Famílias criam redes de apoio para uso medicinal da cannabis

As vidas de muitos pacientes brasileiros não podem esperar por vagarosas decisões judiciais ou por uma mudança na lei e, sem condições de arcar com altos custos de importação, suas famílias não têm outro caminho a não ser buscar ajuda em redes de apoio que produzem e distribuem o óleo à base de cannabis. As informações são do jornal Destak.

Quando se fala em maconha no Brasil, é comum pensar no uso recreativo da droga. No entanto, o que muitos não sabem é que a erva pode mudar a vida de pacientes com doenças raras com o uso medicinal. O canabidiol, também conhecido como CBD, é uma das substâncias presentes na cannabis, tem efeitos terapêuticos e não possui as propriedades alucinógenas dos entorpecentes recreativos, presentes no THC (tetraidrocanabinol). Apesar das dificuldades de conseguir esse tipo de tratamento para problemas como epilepsia, câncer, Alzheimer e Parkinson, famílias cariocas vêm sentindo na pele os benefícios do uso do composto e criando redes de apoio para que novos pacientes tenham acesso ao fármaco.

Uma das primeiras brasileiras a importar o canabidiol para fins terapêuticos e diretora da ONG Apepi (Associação de Apoio à Pesquisa a Pacientes da Cannabis Medicinal), Margarete Brito conta que conheceu o canabidiol em 2013, depois de saber, pelas redes sociais, que uma jovem americana estava respondendo bem ao tratamento. Margarete entrou em contato com a família da menina e conseguiu trazer a substância para o Brasil para tratar sua filha, Sofia, que sofre de CDKL5, que causa epilepsia refratária. A atitude para salvar a vida da criança, perante a lei, era considerada tráfico internacional.

Após uma falha de reposição no fim de uma caixa de medicamentos, Margarete acabou recebendo uma amostra do extrato da planta feito de maneira artesanal. A resposta de Sofia foi positiva, o que fez com que a família passasse a plantar maconha em casa, também de forma ilegal. “Plantar é proibido. Não é fácil. Quando você começa a plantar, você começa na ilegalidade, eles não dão autorização para você começar. O meu salvo-conduto só deram porque eu já estava plantando, dando para minha filha há um ano. Organizei toda a documentação para mostrar ao juiz que não tinha como voltar atrás”, conta Margarete, cujo pioneirismo facilitou o processo para diversos pacientes, através do precedente judicial.

Com uma plantação no terraço de casa, na zona sul do Rio, Margarete explica que o ciclo da planta é de quatro meses. Após a colheita das flores, também conhecidas como “camarões” ou “Ganjah”, para a elaboração do extrato, a pequena árvore morre, tornando necessária a “clonagem”, ou seja, a retirada de mudas ao longo do processo. O tipo cultivado é o Harle-Tsu, com maior concentração de CBD e pouquíssimo THC, em uma proporção de 20 para um, medida com o auxílio do projeto Farmacannabis, da Faculdade de Farmácia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). A iniciativa também avalia as concentrações em produtos importados.

Apesar de haver o projeto na UFRJ, a atuação dos cientistas é limitada. Margarete critica o fato de as pesquisas ainda serem escassas no Brasil. A diretora da Apepi conta que o plantio não é permitido nem mesmo para estudos. “Como vamos avançar na ciência, na pesquisa, se a matéria-prima é proibida? O Farmacannabis só recebe material se o paciente tiver um salvo-conduto, se não vier da ilegalidade. Ela não pode ter uma planta nem para pesquisar dentro do laboratório, é proibido, é crime. Isso é muito complicado. É um atraso no avanço das pesquisas”, lamenta.

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Outro caso semelhante é o de Maria Clara, portadora da Síndrome de Rett, que causa comprometimentos motores, cognitivos, problemas gastrointestinais e ortopédicos, além da epilepsia. Mãe da menina, Aline Voight destaca que a ilegalidade do produto prejudica o acesso dos pacientes ao canabidiol, principalmente os que não têm recursos financeiros para a importação do medicamento.

“Existem crianças que respondem bem ao produto importado e outras que respondem bem aos artesanais. Também existem crianças que não têm condições de arcar com os custos desse produto importado. Nosso sonho, na verdade, não é que o SUS incorpore o medicamento importado, é que incorpore o extrato brasileiro. A importação não é garantia de acesso”, disse Aline, que explica que algumas famílias precisam ir à Justiça para receberem auxílio governamental e de planos de saúde, além de Habeas Corpus para fazerem plantações dentro das casas. O custo com produtos importados pode variar entre R$ 1 mil e R$ 7 mil.

Antes do uso da cannabis, Maria Clara tentou 12 medicamentos diferentes, que comprometiam o funcionamento do organismo da menina e traziam efeitos colaterais mais fortes. Com o canabidiol, houve apenas duas trocas de marcas de produtos, uma evolução no tratamento. Aline destaca que o método trouxe benefícios que vão “além da contagem de crises”, que não aparecem na vida da menina há aproximadamente três anos. Maria apresentou evolução no sistema cognitivo e conseguiu reduzir a ingestão de outros medicamentos, o que trouxe uma melhora no funcionamento do fígado.

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Aline diz que é “100% a favor da regulamentação da maconha, não só para fins medicinais e terapêuticos”. “A gente vê crianças que tiveram uma melhora inacreditável. A palavra maconha já trazia medo. Conhecemos crianças que tiraram todos os medicamentos. Mas não só essa questão”, continua. “Também para o uso social, recreativo e industrial. As drogas não podem ser encaradas como crime. É uma questão de saúde. A partir do momento que você criminaliza, você não vai fornecer tratamento adequado para os dependentes, você vai tratá-los como criminosos, quando são pessoas que precisam de atenção”, afirma.

Margarete acredita que a criminalização da maconha está relacionada a fatores históricos, políticos e econômicos. Além disso, a diretora da Apepi destaca que há o preconceito com o método, mesmo se tratando de um uso medicinal. “As pessoas pensam que o remédio tem que ser dentro de uma pílula. Na hora que começam ver planta, pronto, começam a ficar com medo. O preconceito é nada mais que a falta de informação. As pessoas também ficam com medo de se envolver, não querem se expor, porque a questão da maconha é muito ligada à questão marginal”, diz Margarete.

Para a diretora da Apepi, o melhor remédio para compreender a questão é a informação. Nos dias 18 e 19 de maio, a associação realiza um evento, em parceria com a Fiocruz, sobre uso medicinal da maconha, no Museu do Amanhã, na zona portuária do Rio. Além disso, no sábado (5), está marcada mais uma edição da Marcha da Maconha, na praia de Ipanema.

“A pessoa tem que se informar. Acho que você pode ser a favor ou contra qualquer coisa. Não existe uma verdade absoluta. É muito arrogante da nossa parte dizer que você não pode ser contra. Você pode ser contra, desde que tenha bons fundamentos. Cada um pode ter sua opinião, não podemos achar que quem é contra está errado. Eu, que sou a favor e me aprofundei um pouquinho mais, posso achar que a pessoa está equivocada, mas acho que todo mundo tem direito. Viva a liberdade de expressão”, finaliza.

Assista à reportagem da TV Destak:

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#PraCegoVer: Fotografia de um pé de maconha em primeiro plano e ao fundo, fora de foco, alguns vasos com mudas do cultivo. Créditos: Rafael Pereira – Destak.

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