Lei de Drogas é marco legal gerador de morte, corrupção e prisões em massa

Ilustração, em preto e branco, com exceção do sangue vermelho, que mostra uma senhora negra apontando para a cara de um policial enquanto segura uma camiseta ensanguentada, entre as casas de uma comunidade que aparecem ao fundo. Arte: Carlos Latuff.

Não há critério para diferenciar consumo e tráfico, a não ser o juízo subjetivo e racista do Judiciário, marcadamente branco. Entenda mais no artigo de Djamila Ribeiro* para a Folha

Nessa semana, os ministros do Supremo Tribunal Federal passaram todo um dia discutindo se iriam ou não analisar a incompetência de um ex-juiz federal na condução dos casos do ex-presidente Lula, o que significou na prática uma espécie de “rejulgamento” da questão que havia sido sedimentada por uma turma de ministros.

Por nove votos a dois, decidiram que sim, julgarão novamente o caso no plenário. No momento em que escrevo este texto, quarta-feira, não há resultado, o que penso que deve ser pelo reconhecimento da incompetência — e da suspeição — do juiz de Curitiba, responsável por uma operação de tantos arbítrios no país, que tanto nos envergonha internacionalmente.

Entretanto, independentemente do que penso sobre o assunto, fico a me perguntar: será que a Suprema Corte não tinha mais nada importante a fazer do que julgar de novo um caso? Estão faltando casos para serem julgados?

Tenho certeza que não. Aliás, tem um caso que está para fazer seis aniversários, perto de passar da primeira infância. Trata-se do julgamento de descriminalização do porte de drogas para consumo. O caso questiona a Lei de Drogas, aprovada em 2006, que não estipula nenhum critério de diferenciação entre consumo e tráfico, a não ser o juízo subjetivo do Poder Judiciário brasileiro, marcadamente branco.

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O resultado já sabemos: um hiperencarceramento de pessoas negras, na grande maioria das vezes por quantidades pequenas de droga. Um marco legal gerador de morte, corrupção e prisões em massa, com marcadores raciais evidentes e comprovados.

Mulheres negras são alvo da explosão dos encarceramentos por causa dessa Lei de Drogas racista, muitas vezes presas com seus bebês e crianças.

Quando os seus companheiros são mortos ou presos, são elas que sobram com os filhos em casa, com fome e sem política de Estado. A situação é absurda para seguir sendo naturalizada.

Parado por sucessivos pedidos de vistas, o julgamento representaria uma transformação na sociedade brasileira ao impor critérios objetivos de distinção entre consumo e tráfico e o início de um olhar diferente para a “guerra às drogas”, que não apenas custa uma fortuna aos cofres públicos como também, e principalmente, tem ceifado vidas de jovens negros como um genocídio.

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Claro, são necessárias mudanças maiores, como a regulamentação e a reparação econômica, educacional e cultural às comunidades devastadas pela guerra às drogas.

Porém, ciente de que o governo federal e o Congresso são insensíveis aos incontáveis velórios de pessoas negras descartadas pelo sistema racista, cabe a quem jurou guardar a Constituição começar a desempenhar o seu papel. E esse julgamento é uma importante sinalização.

Em um encontro virtual do grupo Prerrogativas em junho do ano passado, tive a oportunidade de perguntar ao ministro Dias Toffoli, então presidente da corte, quando poria em pauta a matéria. Quem ocupa a presidência define qual caso irá a julgamento. O ministro afirmou que iria avaliar se o incluiria no próximo semestre, mas se despediu da presidência sem tê-lo pautado.

Em julho, escrevi na Folha sobre Lucas Morais da Trindade. Tenho certeza que o leitor, a leitora e os ministros não se lembram dele, por isso vamos relembrar: Lucas foi preso pela posse de dez gramas de maconha, quantidade que um jovem do Leblon ou do Plano Piloto fuma em uma noite com seus amigos. Lucas, negro, não teve a menor chance.

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Lucas foi condenado a cinco anos e quatro meses de prisão e teve três habeas corpus negados pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

Na prisão, contraiu o vírus da Covid-19 e seu quadro de saúde piorou sem a assistência médica devida, até que ficou desacordado. Morreu poucos dias depois de ser levado ao hospital.

A morte de Lucas teve a participação do Poder Judiciário brasileiro em variados níveis. Do juiz da primeira instância que o condenou de maneira esdrúxula ao Tribunal de Justiça que se recusou a ver seu caso, passando pela omissão do Estado. A morte de Lucas deveria mostrar mais uma evidência aos ministros da urgência em julgar a matéria.

Apesar de já ser realidade em muitos países do continente americano, o Brasil parece em busca de sua sina de ser o último do Ocidente a fazer necessárias transformações. A verdade é que o último país a abolir a escravidão segue a passos lentos por essa mudança tão necessária. Sim, seguimos sendo tristes trópicos.

*Djamila Ribeiro é mestre em filosofia política pela Unifesp, autora do livro “Quem tem medo do feminismo negro?” e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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#PraCegoVer: ilustração, em preto e branco, com exceção do sangue vermelho, que mostra uma senhora negra apontando para a cara de um policial enquanto segura uma camiseta ensanguentada, entre as casas de uma comunidade que aparecem ao fundo. Arte: Carlos Latuff.

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