Globo Rural: Quem tem medo da Cannabis?

Fotografia que mostra uma planta de maconha em período vegetativo que se sobressai sobre diversas outras plantas de um grande cultivo de cannabis e telas que cobrem o plantio, na parte de cima da foto. Globo Rural.

A edição especial de novembro da revista Globo Rural traz na capa o tema cannabis e as opiniões de especialistas e empresários do setor que, a depender da regulação do uso medicinal, promete tornar o Brasil, com terras e clima propícios para o cultivo da planta, o maior produtor e exportador mundial de maconha para fins industriais e medicinais

A área do campus da Universidade Federal de Viçosa (UFV) reservada a experimentos com plantas e conhecida como Vale da Agronomia já vem sendo chamada de Vale da Cannabis. É uma referência ao Vale do Silício, devido ao potencial brasileiro para o cultivo e ao know how da universidade mineira nas pesquisas. Sem autorização para o cultivo experimental, o Vale da Cannabis ainda não tem um só pé da planta, embora esteja buscando uma parceria com uma associação da Paraíba que obteve na Justiça o direito de plantar para atender associados doentes.

A UFV mapeou a aptidão brasileira para o cultivo da planta, em parceria com a startup ADWA e o Grupo Brasileiro de Estudos Sobre a Cannabis. O levantamento ganhou um nome pomposo: Potencial Brasileiro para o cultivo de Cannabis sativa para uso medicinal e industrial. O mapa inédito, divulgado este ano, revela que no Brasil 80% das terras cultiváveis são aptas para a produção da cannabis industrial.

Com terra e clima propícios, a matéria-prima brasileira teria o menor custo internacional, competindo com a colombiana. Produzida sob controle do governo, o custo de produção na Colômbia é de US$ 0,80 por grama – um quinto do que é cobrado no Canadá.

“Uma pequena parte dessas terras bastaria para dar ao país o título de maior produtor e exportador mundial de fibras, sementes e flores para fins medicinais e industriais”, diz o agrônomo Sérgio Barbosa Ferreira Rocha que desenvolveu o mapeamento a partir de sua tese de pós-graduação.

O zoneamento da cannabis foi o projeto que deu origem à ADWA, startup do programa de incubação de empresas da Universidade de Viçosa. A ADWA já tem um software que permitirá ao produtor acompanhar o cultivo das plantas em tempo real, desde a escolha do solo, época do plantio e colheita até as correções a serem feitas durante o cultivo, seja por conta de pragas ou intempéries.

“A cannabis já é reconhecida como uma importante commodity agrícola devido aos seus potenciais medicinais e industriais e aos grandes investimentos que já movimenta, mas ainda faltam estudos agronômicos”, diz Sérgio. Em seu site, a ADWA anuncia o Brasil como uma futura potência nesse mercado. Mas falta uma regulamentação que separe a maconha psicoativa daquela com baixo teor de THC e que se presta a uma série de usos industriais.

O debate, no momento, gira em torno de uma regulamentação do cultivo para fins medicinais. Com o plantio proibido, o país permite apenas a importação do canabidiol em forma de medicamento. Sem dinheiro para isso, centenas de famílias estão com processos na Justiça pedindo autorização para o cultivo doméstico da planta. Pelo menos 40 habeas corpus já foram concedidos nesse sentido.

Nessa seara estão as muitas variedades de cannabis com índice de THC inferior a 0,3%, aquelas que não têm efeito psicoativo. O canabidiol (CBD), extraído dessas variedades, também conhecidas como cânhamo, pode movimentar R$ 4,7 bilhões só no mercado brasileiro de medicamentos. Outros usos, que vão de tecidos a cremes dermatológicos e alimentação para humanos e animais, podem transformar a cannabis industrial em um negócio lucrativo e o Brasil no maior produtor mundial. Com as melhores terras, o país poderia oferecer o canabidiol pelo menor preço. Esse cenário, cada vez mais próximo, depende apenas de nova legislação.

Mas o estigma que ainda pesa sobre a maconha no Brasil pode levar o país a perder essa oportunidade. Nos últimos meses, uma consulta pública sobre a regulamentação da cannabis para uso medicinal, aberta pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), transformou-se numa batalha entre defensores e detratores da planta. Na verdade, observaram especialistas, a polêmica liberação para uso recreativo da maconha ainda não faz parte desse debate. O que se procura, nesta fase, é pesquisar e tirar o melhor proveito de uma planta que há 3 mil anos tem sido mais amiga do que inimiga do homem.

PRÓS E CONTRAS

No último dia 15 de outubro, a Anvisa adiou novamente a regulamentação prometida há anos, depois que dois dos cinco integrantes da diretoria pediram vista da proposta, embora a consulta tenha sido favorável ao cultivo. Na votação, William Dib, presidente da Anvisa e defensor do plantio, chegou a chorar dizendo que a omissão do poder público “afronta o direito constitucional à saúde”.

Membros do governo já se manifestaram contrários ao cultivo medicinal, alegando que tal permissão pode abrir as portas para o uso indevido da droga. Entre os mais ferrenhos estão os ministros Osmar Terra, da Cidadania, e Onyx Lorenzoni, da Casa Civil, além do próprio presidente Jair Bolsonaro.

Caso prevaleça o que defende o Executivo, não haverá cultivo no país, mas a importação da matéria-prima e de medicamentos estará autorizada. Aqueles que criticam essa posição alegam que, sem o cultivo local, o país perderá autonomia e a chance de participar de um mercado global enorme, pagará mais pela importação e não terá controle sobre a qualidade da matéria-prima. Osmar Terra tem sido o mais duro crítico do cultivo da cannabis medicinal no Brasil dentro do governo. Para ele, as empresas que defendem o plantio “não estão preocupadas com a saúde das pessoas, mas em ganhar muito dinheiro com a disseminação do vício”.

O ministro argumenta que aqueles que defendem o cultivo para uso medicinal “usam como escudo as mães aflitas dessas crianças, exibindo seu desespero para comover o público e justificar o plantio”. E acrescenta: “Afirmar que fumar maconha ou usar seus óleos derivados pode ser tratamento é uma manipulação absurda. Cria uma ilusão que pode levar milhares de jovens a usá-las despreocupadamente”.

O psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, professor da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do Programa Redenção, da prefeitura de São Paulo, na Cracolândia, chama a atenção para “o número grande de pessoas que defendem o uso terapêutico da maconha como caminho para defender seu próprio uso, acreditando que não faz mal e não cria dependência”.

“O que essas pessoas estão querendo é liberar o cultivo e o consumo da maconha para seu uso recreativo”, afirma. Ele acredita que “o interesse das pessoas pelo uso recreativo, manifestado nas ruas e junto ao Congresso, é mais poderoso que pressão da indústria”. Mas alerta para o aumento do poder das empresas, que têm muito a ganhar com a regulamentação da produção para uso medicinal.

Arthur não acredita que a maconha tenha grandes propriedades medicinais, mas se queixa da falta de pesquisas clínicas com o canabidiol que possam dar segurança a médicos, pacientes e à população em geral. “Na falta desses estudos, ficam opiniões apaixonadas, de um lado e de outro”, afirma.

Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra e professor da Universidade Federal de São Paulo, também aponta a falta de pesquisas com a cannabis, mas atribui esse retrocesso a uma “visão proibicionista que atrapalha muito o avanço da ciência” no Brasil. “É uma questão de ideologia, o governo está cortando verbas para a educação e a ciência, é uma forma de controle totalitário”. Ele sugere que, enquanto a ciência não avança, e enquanto não seja regulamentado o canabidiol medicinal, que se faça uso compassional da droga para os casos que vêm beneficiando os pacientes. “É ridículo que as mães sejam proibidas de fazer uso da planta porque ela é proibida”, diz.

MERCADO POTENCIAL

Marcel Grecco, presidente da The Green Hub, uma plataforma especializada em tecnologia e informação voltadas à cannabis medicinal, afirma que há diversas oportunidades para o agronegócio no Brasil com foco nessa planta. “A regulamentação da Anvisa irá determinar o tamanho dessas oportunidades”, diz. “Pelo seu potencial de ir além do medicinal, nas áreas nutricional e industrial, essa é uma discussão que deve ser ampliada. É necessária a participação de todos os órgãos do governo para que seja construído o melhor modelo, fazendo do Brasil referência nessa indústria”, afirma.

Na mesma linha, o empresário Pedro Sabaciauskis, presidente da Associação Catarinenses de Cannabis Medicinal, diz que a planta está deixando de ser apenas uma questão de saúde para se transformar em um negócio global. “Esse é um mercado que poderia ser nosso”, diz Pedro.

“O cultivo da maconha para fins industriais e medicinais abre espaço também para a agricultura familiar”, acrescenta Dennys Zsolt, engenheiro agrônomo e pesquisador de plantas medicinais do Instituto Vital Brazil, no Rio de Janeiro.

Isso no futuro, porque o protocolo de segurança exigido pela Anvisa, como câmeras, biometria, porta dupla e censor de movimento, exigirá um investimento que o pequeno agricultor não tem.

MERCADO BILIONÁRIO

No Brasil, dados das empresas New Frontier Data e The Green Hub apontam para um mercado que pode chegar a R$ 4,7 bilhões por ano – considerando que o país tenha ao menos 3,9 milhões de pacientes que podem se beneficiar do canabidiol. Esse valor equivaleria a 6,3% do faturamento da indústria farmacêutica brasileira. Estima-se que, desde 2015, quando a Anvisa autorizou o canabidiol para uso terapêutico, cerca de 80 mil unidades de produtos foram importadas pelo país. Em agosto passado, um encontro reuniu em São Paulo mais de 200 líderes empresários num evento batizado de Cannabusiness e destinado a discutir o setor. Nos Estados Unidos, estima-se que o mercado de CBD estará movimentando nos próximos três anos mais de US$ 23 bilhões, quatro vezes mais que em 2019.

O último relatório da New Frontier Data eleva a US$ 30 bilhões os negócios da cannabis nos EUA para 2025. O salto, segundo a empresa, se deve à tendência de legalização por um número cada vez maior de Estados e ao debate sobre o tema, que deve ocupar lugar importante nas próximas eleições americanas.

Na Europa, o mercado de canabidiol deve aumentar em cinco vezes até 2021, atingindo 1,5 bilhão de euros, segundo a consultoria Brightfield. Em 2018, esse setor movimentou 273 milhões de euros. Estimativas indicam que o Canadá e a União Europeia cultivaram, no ano de 2017, cerca de 825 mil hectares de cannabis.

Leia: Mercado europeu de CBD deve crescer 5 vezes até 2021

Mais de 20 empresas já manifestaram à Anvisa interesse em produzir e comercializar a planta no Brasil. Na maioria, são multinacionais do Canadá, EUA e Israel que já têm expertise na produção da planta para uso medicinal, industrial ou recreativo. Representantes no Brasil de companhias da Austrália, Uruguai e da União Europeia já informaram, na mídia, sua intenção de investir na área.

Boa parte aguarda a regulamentação da Anvisa, mas a maioria se adianta ao processo, apostando que o mercado irá dar um salto sobre qualquer legislação.

Entre as companhias que aguardam a regulamentação está a farmacêutica canadense Verdemed. “Nossa proposta é que a Anvisa retire o CBD da lista de substâncias controladas, o que vai facilitar a vida de todo mundo”, afirma o presidente da empresa, José Bacellar. “Para nós, o CBD deveria ser considerado um produto natural de livre consumo e fácil acesso, como acontece em diversos outros países”.

A Verdemed quer desembolsar US$ 80 milhões, metade deles no Brasil (destes, US$ 10 milhões em estudos clínicos e o restante depende da mudança de legislação). Dos outros US$ 40 milhões, parte vai para o desenvolvimento de produtos no Canadá e outra parte para a Verdemed Agro, na América Latina. A empresa produz a cannabis em 17 hectares na Colômbia, onde a produção é regulamentada.

COMO PLANTAR?

Outro debate é sobre o plantio indoor, em estufas e casas de vegetação, ou o outdoor, a céu aberto. O mapa do zoneamento climático mostra as melhores terras para cultivo a céu aberto. As mais aptas estão nas áreas ensolaradas e quentes junto ao Rio São Francisco, no Nordeste (hoje bastante desvalorizadas), e aquelas próximas à fronteira com o Paraguai.

Caso o plantio venha a ser aprovado, a Anvisa deve optar pelo modelo indoor, por questões de segurança. “Não precisava ser assim”, afirma José Bacellar, da Verdemed.

“A cannabis da qual estamos falando tem baixo teor de CBD e zero de THC. Não vai produzir drogas que poderiam interessar ao uso ilícito de grupos. É possível cultivar áreas extensas com variedades de cannabis sem nenhum potencial de intoxicação, seja para uso farmacêutico ou industrial”, argumenta.

Para ele, o cultivo indoor será um enorme desperdício do potencial brasileiro, com grandes custos em energia para controle da temperatura. Em sua avaliação, o plantio deveria ser indoor para a indústria farmacêutica e a liberação do cultivo do cânhamo (ou hemp, em inglês) para fins industriais, em campo aberto. “Nossa campanha é que o CBD é inofensivo e que, por isso, não deveria haver essa preocupação de estar cultivando droga”.

Por outro lado, há o fato de a planta não poder conter agrotóxico, o que inviabiliza o cultivo em áreas muito grandes de monocultura. “Temos de controlar as pragas sem agrotóxico. E isso, lá fora, quem tem feito são os pequenos produtores, e não os grandes”, diz Dennys Zsolt, do Instituto Vital Brazil. A tendência, quando o mercado se organizar e a regulamentação não for tão restrita, é que as empresas farmacêuticas cuidem da fabricação do medicamento – e de outros produtos derivados do canabidiol – e o cultivo seja terceirizado para pequenos agricultores – assim como as usinas de açúcar fazem com os plantadores de cana.

Para chegar aos resultados que apresenta, a ADWA e seus parceiros desenvolveram uma metodologia considerando o potencial do plantio direto no solo, o chamado outdoor, tanto para a produção de fibras quanto para flores e sementes. “Separamos as variedades em dois grupos de acordo com a duração do ciclo e medimos a aptidão do ambiente natural e as precipitações regionais, levando em conta a produção da variedade que produz o melhor canabidiol”, relata Sérgio Rocha, da ADWA. Nas regiões onde a precipitação é mais elevada, os técnicos sugerem o uso de filme agrícola evitar alta umidade. “Onde a precipitação está abaixo do ideal, nós indicamos o uso de irrigação”.

Cannabis ou maconha?

Embora milenar, é uma cultura sobre a qual faltam informações e sobram preconceitos. A cannabis que está por trás desse gigantesco negócio nada tem a ver com o lado psicotrópico estigmatizado da maconha. Chamadas genericamente de cânhamo ou cannabis industrial, essas variedades têm menos de 0,3% de THC, o tetraidrocanabinol, componente psicotrópico presente nas flores da planta.

Com baixíssimo teor de THC, essa maconha “não dá barato”, por isso não interessa ao mercado ilegal nem deveria estar no pacote das drogas ilícitas. Em contrapartida, essas variedades são ricas em canabidiol (CBD), componente altamente valorizado para fins terapêuticos, dermatológicos e alimentares. As fibras são empregadas na indústria têxtil, com rendimento três vezes maior que o do algodão, vantagem que se repete quando se compara o cânhamo com o eucalipto na produção de celulose. Na Alemanha e no Canadá, por exemplo, a cada ano o governo divulga uma relação com as variedades que podem ser plantadas para fins industriais ou terapêuticos.

A atual Farm Bill – a nova lei da Agricultura nos EUA, divulgada em dezembro passado – retira da classificação de drogas as variedades de cannabis com menos de 0,3% de THC. Com essas características, deixa de ser droga para se transformar em commodity agrícola, como o milho, a soja ou o trigo. “O ideal para o Brasil seria esse modelo americano. Seria importante o país prestar atenção nesse potencial”, diz José Bacellar, CEO da empresa canadense Verdemed.

QUANTO CUSTA

A empresa fez análise do potencial de custo para vários cenários. O menos oneroso é o cultivo sem casas de vegetação, quer dizer, a céu aberto, com solo e precipitação adequados. O investimento para uma pequena produção foi estimado em R$ 2 milhões, considerando instalações e equipamentos, sobretudo os de segurança exigidos pela Anvisa, como portas duplas, acesso por biometria, câmeras e transporte especial. O custo de manutenção ao longo do ano, sobretudo em pessoal técnico e de segurança, é estimado em R$ 1,5 milhão. “Em quatro a cinco anos, já se tem o retorno dos investimentos”, estima Sérgio.

A canadense Verdemed, que tem plantios protegidos e outdoor na Colômbia, mantém as plantas a uma temperatura entre 24 ºC e 34 ºC. “Nessas condições, considerando o descanso da terra, conseguimos três ciclos da planta por ano”, diz José Bacellar, presidente da empresa.

Segundo ele, 1 hectare chega a produzir mais ou menos 1,8 tonelada de flor seca em 110 dias. Em um ano, serão 5,5 toneladas – ou seja, calcula-se que 1 hectare produz 500 litros de óleo ao ano.

A Verdemed estima fabricar cerca de 1.120 quilos de ativos de canabidiol em 2020, volume que daria para atender aproximadamente 9.300 pacientes nesse primeiro ano. Hoje, o tratamento de um paciente com CBD importado pode custar até US$ 10 mil por ano.

O preço internacional do litro do CBD está em torno de US$ 6 mil e tende a se acomodar na metade disso.

No Canadá, com a explosão da demanda e a carência de oferta, o preço do litro do CBD chegou a US$ 80 mil.

“Nosso horizonte é que o óleo se torne uma commodity em dois ou três anos e que o litro do produto fique por volta de US$ 3 mil”, diz o CEO da Verdemed. Na Colômbia, os resultados são tão animadores que o governo pensar em utilizar um terço da área plantada de cana-de-açúcar para o cultivo da cannabis.

Casal produz em casa óleo para tratamento da filha

Nas recentes polêmicas em torno da legalização da cannabis, um grupo tem se mostrado mais aguerrido e corajoso. São os pais e parentes de crianças e adultos portadores de enfermidades que estão se beneficiando – ou podem se beneficiar – do óleo de canabidiol, o CBD, extraído da planta.

“Nada nesse mundo me impedirá de buscar ajuda para meu filho”, disse a mãe de um menino autista durante um dos cursos de maconha medicinal promovidos pela associação Cultive. No curso, acompanhado pela Globo Rural, o advogado da associação, Ricardo Nemer, advertiu: “Não se iludam. Plantar maconha sem autorização pode dar cadeia”.

Entre as cerca de 150 pessoas que estavam no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, ninguém se mostrava com medo de ser preso. Sem dinheiro para comprar o CBD importado, as famílias estão se valendo de autorizações da Justiça para cultivar a planta em casa. Ou plantando mesmo sem autorização, como reconheceram muitos pais presentes no curso.

No palco, a personagem mais irrequieta era a menina Clárian, de 12 anos. “Foi por ela que tudo isso começou”, disse a mãe, a bancária Cidinha Carvalho, fundadora da associação Cultive. Diagnosticada com a síndrome de Davret ainda com 3 anos, Clárian quase não se movia, chegou a ficar 40 dias na UTI e tinha dezenas de crises por dia.

Quando descobriu, via internet, que uma garota norte-americana com a mesma síndrome apresentava melhora importante com o óleo da maconha, Cidinha e o marido, Fábio, saíram em busca. Chegaram a recorrer a traficantes quando o produto importado se revelou inacessível. Até que, no final de 2016, conseguiram na Justiça um habeas corpus autorizando o cultivo caseiro, exclusivamente para o tratamento de Clárian. Hoje, a menina tem vida normal e as convulsões foram reduzidas em 80%.

CULTIVO

É a farmacêutica Renata Monteiro, também da Cultive, que faz a extração do óleo a partir das flores de maconha que Cidinha produz em sua casa. Globo Rural acompanhou, na casa de Cidinha, a última extração que Renata fez para Clárian, um processo que demorou seis horas. “A vantagem do cultivo artesanal é que o paciente consegue testar diferentes doses, diferentes cepas e escolher aquela que lhe trará uma melhor resposta terapêutica”, disse a farmacêutica.

Cidinha faz parte do grupo de 35 famílias com HC autorizando o cultivo artesanal da maconha para fins medicinais. Centenas de outras estão com processo em andamento. Segundo a Anvisa, desde o ano passado mais de 3.600 pessoas já solicitaram autorização para importar o CBD, um tratamento que pode custar mais de R$ 1 mil por mês.

É nesse ponto que se encontra o temor daqueles que precisam do CBD. A Anvisa deve regulamentar o cultivo para fins terapêuticos, mas restringir a produção às grandes empresas. O plantio doméstico permanecerá e a grande maioria dos pacientes não terá acesso ao medicamento, alerta Cidinha.

O uso medicinal da cannabis no Brasil ainda desperta muitas ressalvas no meio médico. A principal delas é a de que faltam estudos mais amplos e mais longos que comprovem os efeitos do canabidiol. “Precisamos saber com mais exatidão seus riscos e benefícios”, diz o psiquiatra Salomão Rodrigues, do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Desde 2014, o CFM autorizou a prescrição do canabidiol para crianças e adolescentes com casos graves de epilepsia refratária. Uma revisão em andamento deve considerar todas as doenças neurodegenerativas. Estima-se que mais de 1.000 médicos no país, de um total de quase 500 mil, prescrevam o canabidiol para diversas enfermidades.

Enquanto a medicina se acautela, uma série de pesquisas na Europa e nos Estados Unidos aponta benefícios da cannabis, que vão de seu efeito analgésico a sua ação sedativa e miorrelaxante, além da capacidade de restaurar o apetite e controle de náuseas e vômitos – daí seu uso no tratamento do câncer.

EFEITOS

Um artigo publicado na revista Lancet, em 2003, acrescenta que o canabidiol já foi utilizado como anticonvulsivante, ansiolítico, analgésico, antiemético para o tratamento de cólicas, asma e dismenorreia. E que vem sendo pesquisado para doenças neurológicas espásticas (esclerose múltipla e síndrome de Tourette). Contudo, o artigo também alerta sobre a necessidade de maiores pesquisas, sobretudo sobre seu possível efeito neuroprotetor.

A cannabis é considerada um remédio leve e de toxicidade aguda baixa. Para alguns pesquisadores, como o médico William Dib, diretor-presidente da Anvisa, “trata-se de uma substância que não gera riscos à vida”. “O pior que pode acontecer é não acontecer nada”, afirma William.

Palavra do Campo

A Revista Globo Rural estreou, nesta segunda-feira (11/11), um novo canal de comunicação com o público. É o podcast “Palavra do campo”, já disponível no site da publicação e nas principais plataformas de áudio.

O primeiro episódio aborda o tema de capa da edição de novembro da revista: cannabis. Apresentado pela repórter Mariana Grilli e com participação do diretor de redação da Globo Rural, Bruno Blecher, o programa traz depoimentos de pessoas que cultivam (com ou sem autorização da justiça) a planta para fins medicinais. Uma médica e um agrônomo também falam sobre a importância do produto e o potencial de negócio da cannabis.

Confira o episódio abaixo

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#PraCegoVer: fotografia (de capa) que mostra uma planta de maconha em período vegetativo que se sobressai sobre diversas outras plantas de um grande cultivo de cannabis e telas que cobrem o plantio, na parte de cima da foto. Foto: AP.

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