alguém da família vem da rua e não muda imediatamente de roupa, a Maria entende que a pessoa ainda vai sair de casa e, consequentemente, não vai ficar ali com ela, o que a irrita.

Foi então, para evitar crises e auxiliar no processo de desinflamação, que Rafaela França e a neurologista Jéssica Tilli decidiram começar com o uso dos óleos de cannabis.

Foto: Selma Souza/Voz das Comunidades

Os óleos de cannabis atuam como anti-inflamatório e relaxante. Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades.

O óleo de Cannabis

A Maria faz uso de dois óleos à base de cannabis: o verdinho (USA Hemp 6.000 mg), composto só por canabidiol (CBD); e o amarelinho (USA Hemp 1.500 mg), composto por canabinoides secundários. Todas essas são substâncias encontradas na planta da maconha (Cannabis sativa). Porém, possuem funções diferentes.

O óleo de CBD é um composto que não apresenta efeitos psicotrópicos. Sua ação é anti-inflamatória e estudos já comprovam seu benefício para tratar dores crônicas, condições de insônia, ansiedade, epilepsia e inflamações gerais, com alívio de dores para problemas autoimunes. No caso da Maria, o CBD ajuda a controlar a inflamação no cérebro (trecho construído a partir de informações do site estrangeiro Weedmaps).

Por outro lado, o óleo de canabinoides possui em sua composição uma porcentagem de tetraidrocanabinol (THC), substância psicoativa responsável por alguns efeitos de euforia relacionados com a maconha. Mas, calma! 

A concentração de THC presente no óleo é controlada, pois a produção segue rigorosamente processos de fabricação e certificação (você pode conferir isso lá no site da USA Hemp). Então, quando a Maria toma cinco gotinhas do óleo, por exemplo, a mãe Rafaela sabe exatamente como a sua filha vai reagir. 

Esse óleo é responsável por evitar os episódios de irritabilidade e autolesão. Ele atua como relaxante, deixando a criança mais calma, além de inibir vômitos e estimular o apetite (informações retiradas do site da USA Hemp).

Sabe quando você toma um chá de camomila ou erva cidreira e sente o relaxamento gerado pela bebida? Você pode entender o efeito do THC nesse tratamento de forma parecida!

Os medicamentos utilizados pela Maria são importados dos Estados Unidos, pois eles possuem porcentagens exatas das substâncias provenientes da maconha. Para quem precisa começar o tratamento, mas não pode arcar com a importação, há óleos artesanais produzidos nacionalmente por ONGs e associações — como Associação Flor da Vida e AbraRio. Mas as concentrações das substâncias nesses produtos não são sempre precisas por este ainda ser um mercado novo no Brasil.

Leia mais: Estudo israelense sugere que THC é mais eficaz que o CBD no tratamento do autismo

Com a preocupação com a Maria, Rafaela não pode se dar ao luxo de não usar a melhor alternativa possível. Os óleos utilizados pela Maria custam entre 1.000 e 1.100 reais, mais o frete que fica por volta de 500 reais. Calculou tudo aí?

A luta continua

“Eu acho que eu não tenho poder nenhum. Quem tem é a Maria! Ela tem me trazido forças pra aguentar e também pra poder pensar em outras crianças. A minha força vem da Maria!”, ressalta Rafaela França sobre sua luta pela vida da filha e de outras crianças com transtornos no Alemão.

Apesar da batalha para garantir qualidade de vida para a filha, essa mulher imbatível arruma tempo para ajudar outras crianças também. Junto à ONG Educap, a Rafaela fundou o Núcleo de Estimulação Estrela de Maria com o objetivo de facilitar o acesso de mães da favela aos óleos e ao protocolo Coimbra. E já tem tido muito trabalho.

O caminho para uma mãe que suspeita do autismo de sua criança é ir a uma unidade básica de saúde. E, então, marcar uma consulta com o neurologista. Geralmente, essa consulta demora muito para acontecer e é a partir daí que Rafaela entra em ação.

Como sabemos, a corrida é sempre contra o tempo!

Após identificar quem precisa e opta pelo tratamento, Rafaela facilita o encontro com os médicos prescritores dos óleos de cannabis. Apenas para prescrever a medicação, as consultas variam de 150 a 280 reais e é com “vaquinhas on-line” que é custeado esse processo.

Após a consulta, começa o processo de judicialização do pedido. Nessa fase, provas da necessidade do tratamento são reunidas e encaminhadas para um advogado. A Rafaela tem conseguido judicializar o uso dos óleos da USA Hemp para o Alemão de forma totalmente gratuita.

Uma vez aprovada, essa vitória garantirá que o SUS cubra totalmente os custos do tratamento com os óleos de cannabis. Contudo, mais uma vez, um problema: o processo até a aprovação é longo e demorado!

Enquanto o processo não é aprovado, as famílias já podem fazer uso do medicamento, mas importando com seu próprio dinheiro! (R$ 1.000, lembra?). E a Maria já faz o tratamento há um ano.

Nessa luta ainda, Rafaela conta com algumas aliadas. A neurologista Jéssica Tilli, médica da Maria, realiza mensalmente um atendimento gratuito para crianças da comunidade.

O preconceito

Muitas mães, quando conhecem o tratamento com a cannabis, têm receio. Muitas delas, e, até mesmo o poder judiciário, acreditam que esse deve ser o último recurso, justamente por se tratar de uma substância até pouco tempo totalmente proibida no país.

Para a mãe da Maria, os óleos de cannabis devem ser um dos primeiros tratamentos, pois são substâncias totalmente naturais. Diferente de medicamentos controlados, com os óleos é possível regular a dosagem segundo a necessidade.

Mas como Rafaela França conseguiu ter essa visão de dentro da favela e sem dinheiro?

Ela conta que precisou buscar o melhor para a filha, independente de dinheiro e da substância que fosse. Com determinação e muita ajuda, ela chegou ao tratamento que hoje é a salvação da Maria e de toda a sua família.

O que mais a Rafaela quer?

Primeiro, ela quer doações dos óleos para as crianças em processo de judicialização. O sonho da Rafa é que a dona da USA Hemp, Corina Silva, doe esses óleos para as crianças do Alemão.

Depois, ela quer oficializar seu posto de “psicopedagoga formada pela vida”. Apesar de já ser referência entre as mães do morro, ela quer cursar Psicologia para ajudar com qualidade no núcleo Estrela de Maria.

E ainda colocou na cabeça que no futuro vai fazer o cultivo da cannabis dentro da favela! Para produzir o óleo e poder ajudar não só a Maria, como também as crianças de outras favelas.

“A gente não precisa passar essa dor sozinha. A gente pode se ajudar”

Foto: Selma Souza/Voz das Comunidades

Mãe e filha brincam felizes. Rafaela se sente aliviada por ter encontrado uma alternativa que permite à sua criança viver bem. Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades.

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#PraTodosVerem: fotografia mostra Rafaela França segurando duas caixas do óleo de cannabis, uma de cada versão (verde e amarela), próximo à filha Maria, em um ambiente interno. Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades.

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