Chacina do Jacarezinho e a prerrogativa da guerra às drogas para a violência policial

guerra às drogas chacina Imagem Cristiano Siqueira

Quando a prerrogativa da guerra às drogas justifica a barbaridade de uma incursão policial que resulta em vinte e oito pessoas mortas, é urgente e imprescindível repensá-la

A Operação Exceptis que, segundo a Polícia Civil, foi resultado de uma investigação de meses para localizar e prender 21 acusados de aliciar crianças e adolescentes para o tráfico de drogas na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio, terminou em uma chacina, na quinta (6), com vinte e oito pessoas mortas e um rastro de sangue, ódio e violência à comunidade.

A investida policial de maior letalidade no Estado desde 1989, segundo a Comissão Arns, choca pela visível brutalidade e desrespeito aos cidadãos, pelo contexto em que ocorre, contrariando decisão do STF que suspende operações policiais nas favelas do Rio durante a crise sanitária, exceto em casos de alta excepcionalidade, mediante informação prévia e acompanhados pelo MPE, mas ainda pela forma com que a prerrogativa da ‘guerra às drogas’ é usada como justificativa para a polícia matar. Não prender: matar.

“A pena de morte só é permitida no Brasil em situação de guerra. E, salvo engano, o Brasil não está em guerra. A não ser que haja uma guerra do Brasil contra seu próprio povo. E aí é um povo muito bem delimitado. É um povo preto, pobre, favelado e periférico. Se há uma guerra contra esse povo, é só o Estado brasileiro assumir. E aí as execuções de hoje serão inquestionáveis legalmente e juridicamente. Se não há essa guerra, não há possibilidade de a gente naturalizar qualquer morte ou execução. E ainda que possa ocorrer em cenário de confronto, ela não vai ser de ordem de 24 mortes seguidas num período de três horas e meia. Isso não é confronto, isso é execução. Se há um Estado democrático de direito, essas mortes precisam ser questionadas, investigadas e responsabilizadas. A legítima defesa na atuação do policial só é permitida e aceita quando sua vida está em risco ou quando a vida do outro está em risco. E um jovem negro sentado numa cadeira de plástico não coloca a vida de ninguém em risco”, escreve o advogado criminalista e coordenador-executivo do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN) Joel Luiz Costa, nascido e criado na favela do Jacarezinho, ao El País.

Enquanto a repercussão da operação ganhou destaque nos principais veículos de imprensa do mundo, como o Washington Post, que escreveu que “mesmo em uma cidade acostumada com a violência, a contagem de mortes foi chocante”, o inglês The Guardian e o espanhol El País, que usou o termo “massacre”, entidades civis e de direitos humanos, como a Central Única das Favelas, o Alto Comissariado da ONU e a Anistia Internacional, lamentam e exigem investigação independente e célere; a polícia afirmou, em coletiva de imprensa na tarde de ontem (6), que não houve execuções ou irregularidades e, criticando o que chamou de ‘ativismo judicial’ que busca impedir seu trabalho, afirmou que a polícia “cumpre a lei” e que só mata em legítima defesa.

“A Polícia Civil é garantidora de direitos dos cidadãos. Lutamos contra a ditadura do tráfico”, afirmou o delegado Felipe Cury. Para ele, a única pessoa executada na operação foi o policial.

Para a defensora pública do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, Maria Julia Miranda, “isso contradiz tudo que já estudamos sobre segurança pública. Não podemos continuar com um estado em que cerca de 30% das mortes violentas decorrem de intervenção policial”. Sobre a operação que prendeu três e matou outros três dos 21 procurados, ela acrescenta que não se tem informação sobre as crianças aliciadas que justificaram tal ação. “Até agora a gente não sabe que crianças são essas, se elas foram resgatadas, que tipo de acompanhamento será garantido. A gente não tem ideia. Não temos absolutamente nenhum dado”, afirma.

Guerra contra quem?

“A gente busca explicação de que nível de inteligência e para quê eles vieram ontem, se hoje aqui continua da mesma forma. Não existe um projeto de estabilidade ou, no mínimo, de conclusão dessas operações policiais. Eles simplesmente matam e é isso, amanhã é outro dia. Não existe continuidade no projeto de segurança pública”, diz Felipe Gomes, um dos organizadores da Marcha das Favelas, durante ato realizado na favela do Jacarezinho, na manhã desta sexta (7).

Enquanto o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos divulgou nota em que coloca como urgente a necessidade de “combate ao crime organizado, ao tráfico de drogas e às demais atividades marginais que ocorrem na cidade”, organizações que atuam pela reforma da lei de drogas no Brasil se manifestaram sobre como a chacina escancara uma política de extermínio sob a “promessa delirante de uma sociedade sem drogas”, conforme coloca em sua nota a Rede Reforma:

“Esta guerra declarada contra às substâncias tornadas ilícitas é na verdade uma guerra contra pessoas, é uma guerra pela submissão de corpos pretos, pobres e periféricos, é uma política de controle populacional das periferias. Não bastasse a omissão estatal na promoção de direitos fundamentais e, atualmente, no combate à pandemia de Covid-19, as periferias ainda tem que lidar com o controle policial do cotidiano, com o encarceramento em massa e com o #GENOCÍDIO”, escreve o coletivo.

Ato

Nesta sexta, às 17h, será realizado um ato por solidariedade e justiça aos familiares das vítimas da chacina, em frente à Escola de Samba Unidos do Jacarezinho: Avenida Dom Hélder Câmara, 2233.

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#PraCegoVer: imagem reproduz o meme da cantora Anitta, com um ônibus com destino ao Jacarezinho cravejado de balas e com uma cadeira de plástico azul ensanguentada à frente. Arte: Cristiano Siqueira | @crisvector.

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Sobre Thaís Ritli

Thaís Ritli é jornalista especializada em cannabis e editora-chefe na Smoke Buddies, onde também escreve perfis, crônicas e outras brisas.
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