Legalizar o cânhamo foi uma articulação conservadora

Fotografia que mostra dois top buds de cannabis (maconha/cânhamo) repletos de pistilos cor creme e um fundo desfocado preenchido por outras plantas. Imagem: Marie Richie | Flickr.

A legalização do cânhamo nos EUA foi motivada por argumentos econômicos e promovida pelos conservadores, um cenário que pode servir de referência para o Brasil, onde a crise projetada para 2021 exigirá soluções que criem riqueza para o país. Entenda mais no artigo de Rafael Arcuri* para a ConJur

Contrariando todo e qualquer instinto político, os Estados Unidos legalizaram o cânhamo graças ao lobby dos conservadores. Por ser uma espécie de cannabis, a expectativa era o contrário: a legalização e a regulamentação viriam pela esquerda progressista.

O peso econômico do cânhamo atraiu os estados conservadores, como o Kentucky. Muitos desses estados eram antigos produtores de tabaco. Com a redução do tabagismo e aumento dos impostos sobre cigarros, a receita diminuiu, exigindo uma nova fonte de renda, uma nova cash crop.

De acordo com Mitch McConnell, o senador republicano líder da maioria que articulou a legalização, o estado de Kentucky já tinha grande experiência com esse cultivo. Durante a segunda guerra mundial, o próprio governo federal teria feito um vídeo para estimular a produção de cânhamo desse estado para suprir a demanda interna americana. Segundo McConnell, a proibição teria sido consequência de uma “conexão duvidosa com um primo ilícito, a maconha”.

Foram esses dois elementos que prepararam o solo para a legalização do cânhamo: a urgência econômica de agricultores que estavam perdendo suas receitas e precisavam de uma alternativa rentável; e a compatibilidade entre o tabaco e o cânhamo.

Mas isso só foi possível a partir de uma distinção química com relevantes efeitos políticos: o cânhamo, diferentemente da maconha, não tem efeitos psicotrópicos, por conter quase zero THC. A partir dessa distinção quimiotaxonômica, o lastro político de Mitch McConnell, republicano e conservador, se viu inabalado. Ele podia ser a favor da legalização do cânhamo e ser contra a legalização da maconha.

A utilização do critério quimiotaxonômico, adotado pela legislação americana, diferencia a maconha do cânhamo por suas características químicas, não morfológicas — mas reconhece que ambas são espécies de Cannabis.

Podendo rejeitar a legalização da Cannabis para fins recreativos, a maconha, não houve contradição em militar pela legalização do cânhamo, que representa um mercado estimado em 22 bilhões de dólares nos próximos quatro anos, só nos Estados Unidos.

No outro lado da arena regulatória, as empresas de tabaco já haviam percebido a mudança do cenário americano. A Altria, fabricante dos cigarros Marlboro, gastou US$ 1,8 bilhão para adquirir 45% da canadense Cronos, especializada em cannabis.

E todas essas mudanças ocorreram ainda em 2018, quando foi aprovado a Farm Bill que legalizou o cânhamo. A Farm Bill é uma lei americana reeditada a cada cinco anos e que abrange vários temas, como agricultura, nutrição e políticas públicas florestais. A Farm Bill de 2018 previu um total de investimentos e benefícios em torno de US$ 867 bilhões por ano e foi influenciada pela guerra fiscal entre Estados Unidos e China que prejudicou o agronegócio americano.

Ou seja, um dos pilares para a legalização foi o argumento econômico. Mas o argumento econômico que prevaleceu na arena política não estaria completo sem uma crise econômica setorial do agro, causada pela guerra fiscal da Chimerica e apadrinhada por Mitch McConnell.

Transportando esse cenário para o Brasil de hoje, podemos verificar alguns paralelos. A pandemia tornou as perspectivas de retomada da economia brasileira “as piores possíveis”. Isso demandará do Governo uma resposta econômica contracíclica. Como saída, a OCDE aconselha os estados a explorarem novas fontes de renda e  tributação, assim como a modificação dos sistemas tributários vigentes — já que os Estados estarão descapitalizados pelos efeitos da pandemia.

A recuperação econômica do Brasil será um problema, mas isso não nos diferencia do resto do mundo. O que torna nossa situação fiscal mais frágil é que o país entrou na crise da pandemia sem ter se recuperado da recessão de 2014 a 2016.

É sobre esse ponto que o paralelo fica mais forte com a experiência americana: a crise econômica setorial do agro. O discurso “liberal na e economia e conservador nos costumes”, defendido pela atual administração, é completamente compatível com a legalização do cânhamo industrial — já que isso não implica em legalizar a maconha e resultará em relevante aumento de renda da base eleitoral, o agro. A premissa liberal é ainda mais exaltada quando se considera a geração de empregos que será consequência de uma menor intervenção do Estado na economia.

A crise que espera o Brasil no início de 2021 reacenderá a urgência da reforma tributária, o que, por sua vez, demandará soluções que criem riqueza, não só imponham austeridade. O cânhamo pode ser o lastro de uma difícil articulação política para a recuperação econômica do país.

*Rafael Arcuri é advogado, coordenador da equipe de Direito Empresarial e Regulatório no escritório AFCTF Advogados, mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCeub e membro da comissão de Assuntos Regulatórios da OAB-DF.

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#PraCegoVer: em destaque, fotografia que mostra dois top buds de cannabis repletos de pistilos cor creme e um fundo desfocado preenchido por outras plantas. Imagem: Marie Richie | Flickr.

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