“Legalização da maconha é ferramenta de combate ao crime” – José ‘Pepe’ Mujica

Fotografia em plano fechado e meio perfil de José Pepe Mujica mirando o olhar para cima.

Em março de 2014, um mês antes da regulamentação da produção e venda de cannabis no país hermano, o então presidente uruguaio concedeu ao jornal O Globo uma entrevista memorável. Confira, a seguir

A legalização da maconha, do aborto e do casamento gay. Três das reivindicações mais caras para o universo progressista foram aprovadas no espaço de pouco mais de um ano, durante o governo de José “Pepe” Mujica, presidente do Uruguai de 2010 a 2015. Em março de 2014, um mês antes da regulamentação da produção e venda de cannabis no país sul-americano, a jornalista Helena Celestino, do GLOBO, bateu à porta do então chefe de Estado, que morava na mesma casinha de 45 metros quadrados com teto de zinco onde já vivia antes de ser eleito. O ex-guerrilheiro, que ficou preso por 15 anos pela ditadura militar no seu país, então, concedeu ao jornal uma grande entrevista, que o Blog do Acervo resgata nesta segunda-feira, após o líder de 85 anos anunciar que está deixando definitivamente a política, por questões de saúde. Vale a pena ler do início ao fim.

 

Em abril, a lei da maconha estará regulamentada e em vigor no Uruguai. A maioria da população é contra, o senhor está preocupado? É um risco político num ano de eleição?

Não estou preocupado. É um risco político, mas o mundo não teria mudado se agíssemos só pensando do ponto de vista eleitoral. Queremos tirar o mercado do narcotráfico, queremos tirar-lhes o motivo econômico, queremos que o narcotráfico tenha um competidor forte e não seja monopolista. Ao mesmo tempo, tentamos incitar as pessoas a atuarem do ponto de vista médico. Se continuarem no mundo clandestino, não podemos tratá-las a tempo, só quando já é muito tarde e já cometeram crimes para ter dinheiro e conseguir a droga. Mas temos de ter muito cuidado, porque não é uma legalização como as pessoas supõem no exterior, não vai ter um comércio, os estrangeiros não poderão vir aqui ao Uruguai para comprar maconha. Não vai existir o turismo da maconha. A decisão tomada não tem nada a ver com esse mundo boêmio. É uma ferramenta de combate a um crime grave, o narcotráfico, é para proteger a sociedade. É muito sério.

O senhor em algum momento da vida fumou maconha?

Não, nunca, sou antigo. Fumei tabaco toda a minha vida, e ainda fumo às vezes. Não sei se é pior que maconha, mas não acho que é bom.

O senhor se diz moderado, mas pôs o Uruguai no cenário mundial ao modernizar a agenda…

Aplicamos um princípio muito simples: reconhecer os fatos. Aborto é velho como o mundo, a mulher na sua solidão inevitavelmente tem de se enfrentar com este problema. Para nós, a legalização do aborto e os métodos de contracepção, o trabalho psicológico, significam uma maneira de perder menos. Aqui a mulher não vai diretamente a uma clínica para fazer aborto, isto era na época em que era clandestino. Passa pelo psicólogo, depois é bem atendida. O casamento homossexual, por favor, é mais velho que o mundo. Tivemos Júlio César, Alexandre, o Grande… Dizer que é moderno, é mais antigo do que nós todos. É um dado de realidade objetiva, existe. Não legalizar seria torturar as pessoas inutilmente. Sobre a maconha, enxergamos a hipocrisia: em muitos estados dos EUA existe um talonário vendido no comércio para receitas médicas; basta o médico assinar e dizer que você precisa de maconha para uma dorzinha aqui. É hipócrita.

O senhor rompeu com os símbolos do poder. O seu estilo de vida austero é uma mensagem política?

Pretende ser um ato de protesto. As repúblicas não vieram ao mundo para estabelecer novas cortes: nasceram para dizer que todos somos iguais. E entre os iguais estão os governantes. Têm uma responsabilidade implícita, e penso que devem viver de forma bastante similar à maioria do seu povo. Têm de tentar representar a maioria desse povo e não devem deixar os resquícios de feudalismo e monarquia dentro da república. Na república, ninguém é mais que ninguém, começando pelo governante. Por faltar esta visão, muitíssima gente, especialmente os jovens, não crê na política. A política não pode ser máfia e tem limitações. Se os cidadãos não creem na ética da política, também não vão perdoar os erros humanos que inevitavelmente estamos fadados a cometer.

Existe uma crise de representatividade das democracias e, ao mesmo tempo, uma efervescência de protestos no mundo. Como encara este fenômeno?

O mundo vive uma crise de caráter político, nossa civilização entrou numa etapa de crise de governança. O mundo está precisando de um conjunto de acordos de caráter mundial, porque tem problemas que nenhum país sozinho pode resolver. A humanidade tem de pensar em governar, não para a nação ou para o indivíduo, mas para o futuro da espécie. Com este tipo de civilização, não há forma de mitigar os danos ao meio ambiente, não estamos resolvendo nada, só acumulando desastres. Existe um continente de plástico no Pacífico maior do que a Europa. O que vai ser da humanidade? Vamos continuar a produzir plástico e atirando no mar, sem um acordo mundial por causa da política?

Na ONU, o senhor defendeu um novo modelo…

Falta uma agenda de grandes problemas que têm o mundo. Temos uma economia global baseada no hiperconsumo de coisas inúteis. Poderíamos mover a economia mundial com outro motor e tirar parte da humanidade que está submersa na tristeza e na pobreza, em lugares onde falta até água. A solidariedade levaria à criação de um mercado maior posteriormente. Temos de lutar para que todos trabalhem, mas menos, todos devem ter tempo livre. Para viver, fazer o que gosta. Isto é a liberdade. Agora, se temos de consumir tanto, não temos tempo, porque precisamos ganhar dinheiro para pagar todas essas coisas. Aí vamos até que… Pluff, apagamos.

O senhor tem simpatia pelos movimentos de protesto, como a Primavera Árabe ou os protestos no Brasil?

Eu simpatizo com os protestos, mas não levam a lugar nenhum.

Derrubaram alguns governos…

Sim, mas não construíram nada. Para construir, é preciso criar uma mente política, coletiva, de longo prazo, com ideias, disciplina, e com método. As sociedades não mudam por causa de grandes homens, mudam quando os protestos se organizam, têm disciplina e métodos de longo prazo. Temos de revalorizar o papel da política. Estes movimentos de protesto têm a vantagem do novo, e tentam alguma coisa nova porque desconfiam do velho, especialmente dos partidos, porque perderam a confiança neles. Mas as primaveras têm se transformado em inverno porque não sabem aonde ir.

Como tupamaro, o senhor queria mudar o mundo. Quais as limitações do poder de um presidente para fazer isso?

Há 40 ou 50 anos, achávamos que chegar ao governo nos permitiria criar uma nova sociedade. Nossa maneira de pensar era ingênua, uma sociedade é muito mais complexa, e o poder é limitado por todos os lados. Limitado pelo peso que têm as corporações existentes na sociedade, limitado pelo direito e a Constituição — um limite que tem de existir. E, sobretudo, toda a política de mudança, a longo prazo, significa mudança de cultura, o mais difícil de mudar numa sociedade. Quando somos jovens, às vezes, não temos paciência para compreender, quando começamos a ser velhos, sobra paciência, mas falta força.

O senhor foi chamado de presidente “gente boa” pelo jornal espanhol “El Mundo”. A “Foreign Policy” disse que redefiniu o papel da esquerda no mundo. Identifica-se com essas definições?

Reconheço a tragédia do mundo atual. Este reconhecimento tão generoso é o outro lado do que está acontecendo no mundo de hoje. Não é que me acham tão excepcional, me usam como uma maneira de criticar os outros. A última vez que estive na ONU escutei discursos de um presidente de um país europeu pelo qual temos um respeito enorme pela cultura, por suas tradições, pelo que significou no mundo. Fiquei assustado, porque parecia um discurso neocolonialista. Foi um terror, um presidente de esquerda, da república francesa… Eu não sou nada, sou um camponês com senso comum. Sem dúvida, estou vivendo uma peripécia. Talvez, se não tivesse passado tantos anos preso, com tempo para pensar, fosse diferente.

O Uruguai criou um grande trauma no Brasil em 50, quando derrotou a seleção no Maracanã. Esta história pode se repetir?

Muito difícil, isto foi uma coisa excepcional. O futebol na época estava mais equilibrado na região: agora é quase impossível para o Uruguai — um país de 3 milhões de pessoas — ganhar um campeonato do mundo. Mas ninguém pode nos proibir de sonhar.

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