Judicialização da cannabis medicinal será desnecessária se o Legislativo agir

Foto que mostra, em fundo escuro, parte de um pé de cannabis (maconha) em cultivo, com folhas serrilhadas e, no topo, a flor em desenvolvimento. agora

Enquanto o poder legislativo não enfrentar o tema da cannabis medicinal com ciência e dados objetivos, estará onerando de forma injustificada o Judiciário, pois os pacientes e suas famílias não esperarão. Entenda mais sobre o assunto no artigo de Alessandra Nascimento S. F. Mourão* para a ConJur

Multiplicam-se as decisões judiciais em favor de pacientes que fazem uso de produtos e medicamentos à base de cannabis medicinal, enquanto se aguarda que avancem no Congresso Nacional normas que assegurem a esses pacientes o seu mais básico direito à saúde e ao bem-estar.

O número de Habeas Corpus concedidos para o autocultivo de cannabis para fins medicinais aumenta a cada ano. Segundo dados do Reforma, foram três casos em 2016, nove em 2017, 16 em 2018, 25 em 2019 e, até julho deste ano, 42 autorizações judiciais foram exaradas. Além dos Habeas Corpus preventivos individuais, duas associações de pacientes estão com respaldo judicial para cultivar Cannabis sativa no Brasil: a paraibana Abrace e a carioca Apepi, mas há outras entidades pleiteando a mesma decisão.

É sabido que os produtos à base de cannabis são utilizados e prescritos para tratar os sintomas de uma variedade de patologias, sendo as mais conhecidas a epilepsia, doença de Parkinson e autismo.

Analisados isoladamente os dados do Estado de São Paulo, fica evidente o crescimento de demandas judiciais distribuídas por pacientes no judiciário paulista. O volume de ações judiciais com o objetivo de obrigar o Estado de São Paulo a fornecer produtos à base de cannabis cresceu 1.750% nos últimos quatro anos, indo de oito casos em 2015 a 148 no primeiro semestre de 2020.

Observa-se a mesma curva ascendente no nível federal, com aumento de gastos do Ministério da Saúde com a judicialização do assunto envolvendo produtos à base de cannabis: em 2018, foram gastos R$ 617 mil na compra desses produtos, o que representa quase o triplo do ano anterior (R$ 277 mil).

Desorganização das contas públicas e do planejamento da assistência à saúde, desorganização do planejamento da indústria farmacêutica, favorecimento aos que melhor demandam e não necessariamente aos que mais necessitam, geração de oportunidade para ações antiéticas e prejudiciais ao sistema são algumas consequências nefastas da judicialização do tema, como ressalta Maria José Delgado, que há anos acompanha o assunto de perto.

Leia mais: Ciência, direito e ativismo no debate sobre o acesso à cannabis com fins terapêuticos

Se de um lado o acesso ao Poder Judiciário (e não necessariamente à Justiça…) é uma garantia constitucional, de outro, nossos tribunais deveriam ser instados a dizer o Direito quando de fato necessário se fizesse. Isso por que diz o artigo 17 do Código de Processo Civil que “para postular é necessário ter interesse e legitimidade”. E como se identifica a presença desse interesse de agir? Pela observação, entre outros, da presença da necessidade da demanda judicial como o único meio possível para o alcance do bem da vida perseguido pelo demandante.

Mas no cenário legislativo e regulatório atual, a inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal) se impõe, visto que não há instrumentos legislativos a socorrer as necessidades imediatas de pacientes e seus familiares.

A análise e aprovação do substitutivo ao Projeto de Lei nº 399, de 2015, poderia certamente alterar esse cenário de sobrecarga do Poder Judiciário, suficientemente demandado por outras causas que exigem sua atenção e manifestação.

Muitos dos pedidos atualmente dirigidos aos nossos julgadores em relação ao cultivo, pesquisa, produção e comercialização de produtos à base de cannabis são objeto de disposição do referido PL 399.

De relatoria do deputado Luciano Ducci, médico que trabalhou com afinco na busca de informações confiáveis e científicas para a elaboração do Substitutivo, o projeto de lei substitutivo ao PL 399/2015 prevê, entre outras coisas: 1) incorporação dos medicamentos canabinoides ao SUS; 2) regras de segurança e controle da planta até o produto final; 3) normas de segurança para o cultivo; 4) permissão de cultivo e produção por associações; 5) permissão legal para uso medicinal e veterinário; 6) plantio de cânhamo industrial e produção da matéria-prima; e 7) proibição da prescrição e comercialização da planta e de suas partes para pessoas físicas.

Apresentado ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, pelo deputado Paulo Teixeira, em 18 de agosto passado, o substitutivo do Projeto de Lei 399/2015 foi alvo de uma reação por parte de pessoas que alardeavam se tratar de um projeto de liberação das drogas. Nada mais equivocado e lamentável, mas que surtiu efeitos: o deputado Rodrigo Maia retirou o projeto de pauta.

Familiares e pacientes não deixarão de buscar seus direitos em juízo. Como reconhecido em recente sentença proferida por juiz federal de Campinas, as possibilidades oferecidas pela legislação brasileira para o uso terapêutico de canabinoides “são insuficientes para garantir a efetiva utilização da substância, conforme indicação médica, e podem atentar contra direitos fundamentais, como o direito à saúde, dignidade humana e, no final, direito à vida das pessoas” (nº 5009643-89.2020.403.6105).

Enquanto o Legislativo não enfrentar o tema com ciência e dados objetivos, estará onerando de forma injustificada o Judiciário, pois os doentes e suas famílias não esperarão.

*Alessandra Nascimento S. F. Mourão é professora de Negociação na FGV-Direito SP, presidente do Comitê de Ética Profissional da International Bar Association e sócia fundadora da Nascimento e Mourão Advogados.

Leia também:

Assista ao vídeo em apoio ao substitutivo do PL da cannabis

#PraCegoVer: em destaque, fotografia que mostra, em fundo escuro, parte de uma planta de cannabis em cultivo, com folhas serrilhadas e, no topo, a flor em desenvolvimento. Foto: THCameraphoto.

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