Impedido monopólio de CBD no Brasil com base em patente fraudulenta

Fotografia em plano fechado que mostra diversas cápsulas transparentes contendo uma substância esverdeada translúcida, com uma parte mais densa, de cor verde-escuro, que se acumula na parte inferior de algumas delas. Patente.

Não se pode patentear o uso de uma planta, uma vez que é conhecimento popular. O processo de extração, muitas vezes, também não pode ser patenteado, por ser de amplo conhecimento público – é o caso do CBD em óleo que a empresa tentou patentear. Saiba mais sobre o caso no texto do neurocientista Fabrício Pamplona originalmente publicado no Medium

O título é polêmico, sem dúvida. Mas igualmente polêmico foi o acontecimento desta semana. Há muitos aspectos no desenvolvimento de produtos terapêuticos derivados da Cannabis que diferem de um desenvolvimento farmacêutico tradicional. A dita “Cannabis medicinal” se beneficia da experiência acumulada de usuários e médicos para se estabelecer como um alternativa de tratamento segura e viável em uma gama da doenças crônicas e, em alguns casos, intratáveis por medicamentos convencionais.

Pros interessados, um exemplo interessante de post sobre o assunto: http://medium.com/tudosobrecannabis/o-que-a-ind%C3%BAstria-farmac%C3%AAutica-pode-aprender-com-a-cannabis-medicinal-d85ce03ac9dc

Fora essa inversão no processo, em que primeiro os pacientes são expostos aos produtos, que depois são eventualmente desenvolvidos como medicamentos, tem um aspecto que certamente deixa investidores de cabelo em pé: a maioria dos produtos derivados de Cannabis não são patenteáveis.

Essa é uma polêmica comum na área de produtos naturais. Você não pode simplesmente patentear o “uso” daquela planta, porque isso é conhecimento popular/tradicional, parte de uma ciência que chamamos de etnofarmacologia (a descoberta e caracterização de novos potenciais tratamentos a partir do conhecimento tradicional empírico). Também muitas vezes não se pode patentear o processo de extração, ou de obtenção do produto, porque ele já é de amplo conhecimento público.

Pode-se patentear a composição, mas aí há um desafio enorme em realizar uma composição original, inédita e que tenha atividade inventiva. Para o bem do negócio, também deve ser algo estável o suficiente para que se consiga obter repetidas vezes de maneira consistente, em outras palavras, que seja reprodutível e confiável. Uma área comum de se tentar patentes são as formulações, garantindo que se tenha um mínimo de proteção e barreira de entrada contra os competidores.

Pois bem, há poucos anos fiquei sabendo de uma iniciativa no mínimo curiosa: uma empresa brasileira, já conhecida por atitudes que beiram à falta de ética, estava tentando patentear genericamente a formulação mais básica de canabidiol: misturar com óleo vegetal. Isso é totalmente indevido, já que obviamente não há atividade inventiva: essa formulação é conhecida há mais de 40 anos e é totalmente óbvia para qualquer técnico da área (esse é especificamente o critério usado pelo INPI para determinar se algo é inédito).

Patente.

A empresa por trás dessa tentativa de patente já tem histórico de tentativas “sorrateiras” de manipular a percepção de valor do seu produto. Após uma coletiva de imprensa, um jornal publicou que a empresa havia “registrado” e iria produzir o “primeiro medicamento 100% à base de maconha do mundo”. Nem uma coisa, nem outra eram verdade. A empresa não tinha registrado o produto, aliás, sequer havia terminado as etapas protocolares de desenvolvimento clínico e já há outros medicamentos 100% à base de Cannabis há mais de 10 anos. Mas em terra de cego… quem tem um olho é rei. O oportunismo impera no Brasil. http://tnonline.uol.com.br/noticias/cotidiano/67,464938,06,04,empresa-do-parana-registra-e-vai-produzir-primeiro-medicamento-100-a-base-de-maconha-do-mundo.shtml

Assim, como “misturar canabidiol em óleo” não pode ser patenteado, e isso é totalmente óbvio, considera-se que esse conhecimento já faz parte do “estado da arte” sobre a matéria e portanto não pode ser objeto da proteção conferida por uma patente, nem resguardar seu direito de uso comercial/industrial ao propenso inventor.

Chega a ser hilário que alguém tenha a cara de pau de assinar um documento como esse solicitando essa invenção. Mas se passasse, essa patente poderia ser o ponto de partida para a construção de um verdadeiro monopólio no país, restringindo a atividade comercial de virtualmente qualquer empresa que quisesse preparar os produtos mais simples possíveis de canabinoides.

Patente.

Pra quem quiser ver, essa é a patente solicitada. “composição farmacêutica oral de canabinoides para uso oral, em que o veículo é basicamente óleo, sendo estendido a óleos de diversas natureza”.

Eu não tenho a pretensão de ser canonizado como o “santo”, mas eu sei quando algo está errado. E você tentar ludibriar o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) de um país e tentar obter vantagem comercial baseado em uma informação claramente fraudulenta não pode ser algo correto. Nem aqui, nem na China. Bom, talvez na China, quem sabe.

Digo isso porque esse tipo de artimanha é mais comum no jogo do copy/paste do mercado de medicamentos genéricos (ou de insumos, onde China e Índia são os grande players), em que não há muita diferenciação entre os produtos e as empresas ficam criando barreiras de entradas artificiais como essa aí de cima. Seria muito tentador aqui dizer “barreira de entrada inventada”, mas a graça aqui é justamente que ela não foi inventada. Veja abaixo.

Neste caso específico, bem no meu quintal, não pude me fazer de “cego, surdo e mudo” e resolvi agir. Ontem descobrimos publicamente o resultado desta ação. A manchete saiu em uma coluna da Folha (veja abaixo) e aqui estou dando mais detalhes de como tudo aconteceu.

Leia mais: Farmacêutica tentou monopólio de medicamentos à base de maconha no Brasil

A data do depósito da patente é de 16/09/2016, então para ser considerada original, no mínimo esta composição deveria ser inédita até esta data. No caso do “óleo de CBD”, ou formulação oleosa contendo canabidiol, há conhecimento público registrado pelo menos desde a década de 70. Conhecendo alguns dos signatários da patente, duvido que eles possam alegar ignorância do fato. Logo… tirem suas próprias conclusões.

Patente.

Os subsídios técnicos foram apresentados voluntariamente ao avaliador do INPI após a minha saída da empresa, mas fiz as principais contribuições técnicas para desmascarar esta farsa. Claro que o documento final foi redigido por um advogado, para estar dentro do que é praxe para a área de propriedade intelectual. Acima a lista dos documentos que foram apresentados e aceitos pelo INPI como contestação à originalidade do pleito de patente. Contudo, com uma pesquisa rápida na internet, vemos que inclusive os próprios autores do pedido de patente tem informação que quebra a anterioridade da patente em artigos próprios já publicados. Encontrei, por exemplo, esse artigo abaixo, retratando o uso de canabidiol em veículo oleoso datado de 1993, ou seja, mais de 20 anos antes da publicação da patente. Enfatizando: artigo assinado pelos próprios “inventores” da patente.

Se não quiser acreditar em mim, aí em cima está o print do artigo disponível aqui: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22290374. A data de publicação é de 1993.

Eu não tenho absolutamente nada contra o uso de patentes como documentos de restrição de competição comercial no caso de inventos realmente originais, e que tenham tido investimento e trabalho para se chegar até eles. Agora, obter vantagens indevidas dessa maneira, fica feio demais. E se não aparece alguém “denunciando”, era capaz da patente ter sido aceita. Ainda mais que o pedido foi feito naquela época em que o presidente Temer acenava com a possibilidade de “aceitar automaticamente” toda a fila de pedidos de patentes por meio de um decreto… imagina o tamanho do prejuízo que seria para o mercado com essa golpe de competição desleal.

Sabe o que é triste? Esse tipo de artefato jurídico não é incomum na indústria farmacêutica. Já ouvi um executivo de uma das “big pharma” brasileiras dizer orgulhoso que “na minha empresa temos um time jurídico 3x maior do que o time de P&D”. Ou seja, tentar ganhar o jogo no tapetão é mais a regra do que a exceção nesta área. Ainda mais na área de genéricos, como comentei acima, que é de onde basicamente “nasceram” a grande maioria das brasileiras.

Mas por que não se pode patentear algo já conhecido?

Essa é uma boa pergunta, e que vale a pena esclarecer. Uma patente é um documento de “proteção de invenção que visa restringir a competição comercial contra o inventor, como retribuição à revelação pública daquela informação” (minhas palavras, mas é por aí).

Oficialmente, para que uma invenção seja patenteada, ela precisa cumprir três requisitos básicos: ter atividade inventiva, aplicação industrial e novidade, ou seja, ser inédita. Segundo o INPI, órgão responsável pela concessão de patentes, “uma invenção é dotada de atividade inventiva quando um técnico no assunto não consegue alcançá-la de maneira óbvia”.

Abaixo a análise do técnico do INPI em relação à patente que estamos discutindo:

O objeto da patente tem Aplicação Industrial, então atende a esse quesito. Contudo, o pedido falha em descrever algo que possa ser considerado inédito e/ou inventivo. Óbvio, CBD em óleo… faça-me o favor.

Os argumentos específicos do relator em relação à cada item. Trago abaixo o print, para ter total transparência em relação à documentação, e destaco abaixo o trecho de interesse.

1 – Proteção industrial

“O objetos pleiteados são passíveis de produção e utilização industrial” #ok

2 – Novidade

“as reivindicações não são novas frentes ao estado da técnica” #not

3 – Inventividade

“não atende ao requisito de atividade inventiva, pois se trata de algo óbvio para um técnico no assunto” #not

Aquele valeria o sarcástico adendo: “incluindo os autores da própria patente”.

Bom, acho que ficou bem claro, pelo menos para o leitor atento, o que estava em jogo e o que foi analisado. É uma pena que a disputa pelo mercado seja realizado a qualquer custo e com esse tipo de artefato. É um recurso baixo, e que impactaria negativamente muitas pessoas. Que bom que não foi aceito, parabéns ao bom senso do técnico do INPI, e à coragem da empresa que foi à frente com o processo.

Que a concorrência seja leal, e que os diferentes interessados se esforcem para evoluir os produtos, as formulações, o conhecimento sobre a área. Há tanta coisa legítima por ser feita! E muita gente aguardando as novidades, pode ter certeza…

A falcatrua perdeu desta vez. Que bom.

Leia também:

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#PraCegoVer: fotografia (em destaque) em plano fechado que mostra diversas cápsulas transparentes contendo uma substância esverdeada translúcida, com uma parte mais densa, de cor verde-escuro, que se acumula na parte inferior de algumas delas. Foto: Compare CBD | Flickr.

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