Governo do Brasil afirma que cannabis medicinal é um plano comunista de poder

Ilustração que mostra uma bandeira formada por dois trapézios, um verde com o desenho de uma planta de cannabis, atrás do texto "Cannabis medicinal, um plano comunista?" em branco, e o outro vermelho com o brasão de armas da União Soviética, em amarelo.

Propostas de redução do controle internacional da cannabis serão votadas na ONU em dezembro, mas o Brasil desde já se manifestou contra. Secretário nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, Quirino Cordeiro alega que não existe maconha medicinal e que aumentar o acesso à planta é o primeiro passo de uma conspiração socialista. Saiba mais no artigo de Marcus Bruno

Em dezembro de 2020, serão votadas na Comissão para Drogas Narcóticas das Nações Unidas, em Viena, na Áustria, recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para tornar mais brandos os controles sobre a Cannabis. Entre as propostas, duas são mais importantes: a que retira o controle internacional sobre o canabidiol (CBD) e a que remove a maconha do Anexo IV da Convenção Única de Narcóticos.

Em 1961, a ONU classificou a cannabis nos anexos I e IV da Convenção de Narcóticos. O Anexo I enquadra as substâncias que podem causar vício e efeitos negativos à saúde, mas que tem potenciais terapêuticos.

Já o anexo IV é mais restritivo. Ele lista drogas que tem potencial terapêutico, mas que são tão perigosas para a saúde que não se deve explorar seus efeitos medicinais. A cannabis também está no Anexo IV. Já a morfina, não.

Bom, a OMS está propondo a exclusão da cannabis desse Anexo IV, mantendo a planta apenas no Anexo I. Significa que a Organização Mundial da Saúde reconhece que os potenciais terapêuticos da cannabis devem sim ser explorados.

a recomendação para o canabidiol prevê que produtos de CBD com até 0,2% de THC não ficarão mais sob controle internacional. Isso levaria a um comércio mais livre de diversos produtos com CBD, como óleos, pomadas, alimentos e cosméticos.

Esses seriam os primeiros avanços para a Cannabis nas Nações Unidas, após seis décadas. Num documento enviado aos países membros, os cientistas da OMS argumentaram que na época da convenção de 61 pouco se sabia sobre o uso medicinal da planta. Mas que hoje existe um grande número de evidências científicas sobre a eficácia terapêutica da cannabis, sobretudo no controle da epilepsia e da esclerose múltipla. Tais evidências foram suficientes para a OMS realizar esta revisão.

Brasil e a conspiração socialista de poder

Faltando cinco meses para a votação, o governo brasileiro já manifestou seu voto contrário a todas as propostas da OMS. A posição vem da Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, liderada pelo médico Quirino Cordeiro. Em nota, o órgão apontou que existem “razões científicas contrárias à redução do controle internacional da maconha”. Cordeiro defendeu mais estudos científicos antes de apoiar o uso medicinal da cannabis.

Porém, em uma transmissão ao vivo com apoiadores numa rede social, Quirino se valeu de outro tipo de argumentação. Para o representante do governo brasileiro, uma política mais branda para a cannabis faz parte de uma estratégia socialista de poder.

Você pode assistir às falas de Quirino neste minidocumentário produzido pela associação de pacientes Santa Cannabis, de Florianópolis.

“Há algumas décadas, movimentos de esquerda, principalmente os que usam estratégias gramscinianas de ascensão ao poder e transformação socialista da sociedade, esse grupos vem buscando a liberação das drogas, se valendo disso como estratégia de implantação do socialismo. Essa estratégia busca destruir as estruturas da nossa sociedade, destruir os valores judaico-cristão sob os quais a sociedade está edificada”, alegou.

“Como existe na nossa sociedade uma resistência à liberação das drogas, o que tem se buscado é essa liberação passo a passo. Uma estratégia é tentar vender essa ideia de que a maconha é medicinal, o que é um engodo, uma mentira, uma falácia. Não existe maconha medicinal. Essa é mais uma estratégia de diminuir a percepção de risco da sociedade”, concluiu Cordeiro.

Para representante do governo brasileiro, as dezenas de países que já liberaram a produção de cannabis para fins medicinais na Europa, Américas, Ásia e Oceania, estariam envolvidos numa grande conspiração global de implantação do socialismo. Isso tudo liderado pelas Nações Unidas. Essa teoria da conspiração não é novidade, já que foi levantada pelo próprio ministro das relações exteriores brasileiro, Ernesto Araújo, e faz parte do conjunto de conspirações da ala ideológica do governo bolsonaro, liderada pelo guru Olavo de Carvalho.

Quem é Quirino Cordeiro?

Quirino Cordeiro Júnior é formado em medicina e doutor em Psiquiatria pela USP. Focou sua carreira no tratamento de pacientes com transtornos mentais e dependência química. O médico defende a política manicomial, internação compulsória, abstinência total e até mesmo a internação de crianças e adolescentes em hospitais psiquiátricos de adultos.

Cordeiro é apoiador das comunidades terapêuticas, entidades em grande parte ligadas a igrejas evangélicas e que enxergam com bons olhos essas políticas. Na mesma live com apoiadores em que alegou a conspiração socialista, Quirino Cordeiro também defendeu essas comunidades com outro argumento sem qualquer evidência ou embasamento científico: o de que pessoas espiritualizadas são menos suscetíveis ao vício.

Esses movimentos de esquerda ficam malucos com as comunidades terapêuticas. Primeiro por que funciona. Os caras não querem que funcione porque eles querem que as pessoas continuem usando drogas. Outra coisa é que as comunidades terapêuticas funcionam numa sustentação que é basicamente desenvolvimento da espiritualidade. E é bem sabido que pessoas que tem a espiritualidade mais desenvolvida são menos suscetíveis a terem dependência. E se tiverem dependência, conseguem se recuperar mais facilmente”.

Justiça brasileira avança no acesso à cannabis medicinal

Apesar da posição contrária e estranha do governo brasileiro com a cannabis medicinal, a Justiça brasileira tem avançado cada vez mais para aumentar o acesso a tratamentos com a planta.

Já são cerca de 100 Habeas Corpus concedidos para pacientes, com diferentes doenças, plantarem maconha ou o cânhamo e extrair o óleo artesanal. Duas associações de pacientes também já conquistaram o direito de plantar cannabis para os seus associados, a Abrace, da Paraíba, e a Apepi, do Rio de Janeiro. Existem ainda diversas decisões que obrigam o SUS a fornecer óleos importados de cannabis, já que a proibição do plantio faz esses produtos chegarem no Brasil por mais de R$ 2 mil.

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Retrocesso: governo federal se opõe a recomendações da OMS sobre cannabis

#PraCegoVer: a imagem de capa traz uma ilustração que mostra uma bandeira formada por dois trapézios, um verde com o desenho de uma planta de cannabis, atrás do texto “Cannabis medicinal, um plano comunista?” em branco, e o outro vermelho com o brasão de armas da União Soviética, em amarelo.

Sobre Marcus Bruno

Jornalista especializado no setor de Cannabis. É editor do portal Cannabis & Saúde e diretor de comunicação da ONG Santa Cannabis. Antes, trabalhou no portal Terra, Rádio Gaúcha, Diário Catarinense e Sechat
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