liberdade de trás das grades

Fotografia de uma folha de cannabis (fan leave) colocada sobre um globo de luz, deixando seus folíolos pendurados, e um fundo escuro; o registro foi feito com a câmera na vertical, porém a foto se apresenta na horizontal. Foto: THCameraPhoto.

vivemos vidas curiosas! de fora, parecem seguir um certo padrão. mas nossas subjetividades nos pintam cenas coloridas que quase nada tem de ordinárias, quando as olhamos de dentro. pra quem sabe olhar no olho, o dia a dia é fascinante, mas também pode ser bem opressor

não sou livre, mas não estou literalmente presa. esse pensamento me atravessa com uma certa frequência. não levo algemas, nem aquelas bolas de ferro nos pés. não há correntes de aço me prendendo, mas há pequenas demandas que não me deixam ser inteiramente livre. me pergunto se isso sequer existe, uma liberdade total. assustador só de pensar.

a ideia de liberdade me assusta quase tanto quanto a ideia de não liberdade. não sei qual das duas é mais sedutora ou mais perigosa. pensar em ser livre me tira do dia a dia, e a gravidade do correr dos dias mantém meus pés bem firmes no chão. quanto mais obrigações, mais os dias correm, ao mesmo tempo que mais densos eles se tornam. pesados e rápidos, como caminhões na autoestrada. curioso que caminhões na autoestrada também remetem a uma liberdade que já não tenho: a de viajar sem amarras. a de, se preciso fosse, pegar uma carona e ir pelo país afora. não cheguei a fazer isso, mas eu podia, veja bem. eu podia fazer isso, tinha liberdade pra tanto, e, livre que era, escolhi não fazer. ou o fiz por medo?

quanto ao medo: aprisiona ou liberta. sim, as duas coisas. temos medo de certas coisas, e esse medo acaba nos protegendo dessas coisas — ou de suas consequências. nos prende aqui, mas nos libera ali. reconhecer o medo também é uma liberação. assumir um medo, igualmente, nos traz mais espaço mental. você tem medo do seu medo?

em tempos de pouca liberdade de ir e vir, a ganja vem como um respiro. engraçado, uma planta tão criminalizada, tão mal compreendida, vem pra me abrir uma fresta por entre as barras da cela. como pode algo que se fuma — além de outros jeitos de consumir — causar a sensação de respiro? e mais: como pode algo proibido trazer um pouco de liberdade? dicotomia manda abraços. é bem assim, quase sempre. o proibido nos faz lembrar que somos seres minimamente livres, porque podemos decidir, apesar das imposições, o que vamos fazer. teremos consequências, mas podemos escolher.

hoje eu só tenho mais um tequinho de uma flor. estou com dó de fumá-la, porque é a última. tenho também um pouquinho, bem pouquinho, de prensado. a minha liberdade de escolher o que vou fumar é tingida 1) pelo medo de ficar sem um do bom e 2) pela culpa de fumar uma maconha tão prejudicial pra mim e pra todos os envolvidos (o prensado). é um dilema que suscita muitos tipos de considerações, que escolho não abordar aqui, pois não quero, e no meu texto — pelo menos — mando eu.

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agora, se eu mandasse no país, não só descriminalizaria e liberaria a maconha pra fins recreativos, como — principalmente — devolveria a ela, publicamente, toda a sua potência medicinal e terapêutica. porque é uma grande potência, uma força gigante que foi sequestrada, amarrada e é mantida prisioneira até hoje. assim como a nossa própria força e poder, tomados de assalto por governantes esquizofrênicos. aqui não falo só de partidos ou políticos, mas também e principalmente de empresas e igrejas.

esses são alguns devaneios de uma mulher presa em suas próprias escolhas, uma mulher que ama sua vida e o convívio diário com tudo que essas escolhas trouxeram, mas que anseia por espaços maiores, brisas mais soltas e uma vida mais leve. as opressões do dia a dia me angustiam, mas também me lembram que eu tive a liberdade de escolher quase tudo o que eu sinto como limitante agora, e me fazem sonhar com o que ainda vou escolher. essa liberdade passada e futura me chama pra realidade: não existe liberdade total, mas existem sim prisões que não criamos.

essas prisões institucionais talvez sejam as mais difíceis de quebrarmos, por seu caráter arbitrário, mas as que construímos num nível pessoal também são bem resistentes. eu grito por liberdade, e por consciência. pela percepção de quais são as celas que construímos à nossa volta, tijolo por tijolo, e dentro de quais nos jogaram sem qualquer explicação. esse discernimento pode muito bem ser uma chave, talvez não a chave mestra, mas uma pequena chave, que abra uma pequena porta pela qual possamos passar, dar uma volta no mundo lá fora, antes de sermos sugados novamente pelo vórtex dessa coisa toda que chamamos de vida.

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#PraCegoVer: em destaque, fotografia de uma folha de cannabis (fan leave) colocada sobre um globo de luz, deixando seus folíolos pendurados, e um fundo escuro; o registro foi feito com a câmera na vertical, porém a foto se apresenta na horizontal. Foto: THCamera Cannabis Art.

Sobre Laura Maria

Laura Maria. escrevo como quem pensa. escrevo como quem viaja nas voltas da mente, no jeito que as palavras são escritas e no peso de cada uma delas. a ganja é uma velha amiga, daquelas que me abraçam forte enquanto me dizem verdades duras na cara.
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