Guerra às drogas: É hora de acabar com cinco décadas de falácia estratégica

Fotografia que mostra as mãos de um homem bolando um cigarro de maconha no papel de seda e, ao fundo, fora de foco, pode-se ver parte de sua camiseta com estampa de uma figura indígena com a área dos olhos pintada em vermelho. Maconheiro

“Esta ‘guerra’ de 50 anos foi tóxica e destrutiva, uma falácia estratégica e profundamente prejudicial. Estamos presos em um ciclo de tribulação cognitiva, mas para tudo há um limite”

Por Gustavo Gorriti*, para o The Washington Post

O poder da linguagem durante os momentos de conflito pode ser uma faca de dois gumes. Edward R. Murrow, por exemplo, descreveu como Winston Churchill “mobilizou a língua inglesa e a enviou para a batalha” durante as horas mais sombrias da segunda guerra mundial. Não havia melhor líder para atiçar o fogo do heroísmo que levou às vitórias decisivas contra os nazistas.

Mas o oposto pode ser dito da Guerra às Drogas. Quando, há 50 anos, o presidente Richard M. Nixon declarou o abuso de drogas “o inimigo público número um da América” ​​e convocou “uma ofensiva total” para derrotá-lo, ele mobilizou um exército de burocracias díspares que rapidamente se enredaram em uma metáfora ineficaz (derrotar o “inimigo”).

Essa abordagem durou meio século. A narrativa da Guerra às Drogas vive em histórias de corrupção, extravagância, façanhas ousadas, violência e traição reproduzidas em loop na Netflix. Vive nos narcocorridos mexicanos e nas selvas do Peru, onde os cocaleiros dançam enquanto os aviões fazem seus apressados ​​e precários pousos na primeira etapa em direção ao mercado.

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A narrativa da guerra prevaleceu, e os maiores vencedores foram os sistemas construídos para travar uma luta que eles logo perceberam que não teria fim — mas isso era uma coisa boa: tornou-se uma fonte de recursos infinitos, orçamentos inflacionados, contratos, ordens de compra, poder, influência —, novas economias lutando contra o tráfico de drogas, mas também dependentes dele.

A “guerra” nunca foi vencida — o tráfico de drogas se adaptou e se expandiu. O crescente mercado de substâncias potencialmente perigosas fluindo da América Latina para os Estados Unidos tornou-se uma indústria imparável. A partir de meados da década de 1970, desencadeou uma revolução econômica na região, antes mesmo da pressão neoliberal por livre comércio e mercados abertos.

A indústria das drogas tornou-se um setor em crescimento que envergonhou todas as indústrias exportadoras, como foi o caso da cocaína no Peru. Ela logo se vinculou à saúde econômica geral dos países por meio de um estado permanente de osmose.

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A indústria das drogas foi pioneira em uma revolução capitalista que alterou profundamente a América Latina

Antes dos Chicago Boys deixarem sua marca na América Latina, a indústria das drogas foi pioneira em uma revolução capitalista — primitiva, mas incrivelmente bem-sucedida — que alterou profundamente a região, desencadeando vasta desigualdade e violência como parte de um modelo voraz não regulamentado cujo único propósito era extrair o máximo de lucros.

A natureza clandestina da indústria e suas altas margens de lucro elevaram a corrupção política a novos patamares. Existem muitos exemplos em toda a região de responsáveis ​​pelo combate ao tráfico de drogas que acabaram lucrando com isso, ao mesmo tempo em que cultivam relações próximas com agências de segurança e inteligência dos EUA. Manuel Noriega no Panamá e o poderoso chefe da inteligência Vladimiro Montesinos no Peru são apenas dois dos muitos exemplos de destaque.

Sob as narcoplutocracias da região e seus numerosos benfeitores, existe uma vasta base: o proletariado da cocaína, camponeses do Peru, Bolívia, Colômbia, que dependem das safras para sobreviver. A pobreza os vincula a uma indústria que oferece liquidez e retornos consistentes, mas que também desvaloriza seus direitos e suas vidas.

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A Guerra às Drogas teve inúmeras frentes e figuras importantes, mas continua crescendo e evoluindo. Os cartéis estenderam seus tentáculos por todo o mundo e, com isso, a violência criminal disparou. Os países onde operam têm algumas das taxas de homicídio mais altas do mundo.

Esta “guerra” de 50 anos foi tóxica e destrutiva, uma falácia estratégica e profundamente prejudicial. Estamos presos em um ciclo de tribulação cognitiva, mas para tudo há um limite.

É hora de aposentar a estratégia de “guerra” e substituí-la por uma nova abordagem às drogas que inclui maneiras inovadoras de melhorar a segurança e a governança, o desenvolvimento rural, a legalização, o tratamento da dependência e o estudo de substâncias potencialmente benéficas. As distorções da Guerra às Drogas nos atrasaram. Mas ainda podemos mudar a maneira decrépita e preconceituosa com que abordamos esse desafio.

*Gustavo Gorriti é diretor do IDL-Reporteros no Peru.

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#PraTodosVerem: em destaque, fotografia que mostra as mãos de um homem confeccionando um baseado no papel de seda e, ao fundo, fora de foco, parte de sua camiseta com estampa de uma figura indígena com a área dos olhos pintada em vermelho. Foto: Luiz Michelini.

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